Entrevista com Renato Janine Ribeiro, por Cleyton Andrade
É com muito prazer que contamos com a presença do Professor Doutor Renato Janine Ribeiro para esse primeiro número do BOLETIM DOBRADIÇA da Diretoria de Cartéis e Intercâmbios. Nosso convidado dispensa apresentações, embora nunca seja demais lembrar que é professor titular de ética e filosofia política na USP, foi ministro da Educação e é um nome obrigatório para os debates sobre ética e política. É autor de diversos livros, dentre eles A sociedade contra o social (2000), vencedor do Prêmio Jabuti, A Boa Política – ensaios sobre a democracia na era da internet, lançado em 2017, e de A Pátria Educadora em Colapso (2018), no qual relata sua experiência como Ministro às vésperas do impeachment da presidenta Dilma Rousseff.
Trabalhamos com uma noção de Intercâmbio como um diálogo com outros campos do conhecimento, na aposta de criar espaços de uma ecologia de saberes litorais com o saber psicanalítico. O contexto da atual pandemia do novo Coronavírus pauta nossa realidade com alguns significantes mestres, dos quais não se pode ou não se deve escapar. Nesse sentido, o que nos reúne para essa conversa sobre ética e política é o laço social e seus impasses. Nesse sentido, seja bem-vindo, Professor Renato Janine Ribeiro.
Eu gostaria de começar com a seguinte questão: Freud, em O mal-estar na cultura, apontou o que seriam as três causas para o sofrimento: o mundo externo com suas vicissitudes; o próprio corpo; e os laços sociais. Sendo que este último é a maior fonte de sofrimento. Acontecimentos decorrentes da atual pandemia da COVID-19 incidem sobre essas três fontes: vem da natureza, do mundo externo; contamina e adoece o corpo; e ainda produz efeitos na dinâmica dos laços sociais. Uma situação como esta, de convergência e sobredeterminação de elementos, constitui uma condição de possibilidade particularmente propícia para uma questão ética? Ou, justamente pelos mesmos fatores, pode reunir condições para uma suspensão ética dos laços sociais?
Renato Janine Ribeiro: uma situação desse tipo, do Coronavírus, é uma situação que coloca tudo em jogo, tudo em risco. Não temos uma crise desse porte desde a Segunda Guerra Mundial, como bem notou Angela Merkel. Num certo sentido, agora é até pior, porque afeta o mundo todo. A Segunda Guerra Mundial não afetou várias regiões do mundo ou as afetou pouco. O Brasil, embora fizesse blecaute nas cidades litorâneas, como no Rio de Janeiro, não teve ataques dos nazistas ou de outras tropas ao seu território continental. Por isso, é muito assustador que esteja afetando o mundo inteiro – talvez com exceção da pequena ilha de Tristão da Cunha, com trezentos habitantes, no meio do oceano Atlântico, e de alguns arquipélagos da Oceania.
Se comparamos com outras pandemias – e muitos comparam com a peste negra –, que às vezes assolaram o mundo, vemos que várias delas ultrapassaram fronteiras. Houve pestes que, do Oriente, chegaram até o Império Romano – período em que não havia contatos rotineiros entre um e outro. Mas creio que nunca algo foi tão longe assim, porque mesmo essas pestes pré-1500 não chegavam ao Continente Americano, afetavam relativamente pouco a África Negra e outras partes do mundo – da Oceania, nem se fala. Desta vez estamos com algo muito amplo: isso torna muito difícil a questão do que vai ser o mundo, o que inclui também a questão ética.
O que vai ser o mundo? Vemos, por um lado, a inutilidade da riqueza. É muito óbvio numa situação dessas, em que as pessoas podem ser afetadas e morrerem sendo ricas ou pobres. Podem até ter sido as ricas que trouxeram o vírus, voltando de viagens internacionais. Se estivéssemos isolados, talvez não tivéssemos o vírus, talvez a Venezuela tenha menos o vírus porque as pessoas não viajam para lá. Por outro lado, a desigualdade social se torna clamorosa quando temos populações que podem se confinar bem, que podem viver sem sair de casa para trabalhar, que não dependem tanto da circulação e não vão morrer de fome por conta disso, ou mesmo porque têm espaço suficiente para se isolarem. Paulo Saldiva, um grande médico, disse que na primeira morte de Coronavírus que foi verificar, viu em poucos metros quadrados três famílias morando juntas. Muita gente por metro quadrado, espantoso, chocante. A questão ética é o que isso nos traz? Vai exigir que caminhemos para uma sociedade mais justa? Essa seria uma possibilidade. Pensar que certos excessos de consumo são inadequados, pensar num compromisso de todos com todos, pensar que devemos acudir quem tem menos dinheiro. Talvez. Isso sem chegar a nada de marxista.
