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Infância e diferença sexual: novas ficções familiares?

Núcleo de Investigação Côco de roda – Psicanálise, a Criança e o Adolescente – Alagoas
Susane Zanotti e Viviane Nunes

O Núcleo de investigação “Coco de roda – Psicanálise, a criança e o adolescente”, recém-criado em Maceió-AL, escolheu em 2021 como tema de trabalho “a diferença sexual”, orientados pelo tema do CIEN/NR CEREDA – a diferença sexual e a sexuação. Partindo do que há de novo nas modalidades contemporâneas de eleição do próprio sexo, privilegiamos neste ano um percurso clínico, político e epistêmico: da diferença sexual à sexuação; a querela das crianças trans; amor e laço social quando o sexo biológico é incerto; a diferença sexual é (a)sexuada; o enigma da diferença sexual na clínica em Instituições; ser sexuado e cultura: modos de usar.

Para a conversação entre Núcleos da Seção Nordeste – preparatória ao X ENAPOL “O novo no amor – modalidades contemporâneas dos laços” recolhemos da cultura dois aspectos quanto ao sexo e ao gênero nas novas formas de laços familiares; advertidas do papel primordial desempenhado pela família na transmissão da cultura[1]. O primeiro se refere aos estereótipos de gênero, em meio a tantas lutas de movimentos sociais frente a atribuição de gênero a tudo/todos. O segundo, a não atribuição de gênero à criança.

Chamou-nos atenção uma postagem do perfil de Instagram @bem.mequeer que questiona a marca de roupas infantis Puket: por um lado, se apresenta como atual, moderninha, mas, por outro, reforça os estereótipos de gênero ao produzir roupas com cores predominantes (rosa para meninas e azul para meninos) e faz uso de palavras como “brave”, “fire”, “wild” nas roupas para meninos e “princess”, “la vie en rose”, “choco lover” para meninas.

Em outra direção, destacamos, o enunciado de Ausejo (2020) em sua contribuição ao “Ateliê online” de estudo da 6a. Jornada do Instituto Psicanalítico da Criança, intitulada ‘Congratulations, it’s a …’: “Uma nova criatura de uma terra dita sem nome, a criança do século XXI nasce em uma terra de liberdade sonhada pelos adultos, como um paraíso perdido”[1].

Acrescentado a esse retrato da nossa época, duas referências de Lacan, mencionadas por Racki[1] no argumento do X ENAPOL, mostram-se essenciais para abordar novos laços familiares e seus desafios na clínica com crianças:  1o.) “Toda ordem, todo discurso aparentado com o capitalismo deixa de lado o que chamamos, simplesmente, as coisas do amor…”[1]; 2o.) Prelúdio que Lacan fez em 1974[1] sobre a loucura de uma “ordem de ferro” vir no lugar da remissão amorosa de instâncias para orientar o desejo da cria falante. Relançamos, portanto, a pergunta apresentada por Racki (2021): “por onde entraria o amor em tempos de ‘nada é impossível’ e de nomeações de ferro? Em uma época caracterizada pela ânsia em satisfazer gozos e identidades (…) que saturam o ‘entre’ a partir de onde o amor palpita”[1].

O caminho trilhado para este ano no nosso Núcleo de pesquisa sobre a criança e o adolescente abarca a questão do amor para além do binarismo e nas famílias “pós-edípicas”, na proposta de investigar as identificações sexuadas primordiais a partir de uma perspectiva teórica e clínica.

Importante nesse debate contemporâneo, quanto à diferença sexual, distinguir a dimensão política, que se refere às lutas no campo do gênero e do reconhecimento em termos legais para aqueles que não se identificam com o binário homem/mulher, da dimensão clínica que se aproxima da parte íntima do ser[1]. Considerando a inscrição da diferença sexual na cultura e a sexuação enquanto subjetivação do sexo[1], é preciso cautela. Ansermet (2018) pondera que para abordar as questões da época atual é preciso se descolar do debate contemporâneo, se deixar ensinar pelo que a clínica diz e não partir de uma opinião a priori[1].

Nesse sentido, caminhar em direção a uma ética que se oriente a partir do real implica em “… verdadeiramente seguir o que o paciente enuncia, quer dizer, o surgimento de sua singularidade” (…) “Não é dizer, é seguir”, reforça Ansermet[1]. Se voltamos à clinica com crianças, deriva em “proteger as crianças dos ‘laços familiares’, de suas novas formas, das paixões que os habitam, do infanticídio secreto que é o desejo de morte escondido sob o laço familiar”[1].

Aproximamos as crenças sociais quanto à diferença sexual na infância às ficções familiares, sejam ligadas aos estereótipos de gênero ou à busca por significantes neutros, ‘assexuados’. O desafio está posto: “manter a prática da análise com crianças, colocando-nos no bom lugar, frente ao contexto global”[1]. Nesse contexto, reiteramos a posição do analista de “estar atentos a como … essas formas… permitem a criança ordenar as coordenadas de seu gozo…”[1].


[1] LACAN, J. Os complexos familiares (1938). Rio de Janeiro: Zahar, 1987, p.13.
[1]AUSEJO, M.T. <Congratulations, it’s a…!>. Zappeur JIE6, 2020. Disponível em: https://institut-enfant.fr/zappeur-jie6/congratulations-its-a/
[1] RACKI, G. Primeiro argumento. “Novos poros do amor”. 2021. Disponível em: http://x-enapol.org/pt/argumentos/
[1] LACAN, J. O Saber do Psicanalista. Aula de 6 de janeiro de 1972.
[1] LACAN, J. Os não tolos erram, aula de 19 de março de 1974.
[1] RACKI, G. Idem.
[1] AUSEJO, M.T. Idem.
[1] Jacques-Alain Miller, De la naturaleza de los semblantes. Buenos Aires: Paidós, 2011, p.153.
[1] Ansermet, F. Disrupciones en la procreación, el género y la filiación: una introducción. Enlaces Psicoanálisis y Cultura. No. 24, Grama Ediciones, 2018, p. 29.
[1] Ansermet, F. Idem.
[1] LAURENT, E. A análise de crianças e a paixão familiar. In: Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2011, p.38.
[1] LAURENT, E. A análise de crianças e a paixão familiar. In: Loucuras, sintomas e fantasias na vida cotidiana. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2011, p.43.
[1] Idem, p. 42.
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