Editorial Boletim Dobradiça #03

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Nohemí Brown

Temos em mãos um boletim mais, o terceiro desta nova série e último da presente Diretoria da EBP. A cada Dobradiça, no espaço O Cartel enlaça, contamos com a elaboração de colegas, principalmente AMEs, entorno de uma pergunta que se apresenta como incontornável. Da qual simplesmente não podemos recuar nem ignorar. Neste boletim, no meio do momento em que nos encontramos, no auge de uma pandemia, e diante do fato de que o cartel se mantém de forma viva como dispositivo de trabalho na EBP, com um número crescente de cartéis em funcionamento, as questões que surgem são várias. Com o confinamento o cartel se revelou uma verdadeira máquina de guerra, mas contra o que? Como coloca Gerald Wacjman, “o mundo mudou. As guerras também.”[1] Retomamos o termo usado por Jacques-Alain Miller “cartel como máquina de guerra”[2] que embora seja um termo proposto por Deleuze e Guattari[3], ele toma outros contornos e alcances em nosso campo quando o pensamos articulado ao cartel. O cartel implica certo forçamento para que não se torne simplesmente algo da ordem do solidário, do refúgio, da compreensão, mas que busque dar lugar à divisão de cada cartelizante sob a forma de trabalho. Uma máquina de guerra que leva em conta o mal-estar não para eliminá-lo, mas para tratá-lo e fazer dele uma arma que nos coloque a trabalho.

Com relação a esta questão, Sandra Grostein ressalta o valor da proposta de Lacan no que diz respeito ao trabalho em cartel. Ela precisa que se trata de um trabalho de Escola e não um trabalho na Escola. Pontuação importante que nos permite circunscrever a dimensão do trabalho colocado em jogo no dispositivo. Neste sentido, Iorgan Gurgel acrescenta que ele se articula à formação do analista. A formação implica um laço do qual o cartel faz parte, um laço no qual o furo está presente no sentido mais estrito do termo, o que problematiza a questão. Henri Kaufmanner coloca o valor da persistência neste dispositivo, da transferência de trabalho, que nos coloca diante da dimensão do Desejo de Escola. Estes três textos nos permitem cernir ainda um ponto, situando que há a dimensão do um por um, mas implica o coletivo em uma topologia que se complexifica. O “um por um” sem essa dimensão do coletivo seria da ordem da dispersão? O cartel é a melhor forma de enfrentar a solidão frente ao infamiliar dos tempos atuais?

Nesta linha temos contribuições de Ana Tereza Groisman, Cleudes Slongo, Maria Wilma Farias, Marilsa Basso e Rosane da Fonte que trazem pontuações precisas sobre diferentes aspectos do cartel, mas que tomam densidade a partir de sua função durante dois anos como Diretoras de Cartéis, acompanhando os cartéis nas suas seções.

Nos Intercâmbios contamos com uma rica entrevista, que coloca entre-vistas uma questão atual e conjuntural. Traz elementos subtis nos oferecendo traços para uma leitura sobre a cidade, a rua, a quadra, a favela. Já o próprio nome do entrevistado Preto Zezé, é em si mesmo um convite à reflexão, colocando em jogo um deslocamento do estigma a algo da ordem do carisma, da vergonha à dignidade. O deslocamento da favela de carência à potência… todo um campo onde cada um elabora suas “teses para existir”.


[1] WAJCMAN, G. Ojo de guerra. In: BROUSSE, M.-H. El psicoanálisis a la hora de la guerra. Buenos Aires: Tres Haches, 2015. p. 297.
[2] MILLER, J.-A. O cartel no centro de uma Escola de Psicanálise (1994). In: BROWN, N. (Org.) Cartel. Novas leituras. São Paulo: EBP. 2021, p. 23.
[3] DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. (1995) Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.