Marx propunha a abolição da propriedade privada, dos meios de produção. Hoje ninguém sabe o que isso quer dizer, na prática. Mas reduzir a desigualdade gritante dos salários e das propriedades seria absolutamente necessário, hoje. É uma medida ética fundamental, que pode ser efetivada de muitas maneiras: pode ser uma renda básica garantida a todos; pode ser uma tributação maior dos mais ricos; pode ser a garantia a toda e qualquer pessoa de certos elementos básicos. Agora está em jogo a sobrevivência, mas deveríamos incluir a boa educação, a saúde pública universal, o acesso à cultura, a um transporte urbano menos desigual. Deveríamos discutir o caráter ético de uma sociedade em que residentes dos bairros ricos recebem empregadas domésticas que demoraram duas horas para chegar lá e vão demorar duas horas para voltar a casa. Se o mundo voltar a progredir, daqui a cinquenta ou cem anos essa será uma mancha quase tão odiosa quanto a escravidão no passado. Temos de enfrentar essas questões éticas.
O ponto crucial aqui, e que não me parece particularmente do interesse ou da atenção de Freud, é que essas questões éticas são intensamente políticas. Estão intensamente ligadas à desigualdade social. Estão ligadas ao fato de que há pessoas muito ricas e que podem se sair bem melhor na vida do que os muito pobres. E que estes últimos não só não têm chance de valorizar os talentos que têm, porque não têm oportunidades, como também, numa situação dessas, correm o risco maior de serem mortos. Esse é o grande ponto que vai além da discussão habitual da psicanálise, mas do qual a psicanálise não deveria fugir. A psicanálise deveria enfrentar realmente a questão da miséria, a questão da desigualdade. A ética, neste sentido, não é geralmente a questão que aparece no primeiro plano da psicanálise – até porque os avanços da psicanálise, graças a Freud, se deram justamente porque ele decidiu procurar ver o que as pessoas de fato viviam, e não como deveriam viver. Freud foi um cientista porque suspendeu o juízo ético, embora o que a época dele entendesse como ética seja muito diferente do que hoje chamamos de ética. A época de Freud entendia por ética o que é para nós um moralismo podre. Enquanto o que chamamos hoje de ética – como, por exemplo, a preocupação com a igualdade e a oportunidade etc. – naquela época seria extremamente subversivo. Seja como for, essa é uma questão que deve ser colocada. Deve ser mais colocada na psicanálise e na psicologia em geral.
Cleyton Andrade: É inevitável ser capturado pelo título de um dos ensaios do livro A Boa Política, pelo jogo de palavras que faz com a inveja do pênis: “A inveja do tênis”. O senhor poderia nos falar um pouco sobre uma relação que há entre esse ensaio e uma outra ideia que me parece fundamental no seu livro, a de um conflito inevitável entre república e democracia tendo o desejo como ponto central.
Renato Janine Ribeiro: o ponto de partida deste ensaio – que até pensei que poderia dar nome ao próprio livro – é a ideia de que muitas vezes o que os mais pobres querem, sobretudo os adolescentes, não é o necessário, não é o que é moral, é o que apela ao desejo. Pensemos em casa, trabalho, educação, saúde, transporte, segurança, que são valores positivos, sociais, de que a sociedade necessita – e que, por uma curiosa coincidência, estiveram vários deles nos cinco dedos da mão de Fernando Henrique Cardoso quando concorreu com sucesso à presidência da república em 1994. Pois bem: esses valores positivos, éticos e morais, não são os que apelam ao desejo dos jovens. Os jovens querem prazer. Os jovens desejam. Daí, o tênis.
