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Reflexões sobre o “Além do princípio do prazer”

Sérgio de Campos[1]

No ano de 1920, ou seja, há pouco mais de cem anos, Freud provoca uma guinada na compreensão do funcionamento do aparelho psíquico. Até então, ele considerava a díade prazer-desprazer, de modo que o sujeito evitava o desprazer e buscava, com ajuda do analista, reencontrar seu prazer de viver. Entretanto, o novo modelo de compreensão contradiz o princípio do prazer, visto que a clínica evidencia sujeitos que não suportam serem aliviados de seus sofrimentos e têm recaídas, quando deveriam apresentar melhoras. Com base nisso, surgem as questões: por que alguns sujeitos reproduzem as experiências traumáticas e como explicar o masoquismo e o sadismo? Afinal, de onde vem a auto-destrutividade presente em grande parte dos pacientes?

Nessa obra, Freud indaga o porquê de o prazer e o desprazer atuarem sobre nós de maneira tão imperativa. Ele afirma que essa é uma questão obscura, nebulosa e inacessível. Todavia, nessa investigação, o prazer e o desprazer são relacionados à excitação, embora não vinculados e em uma suposta escala, de forma que o primeiro corresponde à diminuição da excitação e o segundo ao aumento da quantidade dessa, em um período de tempo específico, o que implica um determinado sentimento.[1] Em suma, se, por um lado, o prazer gera uma estabilidade no aparelho mental; por outro, o desprazer suscita uma instabilidade, embora uma estimulação possa elevar o prazer de modo a aproximá-lo a uma excitação completa.

Então, por uma finalidade econômica, o prazer se esforça para manter uma excitação tão baixa quanto possível, de sorte que Freud o designou como decorrente do princípio de constância. O princípio do prazer está relacionado ao princípio de permanência no aparelho mental, cuja estabilidade opera como uma força reguladora de equilíbrio, na medida em que a excitação se mantém constantemente em baixa, denotando uma economia de energia psíquica. Portanto, esse princípio de constância tem um efeito regulador contra o excesso, contra o gozo. Então, qualquer aumento súbito e excessivo de excitação é experimentado como adverso e, portanto, sentido como um misto de agradável e desagradável, de maneira concomitante, denotando o que poderíamos designar de gozo. Freud busca esclarecer e distinguir as relações íntimas e complexas entre o que denota o substantivo genuss, prazer extremo e excessivo que poderíamos traduzir como gozo, e a palavra alemã lust, que pode ser traduzida por prazer. Ademais, temos ainda o termo unlust, que é o antônimo de lust e significa desprazer.

O princípio do prazer tende ao princípio de constância que gera estabilidade, mas permite uma certa gradação quando o prazer se intensifica amiúde. Assim, uma vez alcançado certo limite e ultrapassando-o, o aparelho mental se desvia dessa estabilidade, atingindo uma instabilidade. Ocorre que a margem de limite entre o máximo de estabilidade e o início da instabilidade não é precisa. Logo, deduzimos que essa zona de sombra, pouco demarcada, é onde se manifesta o fim do princípio do prazer e o início do mais além do princípio do prazer, expresso como gozo, seja por um excesso de prazer que se mescla com o desprazer ou por algo que se manifesta essencialmente como um desprazer e é experimentado, paradoxalmente, no masoquismo, como prazer.

Pode-se aludir a um carro esporte em uma pista de corrida, na qual se experimenta a estabilidade em sua potência máxima em razão da velocidade alcançada, até o momento em que ele subitamente perde a estabilidade e ganha uma total instabilidade. Esse ponto limite, pouco claro entre a estabilidade e a instabilidade do carro, depende do veículo e das condições externas, como a pista, o tempo, o ângulo da curva, etc. Poderíamos, por isso, questionar se condições externas também influenciariam o aparelho psíquico. O que se conclui é que não existe margem de segurança para o gozo que ocorre no além do princípio do prazer, pois o seu limite é sempre obscuro.

Pode-se destacar que há uma tendência ao princípio do prazer, embora essa inclinação seja contrariada por outras forças e circunstâncias, de modo que nem sempre o resultado final se mostre nessa direção.[2] A experiência evidencia que o princípio do prazer não domina os processos mentais e que ele até mesmo está em desvantagem em relação ao além do princípio do prazer, que se manifesta, no fundo, de maneira dominante.

