Jovens não binários num mundo binário: a diferença sexual questionada*

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Da reportagem “Um futuro sem gênero” chega-nos a notícia da agressão a um jovem de San Francisco, nos EUA, que regressava à casa no ônibus escolar e que por vestir roupas que não o identificavam nem como masculino nem como feminino fora atacado por outros dois adolescentes, que lhe provocaram queimaduras de segundo e terceiro grau, “como símbolo de deboche, desprezo e nojo”. A notícia impressionou à fotógrafa Chloé Aftel, que junto à jornalista Rachele Kanigel iniciou uma reportagem fotográfica e entrevistas com outros adolescentes das mesmas condições na mesma região. Liberdade, aceitação e neutralidade foram as palavras mais repetidas em seus discursos. Nem masculinidade, nem feminilidade como algo preciso. Eles desejam sentir-se livres sem as pressões associadas ao sexo. Destacamos a expressão “Não binários num mundo binário” de Micah, jovem blogueiro entrevistado, preocupado como outros jovens de sua mesma condição em encontrar seu lugar num mundo que observa dividir-se apenas “para meninos”, “para meninas”, sem um leque mais amplo de possibilidades.

Mas François Ansermet, no artigo “Elegir el sexo”, observa que já estamos num sistema 360° – tal o nome de uma associação em Genebra que agrupa gays, lésbicas, travestis, transexuais, transgêneros, intersexos e heterossexuais sem exclusão alguma. Um sistema 360° onde tudo há de ser possível sem o limite do impossível. Ainda Ansermet coloca a questão que nos interessa introduzir na discussão: o que podemos escolher? Podemos escolher o sexo? Isso nos leva a considerar a questão da diferença sexual.

Em São Paulo funciona, desde 2010, um serviço no hospital das clínicas denominado Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, que recebe crianças e adolescentes. Segundo entrevista com o Dr. Saadeh, coordenador do serviço, a questão do não binário está muito presente nos adolescentes, que estão num tempo de experimentação e preferem permanecer nele sem escolher, e para os quais cabe com frequência o recurso do bloqueio da puberdade para que os caracteres sexuais secundários não se desenvolvam e evitar assim um sofrimento maior.

Na conferência “Género y goce”, proferida no encerramento das jornadas da ELP de 2014, Éric Laurent disse que a subversão lacaniana se enuncia de outra forma que a do “gênero”, pois Lacan não parte da abertura de um campo do direito ao gozo, parte de que a psicanálise tem que se virar com o gozo em uma dimensão de imperativo, e que de fato esse gozo não tem relação direta com os signos do sexuado. Os caracteres sexuais que aparecem no corpo e que as manobras trans colocam em questão, permanecem secundários(!), posto que não é desses traços que depende o gozo do corpo. É o que mostram os jovens que se nomeiam não binários.

Por estrutura, o sujeito adolescente se confronta com uma nova irrupção do gozo no corpo, mais um furo no universo do sentido sexual. Um tempo em que será necessária uma nova aliança entre a pulsão e as identificações que se reconfiguram, um tempo muitas vezes de desorientação, de errância. As nomeações de gênero – que se multiplicam num mundo onde o nome-do-pai não mais orienta os discursos – estão ao alcance como instrumento que ambiciona transcender os limites de uma lógica binária ao nível da identificação sexuada. Isso pode levar a acreditar que o real da diferença sexual, o ponto de identificação sexuada, é manipulável sem nenhum risco.

No seu curso “Peças soltas”, Jacques-Alain Miller observa que desde as teorias do gênero existe uma embriaguez pelo questionamento do conceito de identidade, que leva à decisão teórica de substituir a identidade pela identificação. Na substituição generalizada da identidade pela identificação, a identidade sexual resulta afetada. Nessa substituição desconstrutivista trata-se de um processo de identificação sem limites.

Miller observa que Lacan atingiu a identidade sexual ao formular Não há relação sexual e A mulher não existe, e que os estudos de gênero efetuam uma segunda generalização, a da inexistência de toda identidade sexuada. Para esses discursos que só reconhecem os semblantes, A mulher não existe, o homem tampouco. Todo processo de identificação sexuada deve captar-se um a um e só é possível de se abordar como montagem particular.

