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Além do princípio do prazer: alguns pontos para uma leitura política

Gilson Iannini

Uma boa noite a todos e todas. É uma alegria estar aqui. Não poderíamos ter tido uma abertura mais bonita e que casa tão bem com o que eu vou falar. Vocês vão entender o porquê. Gostaria de agradecer o convite de Cassandra para participar dessa noite de Abertura da Biblioteca. Agradecer à Biblioteca Viva, a Cassandra, a Carolina e a Xavier que fizeram esse trabalho tão interessante que nos trouxe Nação Zumbi, Nirvana relidos. Uma biblioteca tem que ser viva e vocês estão dando vida a esses textos.

Estou muito feliz de estar com Sérgio de Campos e com os vários amigos que estou vendo aqui. Por que eu acho que Bacurau introduz o que vou dizer? Eu preparei quatro pontos. Supondo que Além do princípio do prazer é um texto conhecido de todo mundo em relação aos seus aspectos metapsicológicos e à clínica que ele apresenta, vou tentar trazer à tona o aspecto político inerente ao que subjaz a discussão de Além do princípio do prazer.

Proponho, então, uma leitura política. São quatro pontos que eu quero desenvolver. O primeiro deles tem a ver com a guerra. Todos nós estudamos e aprendemos, desde a primeira vez que nos deparamos com esse texto, que ele tem a ver com as neuroses de guerra, em como os neuróticos de guerra voltavam para a vida pública cheios de sintomas, etc. Nós aprendemos sobre os sonhos traumáticos, a repetição… mas talvez não tenhamos muita clareza do quanto Além do princípio do prazer é uma ferramenta no combate extremamente vivo, extremamente urgente que ocupava as primeiras páginas dos jornais.

A psicanálise nasce no final do século XIX quando Freud, de alguma maneira, diz que ali onde a ortodoxia médica não reconhece a verdade do sintoma histérico, por considerar a histeria como uma espécie de teatro, a psicanálise dá voz às histéricas, reconhecendo uma verdade no sofrimento. Mais ou menos a mesma coisa, uma espécie de refundação da psicanálise, ocorre de 1918 em diante.

O congresso de Budapeste, em setembro de 1918, foi o primeiro congresso pós-guerra, na verdade a guerra ainda não tinha acabado, faltavam mais dois meses, mas é a primeira vez que os psicanalistas se reúnem depois de alguns anos sem se encontrar por causa da Grande Guerra. Foi um congresso sobre as neuroses de guerra. As apresentações mais importantes foram de Abraham, Ferenczi e Simmel.  Os três, para além da importância das teses teóricas que apresentam, tinham uma farta experiência clínica. Eles eram diretores de hospitais, de alas de hospitais de campanha ou de hospitais militares que receberam os feridos de guerra. Então, eles tiveram uma prática clínica, uma casuística enorme. E o debate sobre a veracidade, a verdade dos sintomas dos neuróticos de guerra era um debate de primeira página de jornal. Por quê?

Assim como as histéricas no final do século XIX eram acusadas, de certo modo, de descumprir as suas obrigações conjugais e que seus sintomas seriam uma maneira de se furtar às obrigações que o casamento impunha, foi amplamente discutida a tese de que os sintomas dos soldados eram falsos e que, portanto, eles estavam usando os sintomas para encobrir a sua falta de compromisso com as obrigações masculinas, militares e patrióticas. Esse era um debate que opunha a ala mainstream da psiquiatria e da neurologia da época.

Então, não é um debate teórico esse que Freud está fazendo. Ele não está discutindo a pulsão de morte e os sonhos dos neuróticos de guerra como um apêndice, como alguma coisa sem importância que o permitiria mudar um conceito da sua metapsicologia. Ele está fazendo uma intervenção no debate público. E é para esse ponto que eu estou chamando atenção. A prova disso são duas coisas. A primeira é estarmos atentos a como esse debate realmente ocupava a imprensa da época porque, logo após o final da guerra, vários processos judiciais ocorreram contra soldados vítimas do tratamento desumano – que incluía prisão, tortura, eletrochoque, etc. – e contra os combatentes que não queriam retornar ao campo de batalha e que, supostamente, se esconderiam por trás dos seus sintomas.

Em um dos casos mais emblemáticos – e temos todos os protocolos e documentos dessas atas da intervenção de Freud, ele chegou inclusive a ser uma testemunha – no julgamento de um psiquiatra que foi acusado de aplicar eletrochoques que levaram à morte alguns dos soldados – Freud testemunha e diz que os médicos estavam atuando como se fossem metralhadoras que obrigavam os soldados a voltarem à guerra, a voltarem às trincheiras. Ele compara o tratamento médico às metralhadoras.

