Do sonho ao despertar, do despertar ao sonho*

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sossegue coração/ainda não é agora/a confusão prossegue/sonhos a fora/calma calma logo mais a gente goza/perto do osso/a carne é mais gostosa (Paulo Lewinski)

Pretendo introduzir de modo breve uma questão suscitada pela clínica, apontando algumas referências teóricas para serem exploradas posteriormente.

No tempo do despertar do desejo, verificamos na prática clínica, jovens adolescentes se entregando ao dormir em excesso. A que responde esse sono excessivo? Como o sono e os sonhos nos ajudam a esclarecer a relação entre corpo, desejo e gozo?

Começo pela questão: Em que consiste dormir? Dormir e desejar não são necessariamente antinômicos, já que o sonho está a serviço do desejo do dormir. Dormimos para sonhar e despertamos para continuar sonhando, postulou Freud, nomeando o sonho como guardião do dormir. Com Lacan, avançamos na perspectiva de investigar a função do dormir e sonhar[1]. O significante anula, apaga (oblivium)[2] o que seria um gozo excessivo que poderia nos despertar. No trabalho do sonho se relança a metonímia do desejo, mais além do marco da fantasia, para o sonhador poder seguir sonhando. O desejo corre pela via que vai proporcionar a metonímia significante. O sonho, trabalho significante por excelência, articula desejo e gozo, levando-nos a considerar com Lacan, a metonímia como um metabolismo do gozo[3], que o faz fluir pela via do deslocamento significante. Graças às propriedades do significante e graças à função da metonímia, dormir e sonhar figuram como possibilidade de tratamento do gozo do corpo. Lacan[4] sustenta a tese de que, quando o falante dorme a relação de seu corpo com o gozar fica em suspenso. Dormir consiste em se tratar de suspender o semblante, a verdade, o gozar e o mais de gozar (…) dormir é não ser perturbado e o gozo é perturbador.[5] Nessa perspectiva, não se trata de abordar o sonho pela via do deciframento do desejo mas sim destacar a função de ciframento do gozo. O inconsciente cifra o gozo real, o interpreta, fazendo-o passar ao significante, o que supõe uma pacificação do corpo[6].

Mesmo em sua função de guardião noturno, há sonhos que culminam num despertar acompanhado de angústia, caso dos sonhos que não cumprem a função de realização de desejos inconscientes, ou que a realização de desejo não se circunscreve ao princípio do prazer. Freud[7] assinala que os sonhos podem estar enraizados tanto no eu quanto no isso. Se estas instâncias estão em consonância podem produzir o dormir, mas se estão em conflito, ou seja, se uma exigência pulsional do isso se impõe ao eu, causando o fracasso do recalque e da censura onírica, podem provocar despertares angustiados. Mais ainda, verificamos que a angústia sinaliza um mais além dos sonhos, do inconsciente, dos processos primários, do princípio do prazer que sugere um excesso de gozo que não pode ser metabolizado pelo mecanismo do sonho[8]. A angústia sinaliza o desenlaçamento do gozo e sentido. Os sonhos, no ser falante, concernem a ausência de sentido[9]. Não será no sonho uma outra realidade, aquilo que nos desperta?[10] Essa “outra realidade” regida pelo não sentido que habita o sonho, aponta para o real, para o encontro com algo da ordem do ininterpretável. É a partir de alguns sonhos que uma fórmula assemântica, própria à opacidade da letra, tenta desmascarar o real[11], assinala Cottet se referindo aquilo que Freud designou por “umbigo dos sonhos” e Lacan nomeou o “ponto-núcleo onde o discurso faz furo”.

O que é que desperta? O que aproxima essa passagem do sonho para um despertar acompanhado de angústia e o despertar da adolescência? A adolescência é um tempo de mutações, do abandono de ideias e ideais que não mais respondem às questões emergentes acerca do sexo e da existência. Tempo em que se experimenta o despertar no corpo de um excesso de gozo, parte podendo se concentrar no fálico, condensando gozo e sentido, enquanto que o gozo que não se apoia em qualquer representação torna-se uma experiência perturbadora.

Ao ir de encontro ao parceiro sexual e amoroso, o adolescente se encontra também com a experiência do que há de impossível na relação sexual com o semelhante, se deparando com um não saber instituído ou constituído sobre o sexo. Entre o sonho e o despertar, está em jogo, o real constituído pela não relação sexual. Desse modo, reconhecemos que quando os adolescentes despertam de seus sonhos, despertam para a experiência da não relação que se refere à disjunção entre significante e significado, do gozo e do Outro, do homem e mulher. A linguagem pode ser concebida como o que prolifera a nível dessa não relação, sem que se possa dizer que essa relação exista fora da linguagem[12]. Tese ratificada posteriormente quando Lacan reafirma que o sexual se torna paixão do significante[13].