Freud enumera vários elementos que inibem o princípio do prazer, entre eles, o principal é o princípio de realidade. A autopreservação diante do mundo externo é o que substitui o princípio do prazer pelo princípio de realidade. No entanto, o princípio de realidade não desiste da intenção de obter prazer, mas apenas aceita o adiamento da satisfação, mediante o recalque, a sublimação, o abandono de uma série de possibilidades, com a finalidade de, mais tarde, alcançar um prazer melhor, mais adequado e duradouro. Por último, é necessário assinalar a tolerância temporária ao desprazer como uma etapa no longo caminho pela busca do prazer. Ademais, o recalque pode transformar, por inversão, o princípio do prazer em desprazer, como nos casos de nojo e asco referidos à sexualidade. Temos, ainda, como motivo do desprazer, pulsões inibidas, sublimadas e insatisfeitas.

A repetição como brincadeira

 É no capítulo II do texto Além do princípio do prazer que Freud nos oferece um luminoso exemplo, no qual a repetição aparece encoberta quando ele descreve o seu netinho, que brinca de maneira perturbadora, atirando objetos ao longe antes que alguém possa impedi-lo. A criança, entusiasmada, emite um som, um fonema, como ooooh, que poderia ser entendido como fort, do alemão, “vai embora”. Em seguida, em outro momento, a criança se diverte com um carretel atado a um barbante, arremessando-o sobre a borda de sua caminha e o fazendo desparecer por entre as cortinas, ao mesmo tempo em que emite o expressivo ooooh. Depois, puxa o carretel pelo cordão e o saúda alegremente com a expressão da, “alí”[3].

Freud verifica que a criança, a partir do jogo com o carretel, renuncia à satisfação da pulsão ocasionada pela partida da mãe, sem protestar. Certamente, a criança sentira um desprazer com a partida materna, mas o sofrimento fora deslocado enquanto jogo, de sorte que ela possa conformá-lo ao princípio do prazer. Contudo, o primeiro ato de arremessar o carretel tem um valor maior do que os dois atos agora integrados, com o final agradável, visto que ele é um índice de separação simbólica do sujeito com o Outro[4].

A criança, ao arremessar o objeto, realiza a renúncia da pulsão, na medida em que ela encena a partida da mãe, com fins de alcançar o seu retorno, que agora está sob seu controle. Ademais, Freud detecta a compulsão à repetição como um fenômeno infantil conexo ao princípio do prazer e ao tratamento psicanalítico, embora a repetição como evento clínico possa se manifestar quase sempre coerente ao desprazer, como algo derivado da pulsão de morte, que dispensa o princípio do prazer. As crianças são capazes de repetir uma experiência desagradável na brincadeira, porque a repetição traz consigo uma produção de prazer de outro tipo, mais direta no que tange a passagem do além do princípio do prazer ao domínio do princípio do prazer.[5]

Algumas crianças, inclusive o neto de Freud, permanecem apenas no primeiro movimento, o de arremessar os objetos como manifestação de raiva e índice de separação, que implica o desejo de se vingar e se afastar do Outro. Enfim, nesse jogo, a criança experimenta um outro propósito que é o de se deslocar da posição passiva e desagradável de objeto, de estar submetida ao desejo do Outro, para assumir uma posição ativa, de senhor da experiência, cujo domínio da situação independe da lembrança, se era uma experiência agradável ou não. Assim, o desparecimento e o retorno do objeto, repetido várias vezes, implicam em um desprazer harmonizado com o prazer, o que poderia ser traduzido por gozo, inclusive porque o objeto é tomado como propriedade da criança.

Logo, uma experiência desagradável nem sempre se torna inapropriada para brincadeiras, pois a criança sai da condição de objeto e assume a posição de agente, de modo a deslocar o Outro para a posição de objeto[6]. Enfim, o gozo é uma mescla de quando o desprazer se imiscui com o prazer. Equivalente às brincadeiras, as produções artísticas dirigidas a uma audiência também não poupam os espectadores, como nas tragédias, de sorte que as experiências mais penosas e sofridas podem ser sentidas por eles e pelo autor como altamente prazerosas[7].

Repetição no âmbito analítico

 Freud começa a notar que alguns pacientes não conseguem recordar do que os recalcou, mas eles repetem no seu comportamento o que deveria ser lembrado. Portanto, os sujeitos não se recordam das experiências de desprazer, mas, premidos pela compulsão à repetição, repetem situações dolorosas da vida nas relações e no comportamento, o que provoca profundo mal-estar. Logo, essas situações provocam um prazer distópico, fora do lugar, fora do padrão psíquico do princípio do prazer. Quando não rememoradas e quando acontecem durante o processo de análise, elas são atuadas no âmbito da transferência. Assim, a neurose primitiva passa a se configurar como neurose de transferência, de modo que o analista busca forçar a memória e manter dentro dos limites restritos a repetição no âmbito dos acting outs[8].