Então, talvez quando lemos hoje um texto como Além do princípio do prazer, tenhamos a impressão de que se trata de um debate extremamente teórico e especulativo, como nas primeiras páginas que parecem várias especulações falando de pulsão de morte, além do princípio do prazer, etc. Teses difíceis com as quais quebramos a cabeça para entender. Parece especulativo, mas trata-se de uma intervenção em um debate público, em um debate extremamente vivo e atual. Eu acho extremamente importante ressaltarmos isso porque podemos ler o texto de Freud de outra maneira se tivermos em mente que ele está intervindo em um debate que justifica, que dá o fundamento metapsicológico e clínico para um tratamento que reconhece a verdade do sofrimento dos neuróticos de guerra.

Walter Benjamin afirmava que, nessa que foi a experiência mais bárbara da história recente, os homens voltavam dos campos de batalha não mais ricos, mas mais pobres em experiências. Eles não tinham o que falar, eles voltavam silenciados. Eles falavam através dos seus sintomas, eles falavam através dos seus corpos, onde o estampido das bombas estourava outra vez e repetia em sonhos e sintomas os mais diversos, em geral, corporais.

É muito curioso porque nos debates de setembro de 1918 em Budapeste, enquanto os três principais expositores – o Ferenczi, o Simmel e o Abraham – insistiam na tese da etiologia sexual dos sintomas, Freud defende que era possível abrir mão dessa tese. Ou seja, os discípulos eram mais disciplinados do que o mestre, como em geral o são. O próprio Freud reformula a tese sobre a etiologia exclusivamente sexual dos sintomas neuróticos.

Esse é o primeiro ponto que eu queria abordar. Dar um contorno ao texto como uma intervenção no debate público. Eu acho importante entender o contexto de produção dos textos do Freud justamente para entender esse caráter vivo; e sendo assim, o curioso, o paradoxal é que quanto mais nos situamos no contexto de 1918, 1919 e 1920, mais atual ele fica porque, de alguma maneira, conseguimos extrair o que há de vivo, que não é exatamente a parte especulativa ou a parte metapsicológica. Isso é superimportante, desde que entendamos a que causa o texto serve.

O segundo ponto que eu gostaria de abordar tem a ver com a famosa tese de Freud que, às vezes, descartamos rápido demais: “a anatomia é o destino”. Seria interessante nos perguntarmos quem são os anatomistas de Freud. Se vocês pegarem o Capítulo 6 de Além do princípio do prazer, encontrarão uma longa digressão biológica, que rapidamente gostamos de descartar como se fosse uma espécie de fantasia freudiana, de ideologia recreativa. Não é nada disso.

Freud, de alguma maneira, se serve ali do que havia de melhor na Biologia da sua época, do que havia de mais avançado na ciência da sua época. Claro que a ciência avança em relação a algumas das teses ali esboçadas, mas algumas das teses mais importantes – como a tese de que a morte não é apenas um acidente, mas a meta de toda a vida e que, ao contrário, a vida é um acidente – os imunologistas contemporâneos de alguma maneira as subscrevem.

No entanto, o ponto para o qual eu gostaria de chamar atenção não é esse. Vocês sabem que o texto Além do princípio do prazer foi escrito em duas grandes etapas. Ele tem algumas etapas, mas são dois grandes grupos. Há o manuscrito de 1919, que não tinha o Capítulo 6, e o manuscrito de 1920, que tem o Capítulo 6, que ele insere antes do último. O que era o seis passou a ser o sete. Nesse capítulo – que é justamente onde ele introduz a pulsão de morte, que tem aquela passagem enorme sobre a ciência e depois aquela passagem enorme sobre Eros – ele cita dois autores aos quais talvez não prestemos atenção.

Então, o ponto para o qual eu gostaria de chamar atenção é que Freud escreve o Capítulo 6 ao mesmo tempo em que escreve sobre a “Psicogênese de um caso de homossexualidade feminina”. Os dois textos são escritos ao mesmo tempo. A pesquisa que ali é feita é a mesma e dá base aos textos.  E o interessante é que esses autores defendiam na ciência a tese da bissexualidade originária do ser humano em 1918. O Steinach foi um dos cirurgiões pioneiros a fazer as cirurgias que hoje chamamos de redesignação sexual. Na época, chamava-se feminização e os médicos, os biólogos que Freud cita – sem mencionar esse ponto, mas nos quais ele apoia a sua biologia – são os biólogos que na época defendiam essa tese da plasticidade sexual e que defendiam e faziam as cirurgias, isso já em 1920, que hoje chamamos de cirurgia trans. Então, às vezes, achamos que estamos discutindo algo contemporâneo de maneira exaustiva, mas Freud já citava esses autores. Esse segundo ponto é só uma pílula para que depois possamos discutir.

