skip to Main Content

O que é um cartel? Para responder, não vale colar![1]

Cleide Pereira Monteiro

“Esta vida é uma viagem pena eu estar só de passagem.”
(Leminski)

Inicialmente, gostaria de agradecer à Diretora de Cartéis e Intercâmbios da EBP – Seção Nordeste, Claudia Formiga, pelo convite e por ter se colocado a trabalho desde o momento de intitular esta nossa conversa de hoje. Um título feito a várias mãos.

A primeira formulação do título  – “Você sabe o que é um cartel? Não vale colar!” – inspirou-se em um momento vivido em um cartel sobre Psicanálise e Negritude, no qual exerço a função de Mais-Um. O cachorro de uma cartelizante começou a latir e ela, como tentativa de fazê-lo parar, diz: “Ulisses, pare! Você sabe o que é um cartel?” Em um segundo momento, na solidão que esta função de Mais-um convoca – em um cartel profundamente atravessado pelas questões das experiências de vida de cada cartelizante, mulheres marcadas pelo significante negro/negra – as ressonâncias em mim precipitam uma formulação (“não vale colar”) que teve o alcance de um dizer do qual recolhi frutos para reflexão desta fala dirigida ao trabalho dos cartelizantes (e interessados no cartel), a partir do endereçamento à EBP através da Seção Nordeste.

O que é um cartel?

Há várias formas de seguir com esta provocação, inclusive recorrendo aos textos de base, o que não será o caso, pois o tempo assim não permite. Apenas lembrar que Lacan, em A psiquiatria inglesa e a guerra (1947), inspira-se nas lições que extrai de Bion ao fazer uso no pós-guerra da experiência dos pequenos grupos sem chefe; mas será só quase 20 anos depois, em seu Ato de fundação (1964), da Escola Freudiana de Paris, que o cartel surge como o meio para execução de um trabalho que restaure a lâmina cortante da verdade freudiana2, como diz à época.

Voltemos a 1980, ao D’Écolage3. Naquele momento de descolagem e decolage de sua Escola, Lacan era “o  homem coberto de cartas” (e não de mulheres) às voltas com a aposta na dissolução cuja consequência seria um novo modo de entrada a partir de um laço social inédito. Ele dá partida à Causa Freudiana e para tal restaura o cartel como o órgão de base da Escola, propondo aprimorar os princípios básicos de seu funcionamento a partir de algumas condições. Nunca é demais retomá-las. Ele dirá que quatro se escolhem para empreender um trabalho que deve ter um produto próprio a cada um, não sendo, portanto, coletivo; a conjunção destes que se juntam em torno de um tema comum se dá em torno do Mais-um, cuja função é velar pelos efeitos internos advindos dessa empreitada, provocando nela a elaboração; após um tempo de trabalho, que deve durar dois anos no máximo, deve-se fazer a permutação, evitando, assim, o efeito de cola. Por fim, lembra que o esperado desta experiência não é o progresso, mas uma exposição a céu aberto dos resultados e das crises de trabalho.

Após algumas décadas, atravessadas muitas questões institucionais, inclusive a proposição do passe, continuamos a falar de cartel e a insistir com essa modalidade de trabalho que nem sempre acontece em céu sereno. Mas, afinal, como lembra Bernardino Horne4, “não há cartel sem crise”; resvalar para um grupo de estudo não é tarefa difícil. Quando assim acontece, o cartel deixa de fazer buracos na cabeça dos cartelizantes e perde sua potência de produção de saber. Vira uma corrida de “qual será o próximo texto”, ou “este aqui é interessante”. Mas interessante de qual perspectiva?

Longe de uma lógica de grupo ancorada em um líder ou didata que porta o saber, o cartel, como diz Miller5, “é uma máquina de guerra contra o didata e sua cambada”. O cartel, como uma “máquina antididata”, para usar uma expressão de Miller, gira o didata de cabeça para baixo, colocando todos em pé de igualdade, sem gradus ou hierarquia, porém, não sem a diferença de cada um.

Não recuar diante das crises, introduzir uma certa dose de coragem – “virtude que acompanha o ato analítico”, como lembra Horne6  – permite sair da alienação ao mestre e do horror ao saber, dando um passo rumo ao ato de tomar a palavra e despertar para a implicação de um trabalho na/de Escola.

O que nos leva a um fato contundente: o cartel é um dispositivo de trabalho impensável fora da Escola7. Não é à toa que Lacan faz do cartel o instrumento vivo de uma experiência sustentada na transferência de trabalho. O cartel nos ensina que a psicanálise não se transmite de um sujeito a outro, senão pelos caminhos de uma transferência de trabalho que cada um faz à Escola como destinatária de sua produção. Assim, o cartel é ancorado, de um lado, no interesse por um tema de investigação que se singulariza, e, do outro, no laço com a Escola. Esta última é endereço de quem a ela se dirige, mas, para se manter, depende do compromisso de cada um com o trabalho desejante. Uma coisa não vai sem a outra.