Concluímos com Freud e Lacan, que dormir é não ser perturbado, enquanto que o gozo é o elemento perturbador do sono. Dormimos para submergir no automaton significante e no sentido imaginário. Despertamos para seguir dormindo acordados, pondo o véu da fantasia que sustenta a ficção da relação sexual, a serviço de outra modalidade de “adormecer”, sonhando acordado. Diante do não sentido, adormecemos mesmo acordados buscando um sentido apaziguador[14]. Mas, despertar é preciso. Nessa perspectiva, trago um breve fragmento clínico.

D. ingressa na faculdade e com muita frequência, falta aulas matinais e até as primeiras vespertinas, porque coloca o despertador, acorda e logo volta a dormir. “À noite tudo fica mais tranqüilo”, costumava dizer. Na madrugada, passava parte do tempo conectada à internet, em contato com colegas de diferentes lugares do mundo e um tempo também expressivo pesquisando temas, onde se destaca a questão do gênero. Vinha a algumas entrevistas e intercalava com uma falta ou mais de uma. Assim, foi se inscrevendo uma modulação, uma métrica, um ritmo entre o ir e vir, entre o sonhar e o despertar. Acolher essa modulação foi essencial para D. vir e endereçar sua fala.

Um dia, fala dos amigos e amigas do tempo de escola que frequentavam sua casa. Recebia-os em seu quarto. Quando eram garotos, a mãe não escondia sua tensão e pedia que deixasse a porta aberta. A analista intervém: “então, sua mãe não suporta vê-la ao lado de garotos? E você?” intervenção essa que funcionou como chave para abrir uma nova porta de lembranças e associações. D. começa a falar de suas questões e incertezas sobre o sexo. Seu despertar não é sem angústia, mas a angústia passou a se colocar a serviço de orientá-la quanto ao desejo frente ao enigma do Outro. A aposta é que a psicanálise contribua para um devir em que o impossível da relação não inviabilize as parcerias atuais que se formam e outras que estão porvir. Afinal, despertar é preciso mesmo que viver seja impreciso.

Glória Maron (EBP/AMP)


*N.E.: Texto publicado originalmente no site do XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, 2016: “Adolescência, idade do desejo”.
[1] LACAN, J. O SEMINÁRIO LIVRO 19. Zahar: Rio de Janeiro, 2012, pg. 209.
[2] LACAN, J. O SEMINÁRIO, LIVRO 11, Zahar: Rio de Janeiro, 1994, pg.31.
[3] LACAN, J. Radiofonia.Em: ESCRITOS Zahar: Rio de Janeiro, 2003, pg.416.
[4] LACAN, J. O SEMINÁRIO, LIVRO 19, Zahar: Rio de Janeiro, 2012, pg. 209.
[5] LACAN., J. O Seminário, livro 19…ou pior (1971-1972). Zahar:Rio de Janeiro, 2012, pg. 209.
[6] FUENTES, ARACELI. El Misterio del Cuerpo Hablante. Gedisa: Barcelona, 2016, Cap. 8.
[7] Freud, S. Esquema de psicoanálisisem: Obras Completas, volume XXIII, Buenos Aires: Amorrortu, 2004, pg. 164.
[8] LACAN, J. Radiofonia. Em: ESCRITOS Zahar: Rio de Janeiro, 2003, pg.416.
[9] LACAN, J, “Improvisation: Désir de mort, rêve et rêveil”, citado por Mario Elkmim Ramirez Ortiz. Em: Despertar de La Adolescencia. Olivos: Grama Editiones, 2014, pg. 140.
[10] LACAN, J. SEMINÁRIO, LIVRO 11. Os quatro conceitos fundamentais. Zahar: Rio de Janeiro, pg.59-61.
[11] COTTET, SERGE. Do Sonho ao Sintoma. Em CURINGA 30, Scriptum: Belo Horizonte, 2010, pg. 19.
[12] LACAN, J, “Improvisation: Désir de mort, rêve et rêveil”, citado por Mario Elkmim Ramirez Ortiz. Em: Despertar de La Adolescencia. Olivos: Grama Editiones, 2014, pg. 140.
[13] LACAN, J. Radiofonia. Em: ESCRITOS Zahar: Rio de Janeiro, 2003, pg 410.
[14] RAMÍREZ, M. E. Despertar de la adolescencia. Olivos: Grama Editiones, 2014, pg. 140-141.