Este ensaio tentava entender um fenômeno assustador nos anos 1980 e 1990, que era um menino pobre matar ou agredir um rico para pegar um tênis de marca. Isso levava a uma série de indignações, com pessoas criticando a futilidade. Bem, o fútil não estava no pobre, estava no rico. O fútil estava no fato de que a sociedade colocava isso como um objeto de desejo importante, intenso. A ideia é: como se dá esse desejo? Peguemos algo que aconteceu, se não me engano, no começo de 2014, não tenho certeza exata da data: os rolezinhos, em que adolescentes pobres, negros, de periferia, foram em grandes grupos aos shoppings. E é claro que eles têm todo o direito disso! Mas isso criou um pavor, embora não tenha havido ocorrências de assalto. O fato de dezenas, talvez centenas, de jovens negros pobres entrarem num shopping causou desespero nos donos da loja, susto na segurança e evidenciou, ao mesmo tempo, que o desejo desses garotos pobres era de terem as mesmas coisas que os garotos ricos. Por que que os outros têm e nós não? Um certo elemento do conflito social está presente aí. A ideia de que você tem um desejo vai se tornando um fator cada vez mais importante na sociedade contemporânea, um desejo que é vendido constantemente pela propaganda televisiva e agora, com a internet e tudo mais, esse desejo não pode ser realizado por todos.
Agora, curiosamente, se a privação de algo necessário e útil pode ser melhor aceita pelos pobres, pelos que estão privados disso, é porque eles até podem entender que a pessoa que tem a casa, o emprego bom, chegou lá graças ao seu trabalho. Mas o fato de você ter acesso a algo que é puro prazer, que é puro desejo, não tem justificativa moral. Por que que um menino vai ter um tênis de grife e outro vai ter um tênis ruim? Não existe nenhuma justificativa moral para a diferença de acesso de um e de outro. Então, aí temos o desejo em estado puro e a guerra de desejo contra desejo também em estado puro.
Aqui vejo o que chamei de oposição entre democracia e república. O próprio da democracia é o desejo. Ao dizer que a democracia tem a ver com o desejo, entendo que ela vem de baixo para cima. Na democracia, criação grega, as pessoas querem realizar o que apela à sua satisfação, seu prazer. Já a república, invenção romana, é um regime de contenção, de renúncia, de abnegação. Então, supostamente, os governantes, e mesmo os cidadãos romanos, sacrificam os bens e a própria vida pela pátria. A desigualdade na república romana se sustenta na ideia de que os ricos ou nobres em algum momento entregam a vida pela pátria – o que não se pediria necessariamente aos pobres. Isso é mais ficção do que realidade, vejam bem, mas é a maneira como a república se constitui.
Agora, no caso dos gregos, quando vemos em vários pensadores do século V a.C. uma aversão à democracia que vigorava em Atenas, essa aversão é justificada porque os pobres querem tirar os bens dos ricos. Querem ter uma vida tão confortável quanto a dos ricos. E é esse o ponto que me parece crucial na democracia: a busca do conforto, a busca da igualdade, a busca de algo parecido com o que têm os ricos. Isso é algo que uma sociedade capitalista, como a atual, ao mesmo tempo suscita e reprime: suscita porque gera em todos esse desejo intenso de uma coisa muito boa, mas, ao mesmo tempo, não quer que todos tenham acesso. Quer uma desigualdade. Quer que só tenha acesso a isso quem conseguiu dinheiro suficiente para ter uma bolsa de vinte mil reais, um tênis caro, uma roupa valiosa… Esse é um fator de intenso conflito social e é para isso que quis chamar a atenção neste ensaio.
Cleyton Andrade: Para finalizar, eu gostaria de explorar mais um aspecto que o senhor trata no seu livro A boa política: ensaios sobre a democracia na era da internet. O senhor aponta que a internet oferece uma terceira solução a alguns impasses para a democracia moderna, que é a possibilidade da presença à distância. Entretanto, ela, ainda assim, não é uma Ágora. Poderia nos dizer um pouco mais sobre esse descompasso entre a viabilidade de uma “presença à distância” e ainda assim não ser uma Ágora?
Renato Janine Ribeiro: Quando a internet atingiu seu grande impacto na década de 2000, quando começou a crescer, bem antes de termos as redes sociais – quando você podia fazer uma página e facultar que outras pessoas comentassem – quando tudo isso aconteceu, acreditei que tínhamos diante de nós uma mudança decisiva que, tanto eu quanto muitos outros, chamamos pelo nome de ágora: a praça, na democracia ateniense, em que se reuniam os cidadãos para tomarem uma decisão coletiva, na presença uns dos outros. Ou seja, parecia que a internet permitiria superar uma dicotomia que aconteceu na democracia. A democracia antiga era intensa, mas se abria a poucos, apenas a quem podia comparecer à praça e estar em conjunto. O que, no máximo, seriam alguns milhares de pessoas morando num espaço restrito a alguns quilômetros quadrados. Muito mais do que isso, não era possível. Havia uma limitação geográfica e demográfica da democracia antiga.