O terceiro ponto que eu gostaria de trazer hoje – quem é da Escola já me viu falando sobre ele em outros eventos, vou falar dele rapidamente – é o episódio de Clorinda e Tancredo. Esse episódio está em uma passagem importantíssima de Além do princípio do prazer. Trata-se daquela passagem na qual – após apresentar no Capítulo 2 o Fort-da, os sonhos dos neuróticos de guerra, etc. – Freud dá um grande salto e fala sobre o caráter conservador e repetitivo da pulsão, dessa volta à origem, desse caráter regressivo que a pulsão tem.

Então, ele postula dois tipos de repetição: a repetição trágica e a repetição infamiliar, unheimlich. E, nesse momento, ele recorre a um episódio do poema renascentista “Jerusalém Libertada”, de Torquato Tasso, do século XVI depois de Cristo e que retrata uma batalha da Primeira Cruzada, ou seja, que teria ocorrido no Século XI – em que, basicamente, um guerreiro cristão apaixonado por uma muçulmana luta contra  ela a noite inteira sem perceber, pois ela estava utilizando uma armadura muçulmana. Ele não percebe que está em uma batalha singular com sua amada e a mata. Vocês conhecem a cena. Ele mata sua amada com um golpe de espada depois de lutar a noite inteira. Eu adoro imaginar essa cena da luta do casal apaixonado a noite inteira e, ao primeiro raio de luz, ele a mata. É nesse momento que ela abre a boca pela primeira vez, quando ele pergunta com quem ele havia lutado a noite inteira,  diz ter sido uma luta muito difícil e ela, em vez de dizer seu nome, pede-lhe o batismo. Ela pede que ele lhe dê um nome. E, então, ele entra em desespero porque percebe que acabou de assassinar sua amada.

Até aí, temos um enredo trágico por excelência. O herói foge do seu destino e o encontra. É importante ressaltarmos que Clorinda é uma mulher vestida com uma armadura masculina – parece um pouco Grande Sertão Veredas – e ela é muçulmana. Na próxima cena, Tancredo tomado de desespero pelo fim trágico do seu amor, entra em uma floresta unheimlich. Uma floresta estranha, inquietante, incômoda, infamiliar e lança sua espada aleatoriamente para qualquer lado e, em uma ânsia de fúria, essa espada encontra justamente uma árvore. E, de dentro dessa árvore sai a voz de quem? Justamente de Clorinda que diz: “Você me matou não uma, mas duas vezes”. Então, ele reconhece a voz dela.

Freud, então, diz que isso é o unheimlich, isso é o infamiliar. A primeira repetição é trágica, pois poderia acontecer com qualquer um. Essa repetiçõa, a segunda é infamiliar e trata-se de algo totalmente aleatório. A espada dele poderia ter batido em qualquer árvore, mas é justamente aquela repetição de um destino que o herói não escolheu, mas que o espera assim mesmo, como os vários casos que Freud conta da mulher viúva de três maridos consecutivos e assim por diante. Casos que encontramos com frequência na clínica. As nossas clínicas estão cheias de Tancredos e Clorindas. Se vocês lembrarem, é como nos filmes de Clint Eastwood, “A Conquista da Honra” e “Cartas de Iwo Jima”, que retratam a mesma guerra contada a partir de dois pontos de vista.  O ponto de vista dos americanos e o ponto de vista dos japoneses.

Ora, essa batalha que Freud narra no episódio de Tancredo e Clorinda retorna na última frase do texto. A frase na qual ele cita o poeta árabe Al-Hariri – “O que não podemos alcançar voando temos de fazer mancando” – que é uma citação do Alcorão. Assim, vemos o judeu Freud citando o Alcorão na última linha do seu texto. Se tivermos tempo, eu vou falar um pouquinho sobre quem era Al-Hariri e o que são os Maqāmāt, que são os poemas onde esses versos estão e que são justamente sobre essa mesma batalha, a batalha da Primeira Cruzada trazida por Freud com Tancredo e Clorinda, mas agora contada do ponto de vista árabe. Então, é como se tivéssemos a mesma batalha, como nos filmes do Clint Eastwood, contada de dois lados diferentes.

Vocês viram que três dos exemplos que eu trouxe têm a ver com guerra e com a possibilidade de contar a história a partir de diferentes ângulos.


Transcrição e estabelecimento do texto: Wilson Lima
Revisão: Cassandra Dias
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