Vale ressaltar que a compulsão à repetição não é uma resistência e que o inconsciente não resiste. A resistência surge da consciência, do eu, ou mesmo da parte do analista, como diz Lacan, e tem a influência do princípio do prazer, cuja finalidade é evitar o desprazer. Entretanto, a repetição que implica o desprazer não contradiz o prazer, de modo que o desprazer ocorrido num sistema pode ser sentido como prazer em outro. De acordo com Freud, a sexualidade infantil é fadada ao fracasso e à extinção, em virtude de ser inadequada à realidade. Essa impotência provoca uma ferida narcísica e um dano irreparável à autoconsideração da criança, fatores que contribuem para o sentimento de inferioridade dos neuróticos. As explorações sexuais infantis não chegam a nenhuma conclusão satisfatória, de modo que, mais tarde, o sujeito irá se queixar: “não consigo realizar nada ou ter sucesso em nada”.

Os neuróticos repetem na transferência situações indesejadas e emoções penosas, que são revividas com as maiores estratégias[9]. Imaginam-se desprezados, reclamam que o analista lhes trata friamente, se mostram ciumentos com outros clientes, se sentem traídos pelo analista, sentem que o analista foi ingrato para com eles, obrigam o analista a lhes ser severo, têm expectativas irreais de receber do analista uma atenção especial e todo reconhecimento. Todas essas situações, premidas pela compulsão à repetição, são levadas ao fracasso e conduzem ao desprazer e ao gozo[10].

Freud assinala que, via de regra, nessas situações, o sujeito é sempre o autor e o responsável direto da experiência. No entanto, de modo curioso, Freud ressalta que é surpreendente quando o sujeito se encontra na condição de ser objeto passivo da experiência, sobre a qual ele parece não ter qualquer influência, de modo que ele se encontra imiscuído em uma espécie de fatalidade ou de destino. Freud dá alguns exemplos, como o de uma mulher que se casa três vezes e, logo após, cada um dos maridos cai doente, sucessivamente, necessitando dos cuidados dela no leito de morte.

Gerusalemme liberata

 Freud também localiza a repetição na narrativa poética de Gerusalemme liberata – Jerusalém liberta. Trata-se do grande poema épico do poeta italiano que viveu no período renascentista, Torquato Tasso, publicado pela primeira vez em 1581. Esse poema foi traduzido para a língua portuguesa em 1858 por José Ramos Coelho, responsável pelo acervo da Biblioteca Nacional e pela Torre do Tombo. O poema narra os acontecimentos da primeira Cruzada, onde os cavaleiros cristãos combatem os muçulmanos a fim de levantar o cerco de Jerusalém Tasso tomou de empréstimo diversos caracteres do Orlando Furioso, de Ariosto, e se inspirou em elementos de obras de Homero e Virgílio[11]. A obra é composta em vinte cantos de extensões diversas.

O poema tem inspiração histórica, a partir das batalhas acontecidas, na idade média, em torno de 1099. Na época O império Otomano representava uma ameaça para o continente europeu. A particularidade essencial do poema é o descordo entre o amor e o dever, no que concerne ao amor infeliz entre Tancredo e Clorinda – ele um cristão e ela uma muçulmana[12].

Clorinda fazia parte do exército mulçumano e, por infortúnio, Tancredo inadvertidamente mata sua amada num duelo, estando ela disfarçada sob a armadura de um cavaleiro inimigo. “Mas eis que ressoa a hora em que o desterro da existência Clorinda deve largar. O poema de Torquato Tasso destaca: “Fere-lhe o belo seio o ferro agudo, e a veste de ouro ornada, de sangue enodando a pura neve, casto encerro, que os peitos lhe apertavam branda e leve ensanguentada”[13]. De acordo com Torquato Tasso, Clorinda, antes de morrer, perdoa Tancredo e solicita-lhe que seja batizada como uma cristã: “Vencestes amigo, eu te perdoo, concebe perdão também, não ao corpo, que não é nada, mas à alma, por ela humilde pede, e no batismo a faze depurada”[14].

Após o enterro, Tancredo, desolado, abre caminho numa floresta mágica que aterroriza o exército dos cruzados. Ao abrir as veredas com sua espada, ele faz um corte em uma árvore frondosa e altaneira. Contudo, para sua infelicidade, ele vê que é sangue que escorre da incisão no galho e que, do corte, além do sangue, sai a voz de Clorinda, cuja alma está aprisionada na árvore, de modo que Tancredo a escuta lamentar, mais uma vez, que ele a ferira de morte, ela que é sua amada[15]. Portanto, é necessário depreender com Freud que no poema Gerusalemme liberata, o romance de Tancredo e Clorinda acontece sob a forma de tragédia para em seguida, se manifestar sob a modalidade da repetição.