O múltiplo atinge a identidade sexuada, tanto a partir das teorias do gênero quanto das teorias queer. Assim, cada sujeito, num ato performativo, se autoriza de sua posição sexuada num processo de autonomeação sem limite, onde nada se diz do real da diferença sexual.

Quando Judith Butler, no ensaio intitulado É o fim da diferença sexual? aborda o tema da diferença sexual, é preciso ler a negação: “Não formulo a questão acerca do fim da diferença sexual com o propósito de alegar a seu favor.” Ela prefere deixar a diferença sexual como um conceito fronteiriço. Lugar da relação entre o biológico e o cultural, e que como questão não se pode contestar. Entendemos que não se pode contestar porque desaparece como questão, mesmo intuindo-se um real que leva a considerar no final do ensaio a diferença sexual como “aquilo que transtorna qualquer postulado identitário”.

Também vemos a decisão política das teorias queer de apagar a questão, quando sustentam, na mesma linha desconstrutivista – segundo a Beatriz Preciado – que “Não há diferença sexual. O que existem são multidões de diferenças”.

Na mencionada conferência de Laurent lembra-se que Lacan rompe com o que Butler chama escola francesa feminista, que parte de um fundamento cultural e simbólico do sexuado na diferença sexual. Para Lacan e para a psicanálise o sexo está preso, não numa idealidade da diferença sexual, senão na maneira em que o sexo é a-sexuado, ou seja, tem relação com o objeto a a extrair do corpo!

E retomando Miller em “A relação corporal”, Laurent diz que a política das desidentificações – que toma como referência o sujeito do significante – tem um limite que é preciso interrogar a partir do fato de que o gozo deslocalizado precisa de um espaço para inscrever-se que é o corpo. O limite do corpo como consistência – oposto à função sujeito, que em essência é uma função variável e inconsistente – é o que encontramos no último ensino de Lacan. O que lemos no Seminário 23 é que aquilo que mantêm unido o parlêtre não é o simbólico e o discurso. O que o mantém unido é a consistência de um corpo articulado a um gozo. A clínica da escolha do sexo revela – de acordo com Ansermet – que é preciso ir mais além das identificações para considerar o real em jogo na diferença sexual. Assim, será possível uma leitura das práticas contemporâneas da sexualidade numa lógica da subjetivação que coloca em jogo a escolha de um tipo de gozo.

Em 2015, M.-H. Brousse nos colocou uma questão com a qual termino sem concluir: Hoje não é mais certo que a escolha de gozo esteja ligada à função fálica. Temos as autonomeações que se derivam do aspecto performativo do gênero que são uma solução pelo Ego. Uma solução pelo escabelo. Tentativas do sujeito se fazer um corpo, prescindindo do nome-do-pai, mas sem dele se servir?

Blanca Musachi (EBP-AMP)


*Trabalho do cartel “Adolescentes: a cada um seu sexo”, integrado por Nohemí Ibañez Brown, Teresa Pavone, Nancy Carneiro Grecca, Flávia Cera e Mais-Um Patricio Alvarez da EOL-AMP (Apresentado nas Jornadas da EBPSP 2016).
**N.E.: Texto publicado originalmente no site do XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, 2016: “Adolescência, idade do desejo”.
Bibliografia:
ANSERMET, François: “Elegir el sexo”, Boletim Tiresias, publicação da 13a Jornadas da ELP, Madrid, 2014.
BUTLER, Judith. Dehacer el género, cap. 9 “? El fin de la diferencia sexual?” Paidós, Barcelona, 2006.
BROUSSE, M-H. Conferência “Psicanálise, gênero e feminismo”. USP, 2015 (Notas pessoais).
BROUSSE, M.-H. Conferência “Corpo de Mulher” Jornadas EBP-SP 2015 (Notas pessoais).
MILLER, J-A. Piezas sueltas, cap. XIX La relación corporal. Ed. Paidós.
MUSACHI, G. “GLTTBI”, em Uniones del mismo sexo. Grama, Buenos Aires, 2010.
LACAN, J. Seminário livro 19, …ou pior, cap. I., Ed. Zahar.
LAURENT, E. Género y goce. Conferência nas 13a Jornadas da ELP 2014. Ed. Gredos-ELP, Barcelona, 2014.
PRECIADO, B. “Multidões queer. Nota para uma política dos anormais”, em Revista Estudos feministas, Vol. 19, nº 1, Florianópolis, 2011.