Bassols8 diz que o cartel é uma forma bonita de receber as pessoas. Ele nos propõe que “o único meio para que se entreabra [essa porta] é chamar do interior”. Então, só se faz do cartel uma porta quando se entra a partir de uma questão singular, de um ponto de exílio que tem o desafio de subverter a lógica grupal a partir da acolhida dada ao real em jogo na experiência com a reunião de solidões.

Nesta perspectiva interrogo: como um cartel pode se orientar por uma política antigrupal e anti-identificatória? Como fazer do cartel um coletivo à altura da posição analisante que leve em conta uma política da enunciação que não é coletiva?

Para responder, não vale colar!

Em O Banquete dos analistas, Miller afirma que “o cartel é uma microssociedade”, acrescentando que é “uma dessas soluções invisíveis que Lacan inventou e situou no princípio desse novo tipo de sociedade analítica, que fosse capaz de prescindir do Pai com a condição de servir-se dele”9.

Nesta propositura, o Mais-um não será tanto uma pessoa, mas um lugar de estrutura. Esse ponto nos parece fundamental: o cartel mostra que servir-se do lugar estrutural do Nome do Pai, do ao menos um, é o que permite prescindir dele.

“Sirvam-se do Nome-do-Pai” é o que profere o banquete dos analistas proposto por Miller. Nesse banquete, o uso do cartel como ferramenta que se serve desse lugar de estrutura é um convite a um tipo de trabalho que não deve nada ou deve o menos possível a um pai morto. Não há, pois, como ficar de braços cruzados enquanto o outro que está ao lado trabalha. Cada um comprometido com sua condição de trabalhador decidido incita o outro a trabalhar.

Lugar de trabalhadores solitários, porém acompanhados uns com os outros, o cartel não é um conjunto fechado fundado na exceção que define a regra de “todos iguais”. Não é aí nessa lógica masculina, tal como Lacan a concebe em suas fórmulas da sexuação, que devemos conceber uma experiência de cartel. É fundamental tomarmos a exceção desde um conjunto aberto que acolha a imprevisibilidade e a invenção. Do lugar de extimidade (está dentro da série e fora), o Mais-Um se orienta pelo furo e dele faz uso. Desde essa posição nem sempre confortável, visto que é aquele que estranha a intimidade do “todos em casa”, o Mais-Um coloca em xeque as identificações que muitas vezes se dão a partir de um ponto de idealização.

A partir dessas reflexões do Mais-Um como instrumento de uso, podemos dizer com Tarrab10 que, para pôr em ato uma política da enunciação que oriente o cartel, há que ter uma teoria da extimidade que possa ser aplicável ao grupo analítico, para que este não se torne consistente.

O desafio é fazer dos impasses, das inquietações e perturbações a expressão do heterogêneo que assegura e não paralisa o trabalho. Desconsistir o grupo é fazer valer a aposta no efeito de formação que um cartel pode promover.

Deixo então com vocês a questão sempre aberta – o que é um cartel – pois esta só se responde na experiência onde cada um joga com suas cartas, sabendo que não vale colar a resposta. Invente uma a cada vez, a cada experiência, pois, o cartel, ao estilo de um haicai, é um tasco de escrita onde se está só de passagem.


1 Trabalho apresentado na atividade “Acha-se cartel”, da Diretoria de Cartéis e Intercâmbio da Seção Nordeste, realizada em 03/06/21.
2 Lacan, J., “Ato de fundação (1964) ”. Outros escritos, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 2003, p. 235-236.
3 Texto publicado no Manual de cartéis. Belo Horizonte: EBP-MG, Livraria e Editora Scriptum, 2010.
4 Horne, B., “Sobre a crise no cartel: há cartel sem crise?” In: Brown. N. I (org). Cartel, novas leituras. Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, 2021, p. 104.
5 Miller, J.-A., “O cartel no centro de uma Escola de psicanálise”. In: Brown. N. I (org). Cartel, novas leituras. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021, p. 23.
6 Ibidem,  p. 105
7 Bassols, M., “A porta do cartel”.  In: Brown. N. I (org). Cartel, novas leituras. Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, 2021, p. 50.
8 Ibidem.
9 Miller, J.-A., “El Nombre del Padre o como valerse de él”. El banquete de los analistas, Paidós, Buenos Aires, 2011, p. 142.
10 Tarrab, M., “O cartel e a política lacaniana”.  In: Brown. N. I (org). Cartel, novas leituras. Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, 2021, p. 241.
Back To Top