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O cartel articula a Escola

Claúdia Formiga

“O ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito para outro pelas vias de uma transferência de trabalho” (J. Lacan).[1]

Quando Lacan, por ocasião da fundação de sua Escola em 1964, propõe o cartel como dispositivo privilegiado por meio do qual se deve realizar o trabalho de Escola, ele o posiciona no centro da formação do analista. Quer dizer, no lugar em torno do qual se situa a pergunta o que é um analista, pergunta cuja resposta aponta a um vazio de saber que convoca à elaboração.

Em 1980,[2] às voltas com as novas questões que o preocupavam quanto à formação do analista, Lacan aponta a esse lugar para o cartel, em sua proposta de retomada da Escola, cuja solução (pós dissolução), nesse momento, passava por “restaurar” o cartel como órgão de base da Escola, “aprimorando” o seu funcionamento. Em suas palavras:

(…) dou partida à Causa Freudiana – e restauro em seu favor, o o órgão de base retomado da fundação da Escola – ou seja, o cartel, cuja experiência (…), eu aprimoro a formalização.”[3]

E define, em seguida, uma composição mínima e uma lógica de funcionamento para o trabalho a ser aí desenvolvido. A composição: um pequeno grupo, de caráter transitório e sem líder, cujo produto deve ser “próprio a cada um”. Quanto à lógica de funcionamento, propõe algo que diferencia fundamentalmente do funcionamento de grupo: a presença de um elemento êxtimo aos demais componentes do grupo, o Mais-um, cuja função, especifica: “zelar pelos efeitos internos da iniciativa e provocar a elaboração”.

Como assinala Miller (1994)[4], trata-se, para Lacan, nesse momento, de resgatar, no trabalho de Escola a verdade da psicanálise, que “ao menos em sua dimensão institucional” havia se desviado em sua prática, com a intrusão do analista didata. Diz ele: “O passe, como o cartel é, do ponto de vista institucional, uma máquina antididata. E a Escola, com o cartel e o passe, (…) visa resgatar a psicanálise dos didatas”.[5] Trata-se, na lógica do cartel, de um tipo de transferência à Escola, transferência de trabalho, em que a mestria dá lugar à enunciação e a uma produção de saber que “descola” (e faz decolar) a Escola.[6]

Assim, se por um lado, podemos dizer que a experiência do trabalho em cartel representa uma mudança de posição importante na relação com o saber, para aqueles que dele participam, por outro, o cartel também articula a Escola, no sentido em que, como uma dobradiça, o cartel articula (une e separa) o dentro e o fora da Escola e permite que aí possa operar, moebianamente, as várias descontinuidades: do transitar entre os espaços interno e externo, da relação entre iniciantes e experientes, membros e não-membros…

Na entrevista em que discorre sobre o tema dos carteis na Escola, Romildo do Rêgo Barros nos permite desenvolver essa ideia quando propõe ler o cartel topologicamente, “como um instrumento que passa de uma face produção de saber à outra, porta de entrada na Escola, sem que se possa saber exatamente onde está o ponto de passagem”[7]. Diz ele: “o interesse em participar da Escola é já uma das facetas da decisão de produzir saber”, ao afirmar que o funcionamento da Escola deve transcender para o cartel, correspondendo este a uma “particularização” daquela. Assim, o cartel, como dobradiça que articula a Escola, se constitui como sua célula mínima, forma de laço social em que predomina o discurso analítico.

Na função de diretora de cartéis da Seção Nordeste senti-me convocada à instigante tarefa de pensar essa articulação entre cartel e Escola, a partir da leitura que fiz dos textos de referência sobre o cartel e a formação do analista.[8] Reconhecer que o trabalho de cartel inclui o real em jogo na formação do analista permitiu-me propor uma programação de atividades que permita interrogar, em primeiro lugar, as relações entre cartel e Escola. Esse ponto, escolhido como fio que atravessa a nossa proposta de trabalho com os cartéis, nos lança ainda uma série de indagações, relacionadas a função do cartel na Escola, tais como: O que especifica o tipo de funcionamento proposto pelo cartel que o diferencia da formação de grupos? É possível dissociar cartel de Escola? Há cartel sem um endereçamento de sua produção? Perguntas às quais o contexto atual de isolamento em que estamos e mesmo os desafios trazidos pela criação das novas seções na EBP vieram acrescentar, ainda, outras: Que impacto tem o atual contexto de pandemia e de isolamento dos corpos sobre o trabalho de cartel? Qual a função do cartel no contexto da Nova Geografia? Qual a sua utilidade como forma de conter a dispersão em meio à profusão de atividades on-line? Questões que nos colocam desde já a trabalho enquanto permitem uma reflexão sobre o sentido e os usos do cartel na Escola, em suas vertentes epistêmica e institucional. Desenvolvê-las nos permitirá contemplar as novas tonalidades conferidas ao cartel na atualidade.

