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“A vantagem que um grupo cultural, comparativamente pequeno, oferece, concedendo a esse instinto um escoadouro sob a forma de hostilidade contra intrusos, não é nada desprezível. É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade. (...) Dei a este fenômeno o nome de ‘narcisismo das pequenas diferenças’ (...).”
FREUD, S. O mal-estar na civilização In Edição Standard Brasileira, vol. XXI, Rio de Janeiro, Imago, 1974.
Freud escreveu a primeira vez sobre o “narcisismo das pequenas diferenças” no artigo de 1918, O Tabu da Virgindade: “Seria tentador desenvolver essa ideia e derivar desse ‘narcisismo das pequenas diferenças’ a hostilidade que em cada relação humana observamos lutar vitoriosamente contra os sentimentos de companheirismo e sobrepujar o mandamento de que todos os homens devem amar o seu próximo”2.
Mais tarde, em O mal-estar na civilização (1930), formula a tese sobre a dificuldade de os homens abandonarem a satisfação da inclinação para a agressão contida neste tipo de narcisismo.
Certamente, não seriam significativas as diferenças que formam a base dos sentimentos de estranheza e hostilidade contidas na noção de "narcisismo das pequenas diferenças", uma vez que, sob qualquer outro aspecto, estes grupos são iguais. A elaboração de Freud retoma o que já havia abordado em outros textos sobre a rivalidade de povos vizinhos. Exemplos nossos conhecidos são a rivalidade entre São Paulo e Rio de Janeiro, torcidas de time de futebol e diferentes militâncias políticas. Acredita-se que, quanto maiores as diferenças, mais violentos seriam os confrontos. Entretanto, a noção de “narcisismo das pequenas diferenças” mostra que não devemos ignorar o fato de que, muitas vezes, os embates mais violentos são entre indivíduos, grupos e comunidades que diferem muito pouco entre si.
Embora observemos que os mecanismos de intolerância, segregação e violência na cultura atual, vinculadas ao real que impera no contemporâneo, sejam cada vez mais frequentes e intensos, Freud já identificava na propensão humana, a agressão uns contra os outros. Localizava a agressividade em torno do conflito edípico, na relação de amor e ódio ao semelhante.
O narcisismo das pequenas diferenças é abordado por Romildo do Rêgo Barros sob duas modalidades: o narcisismo, no registro imaginário, de projeção da imagem do corpo, e as pequenas diferenças, no registro do real, em permanente exclusão. Os dois enunciados supõem que o narcisismo das pequenas diferenças é uma construção antitética. Não seria um narcisismo que estaria nas pequenas diferenças, mas sim se constituiria como uma unidade formada e sustentada tendo por causa as pequenas diferenças. Trata-se da “constituição de um interior a partir da própria tentativa de reforço da membrana de separação”3.
Para explicar essa fronteira, Romildo toma a parábola de Schopenhauer4:
Em um dia de frio de inverno, um grupo de porcos-espinhos se aconchegou bastante, para se esquentarem mutuamente e não morrerem de frio. Contudo, logo sentiram os espinhos, uns dos outros, o que os fez novamente se afastar e até acharem uma distância média que lhes permitisse suportar o fato da melhor maneira.5
Esta parábola mostra “como a boa distância entre cada um e os outros, que na verdade é ideal, passa pela construção de uma fronteira que margeia o real. Isto quer dizer que uma fronteira não é dada de antemão, não é algo que os dois lados de repente encontram e podem então reconhecer como limite, mas um efeito da própria tentativa de aproximação e de afastamento”6.
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1 Aderente da EBP-SP e Diretora de Biblioteca da EBP- SP 2017-2019.
2 FREUD, S. O Tabu da Virgindade Ed. Standard Brasileira, vol. XI, RJ, Imago Editora, 1974, p.184.
3 BARROS, R. R. A pequena diferença, entre pele e espinho, in Revista Agora, ano I, n 1, RJ, 1998.
4 Schopenhauer citado por Freud em nota de rodapé de A Psicologia das massas, Ed. Standard Brasileira, vol. XVIII, RJ, Imago
Editora, 1974, p.128.
5 BARROS, R. R., idem.
6 Ibidem.
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