A democracia moderna, que é muito mais abrangente, pega sociedades bem mais amplas. Mas é impossível a presença simultânea de todos a todos, porque mesmo num país menor, como a França, seria impossível todos, dezenas de milhões, reunirem-se numa única praça em Paris. Ainda mais as pessoas dialogarem entre si.
A internet permitiu essa presença à distância, se posso falar assim. Podemos estar presentes uns aos outros, mesmo estando longe. Podemos também, outro ponto importante, ter acesso à palavra publicada, com muito mais liberdade. Podemos publicar nossas palavras sem precisar de um capital enorme, que seria o do dono de um jornal, de uma TV. Fica bem mais democrático o acesso à internet enquanto veículo de comunicação e podemos ouvir ou nos informar com mais facilidade e menos custo. O que, por sinal, reduz o consumo de jornais e permite o consumo de outras formas de comunicação, algumas muito boas, outras péssimas.
Isso trouxe uma possibilidade de discussão notável, que foi assumida por gente diferente entre si, mas que tinha em comum o entusiasmo. Contudo, o que está acontecendo agora me parece que é pior do que não ser ainda uma ágora. É um desvio grande do significado dela: passamos a ter uma sociedade na qual a mentira ficou tão forte, tão intensa, que surge uma quantidade de pessoas cuja prática é a mentira, porque dessa maneira conseguem resultados políticos. Isso aconteceu no Brexit, bem como na eleição de Trump – e, ao que parece, na eleição brasileira também, segundo as reportagens de Patrícia Campos Mello publicadas na Folha. E há um nível de mentira que é pura maldade. Há quem mente só para causar mal aos outros, divulgando notícias falsas, fazendo campanha contra as vacinas, levando assim a ressurgirem doenças praticamente eliminadas. Isso já aconteceu no passado, mas adquire hoje uma dimensão gigantesca.
Seria preciso hoje, em relação à internet, um critério ético muito forte. Como faremos esse instrumento admirável de comunicação, de divulgação, de tudo o mais, se tornar mais forte e perder o elemento nocivo, negativo? É fundamental, para isso, pensarmos na formação das pessoas para um espírito mais crítico com relação ao que leem. Há coisas mais ou menos óbvias para uma pessoa culta: uma informação que chega pelo WhatsApp e não tem fonte confiável é falsa! As chances de ser mentirosa é gigantesca. Se você tiver uma informação de saúde sem fonte bibliográfica confiável, ela é falsa! Se falaram “doutor fulano” e não deram sobrenome, o lugar onde ele trabalha, o lugar onde se formou, universidade onde fez a sua pesquisa, essa notícia provavelmente é mentirosa! No entanto, essas notícias se espalham com uma facilidade gigantesca. Quer dizer, soma-se uma vontade de mentir com uma disposição ingênua, gigantesca, a aceitar a mentira. São dois fenômenos diferentes que se deveria estudar e enfrentar, para a internet realmente desenvolver suas potencialidades positivas, para ela ser um veículo de troca de ideias, de enriquecimento do conhecimento e tudo.
O espantoso na internet é ela proporcionar um nível de informação enorme, mas que não se traduz necessariamente em conhecimento – nos remetendo à qualificação, à formação, sinônimos da educação – e consciência, a qual é um valor moral. Esses três elementos –conhecimento, educação, consciência – não são consequências automáticas de você ter uma quantidade gigantesca de informação. Ao contrário, infelizmente parece que essa quantidade gigantesca de informação acaba tendo efeitos mais negativos do que positivos. Mas isso terá que mudar! Penso que a educação formal, nas escolas, a televisão e a própria internet, deveriam se empenhar em promover esse tipo de formação e tomar esse tipo de cuidado.
Cleyton Andrade: Muito obrigado! Eu agradeço em nome da Diretoria e da Comissão de Cartéis e Intercâmbio, esperamos ter novas oportunidades para novas conversas.