Com uma conversação sobre o cartel, acontecida agora em 3 de julho, demos início às atividades desta diretoria. A proposta de dar um start no trabalho de cartéis com um momento mais restrito, interno à Seção, visando facilitar o encontro entre cartelizantes e proponentes a cartel, se cumpriu de forma muito satisfatória. Para essa ocasião, convidamos, um a um, cartelizantes e participantes das Associações que compõem a nossa comunidade de trabalho e contamos com a valiosa contribuição da colega Cleide Monteiro, membro EBP/AMP, cuja transmissão firme dos conceitos, aliada à simplicidade, conseguiu iluminar, para um público atento de cerca de 80 participantes, aspectos importantes do cartel em sua relação com a formação do analista.

Você sabe o que é um cartel? Pra responder, não vale colar! A partir do título instigante com que nomeou a sua fala, Cleide nos brindou com um percurso sobre o cartel na Escola de Lacan, que aludiu tanto a vertente de laço social, que aponta à redução dos efeitos de grupo, quanto ao cartel como estratégia de trabalho que enlaça o coletivo Escola à enunciação do ponto onde cada um se encontra em sua formação.

Os momentos de ‘”Acha-se cartel” (título inspirado na lista “Procura-se cartel”) tem como propósito acompanhar de perto o trabalho dos cartéis e facilitar a quem quer que deseje – membros, participantes das Associações e frequentadores das atividades da Seção – a “cartelização” de um tema de interesse.

Para esse primeiro encontro, uma novidade: a criação de um Mural para  os cartéis no whatsApp. Em lugar dos papeizinhos que antes enfeitavam as paredes de nossas sedes, agora também pelo aplicativo pode-se propor um tema de interesse e acompanhá-lo até o match da constituição do cartel. A Paulo Carvalho e Rose Mooneyhan, que integram comigo a comissão de cartéis, meu agradecimento pela originalidade na execução dessa ideia e também pela dedicação e entusiasmo com que vêm contribuindo com o trabalho desta diretoria, e a Késia Ramos e Bruno Senna, agradeço o belíssimo vídeo que produziram, marcando com Arte essa ocasião. Por último, faço um convite ao trabalho. E ao trabalho em cartel! Que sigamos com a tarefa de manter viva a discussão sobre as questões que tocam ao cartel e à formação do analista, na aposta em que possamos recolher daí efeitos de formação.


[1]Lacan, J. – “Ato de Fundação – 21 de Junho de 1964”. Outros escritos. p. 242.
[2]Lacan, J. – “D’ Écolage”. Disponível em https://www.ebp.org.br/carteis-e-intercambios/apresentacao/. Acesso em 10.07.2021.
[3]    Lacan, J. – “D’ Écolage”.
[4]Miller, J-A. – “O cartel no centro de uma Escola de psicanálise”. Cartel, novas Leituras. Noemi Brown (org). São Paulo. EBP. 2021.
[5]Op. cit. p. 23.
[6]Ref. a D’ Écolage, título em que Lacan brinca com a homofonia entre “d’écolage” (algo próximo à desescolarização) e dècolage (de descolar, mas também de decolagem), nesse momento de “decolagem” de sua Escola, em que ele propõe para ela uma nova formalização.(cf. N.T).
[7]Barros, R. – “Os cartéis na EBP” (entrevista realizada por Rodrigo Lyra e Noemi Brown) In: “Cartel, novas leituras”. Noemi Ibanez Brown (org.). São Paulo. EBP. 2021. p. 53.
[8]A esse respeito, indico o livro “Cartel, novas leituras”, coletânea organizada por Noemi Brown (EBP/AMP), que traz valiosas contribuições sobre o tema do cartel elaboradas por autores da EBP e da AMP.
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