Conclusão

 Enfim, ao levarmos em conta as histórias relatadas aos analistas, é preciso ter coragem para constatar que existe uma compulsão à repetição, que sobrepuja o princípio do prazer, embora na maioria das vezes essa seja de razões inexplicáveis. Essa inclinação se encontra nos sonhos que ocorrem nas neuroses traumáticas e nas brincadeiras infantis[16]. Freud constata que os sonhos de angústia ou os sonhos traumáticos realizam o desejo do sentimento de culpa. As manifestações de uma compulsão à repetição apresentam, então, um caráter pulsional e atuam contra o princípio do prazer, dando a aparência de uma força demoníaca em ação. Cada nova repetição parece fortalecer a supremacia do que buscam[17]. Algumas pessoas se recusam a fazer análise por temer despertar essa compulsão como uma espécie de poder demoníaco. Enfim, Freud afirma que parece que a pulsão é uma força inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior, e que ela equivale aos movimentos migratórios, baseados nos instintos de certas espécies de peixes, tartarugas e aves no período da desova[18].

De certa forma, a repetição implica um sentido de mudança, alude à diferença, ao novo, concernente à pulsão de vida, que ruidosa e movimentada, perturba o estado de repouso. Por outro lado, no Além do princípio do prazer, Freud constata que a repetição tem um caráter conservador, fixada no mais do mesmo da pulsão, resistente à mudança e à diferença, visto que conferimos que, na repetição do idêntico, o que se repete, no fundo, é a essência do inorgânico, ou seja, a pulsão de morte, cuja inclinação é a de reencontrar o estado inanimado de repouso. Se, por um lado, a repetição, quando ocorre nas crianças, é conexa ao princípio do prazer, como nos casos das brincadeiras e das histórias que lhes são contadas pelos adultos; por outro, no caso dos adultos, as experiências traumáticas que implicam em repetição são vivenciadas sob o princípio do Além do princípio do prazer.

Enfim, quando essas experiências traumáticas permanecem no real, soltas ou dissociadas do simbólico, elas se configuram como reiteração do ato. Contudo, quando as experiências traumáticas se articulam à cadeia significante, podem ser subjetivadas no âmbito da repetição num processo analítico.

Freud usa a repetição para explicar a pulsão de morte, visto que se trata de algo primitivo, mais elementar e pulsional que o princípio do prazer, e que se expressa através da compulsão à repetição. A repetição é uma das características da pulsão que visa retornar ao estado anterior das coisas, ao estado inorgânico.[19] Logo, tudo que é vivo, sem exceção, é destinado a morrer por razoes internas, de modo que o objetivo da vida é a morte e que voltamos às coisas inanimadas que existiram antes de nós. Assim, para Freud, a pulsão de morte nos conduz a retornar ao estado inanimado de nirvana. Em 1924, O problema econômico do masoquismo separa o princípio de nirvana e o princípio do prazer, permitindo supor que a pulsão de vida estivesse a serviço da pulsão de morte. Freud retifica sua posição e destaca que o princípio de nirvana está presente na pulsão de morte, como a paz dos cemitérios.

À guisa de conclusão, nos primórdios e durante muito tempo, a substância viva era constantemente criada e morria facilmente, até que influências externas obrigaram a substância viva a divergir do curso original e a efetuar um desvio mais complexo antes de alcançar a morte. Esses descaminhos acabaram por criar uma pulsão de autopreservação na substância viva, de modo que ela pudesse adiar o encontro com a morte[20]. Enfim, Freud destaca que a pulsão de vida e de morte compartilham uma oposição no ser vivo, na medida em que essas duas polaridades conseguem se relacionar mutuamente, derivando e vivendo às apensas uma da outra, assim como o amor e o ódio.


[1] FREUD, S. Além do princípio do prazer. Edição standard das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, p. 18.
[2] Ibid, p. 20.
[3] Ibid, p. 26.
[4] Ibid, p. 27.
[5] Ibid, p. 29.
[6] Ibid, p. 28.
[7] Ibid, p. 29.
[8] Ibid, p. 32.
[9] Ibid, p. 34.
[10] Ibid, p. 35-36.
[11] https://pt.wikipedia.org/wiki/Jerusalem_Libertada, acessada em 23 de setembro de 2021.
[12]TASSO, T. Jerusalém Libertada. tradução José Ramos Coelho, São Paulo: editora Literatura Clássica, 2021, p. 292.
[13] Ibid, p. 294.
[14] Ibid, p. 295.
[15] FREUD, S. Além do princípio do prazer. Edição standard das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1989, p. 36.
[16] Ibid, p. 37.
[17] Ibid, p. 52.
[18] Ibid, p. 54.
[19] Ibid, p. 54.
[20] Ibid, p. 56.
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