Comentário sobre Le sexe des modernes (parte I) de Éric Marty

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Luis Francisco Camargo

O livro de Éric Marty tem sido considerado um marco epistemológico nos “estudos de gênero”. Em uma entrevista de Éric Marty com Marc Weitzmann (jornalista e escritor) para a Rádio France Culture (2021), o livro foi qualificado como a primeira investigação filosófica sobre a origem dos estudos de gênero e suas consequências atuais. O qualificativo “primeira” indica um pioneirismo, pois jamais os gender studies na França haviam sido investigados em bases epistemológicas. Do mesmo modo que Weitzmann e Miller (2021) perceberam as consequências do trabalho de Marty, considero o livro um clarão epistêmico sobre os “estudos de gênero”, revelando os seus limites, principalmente do projeto de Judith Butler. As elucidações de Éric Marty na primeira parte do livro, onde encontramos uma dura crítica à obra de Butler, são decorrentes de um corte epistemológico realizado entre os fundamentos do pensamento de Butler e a teoria francesa na tradição que remonta Bachelard, Canguilhem, Althusser, Foucault e Lacan. Esse corte epistêmico fundamenta a tese de que “o gênero é a última mensagem ideológica do ocidente enviada para o resto do mundo”. Marty acrescenta: “ao definir o gênero como a última mensagem ideológica do ocidente, nós marcamos sobre a linha pontilhada um qualificativo, pois contrariamente às grandes invenções teóricas precedentes, que foram muito europeias, o gênero é certamente uma invenção americana atestando simultaneamente a hibridização entre as culturas e os pensamentos globalizados, bem como a característica nacionalista dos discursos que são veiculados por eles”.

Particularmente, fiquei muito satisfeito em ler o trabalho de Marty. Em 2018, ministrei uma disciplina na universidade visando investigar as abordagens dos estudos de gênero sobre a psicanálise. Na ocasião, meu objetivo era mapear a origem do termo gênero, chegando aos trabalhos de Robert Stoller e à nova abordagem proposta pelos estudos feministas de Gayle Rubin, no clássico texto “O tráfico de mulheres”, onde colocava Lévi-Strauss, Freud e Lacan como autores indispensáveis para a compreensão dos problemas de gênero. Nesse texto, Rubin já destacava que se tratava das contribuições da psicanálise como era concebida na França e não nos Estados Unidos, onde exacerbavam o biologismo de Freud. Os operadores principais para Rubin eram a castração e o Édipo, relacionados à linguística estrutural. No entanto, ficava evidente que Rubin desconhecia a teoria das pulsões, tendo em vista que os comentadores norte-americanos de Freud tomavam sempre a pulsão freudiana como um operador biológico. Em Butler, como demonstra Marty em seu livro, mesmo avisada por Rubin sobre a incidência biológica do pensamento de Freud na América do Norte, encontramos também um vazio sobre a teoria das pulsões. Ao ler algumas obras de Butler eu sempre me perguntei se ela realmente havia lido Freud. Por um lado, a sua abordagem do texto “Luto e Melancolia”, de onde cunha o termo “melancolia de gênero”, indicava uma leitura direta dos textos freudianos. Por outro, a sua interpretação me parecia tão estranha, distorcida e infiel que Freud quase se tornava irreconhecível. Era necessário esquecer Freud para entender o Freud de Butler, onde não existia o corpo, apenas a estrutura simbólica sem qualquer referência à experiência clínica.

Segundo Marty, “uma das lições que aprendi quando escrevi este livro é que foi precisamente por razão contrária de uma pretensa influência francesa, aliás, da mal nomeada “teoriafrancesa”, que o discurso do gênero pôde ser igualmente percebido como a expressão mais evidente da ideologia americana”. Marty associa o uso que Butler faz dos autores franceses a uma tentativa de conquista do formalismo europeu pelo pensamento utilitarista e pragmatista americano. As bases de seu pensamento se encontram na ideia do performativo de Austin. Segundo Marty, Butler se sente constrangida em utilizar Foucault para realizar esse projeto, e passa a usar Lacan como suporte para fundamentar a sua psicossociologia pragmática americana, visto o exacerbado realismo na apreciação das relações de forças teóricas próprias dos espaços intelectuais e acadêmicos americanos.

A tese de Marty segue o princípio filosófico da Navalha de Occam, onde a melhor solução é aquela que apresenta a menor quantidade de premissas possíveis. O pensamento do Neutro é premissa pela qual se realiza o corte epistemológico entre o pensamento de Butler e o dos autores franceses. A teoria de Butler aparece como um Protheus em relação ao pensamento do Neutro, resgatado por Marty do pensamento de seu mestre Roland Barthes.

O livro de Marty se inicia com uma citação do poeta surrealista René Char (1907-1988): “O que vem ao mundo para não criar problema não merece nem olhares e nem paciência”. A epígrafe vem demandar ao leitor a mesma paciência e esforço que o próprio autor teve ao se debruçar sobre um tema que, para muitos intelectuais, é campo infrutífero e enfadonho de uma perspectiva formalista, uma vez que se trata de “estudos” realizados, muitas vezes, sobre leituras superficiais de outros autores, promovendo distorções e desvios em geral de forma propositada para justificar uma ideologia de cunho pretensamente revolucionário.

O trabalho de Marty é dividido em quatro partes e um epílogo. A primeira parte é um estudo sobre o método, sobre o corte epistemológico entre Neutro e o gênero. Vou me deter nesta primeira parte, o que já é muito para hoje.

Barthes é o primeiro pensador a usar o termo gênero no escopo da díade biológica a partir de um comentário de Sarrasine, de Balzac, em um curso proferido em 1967 intitulado “Masculino, feminino e Neutro”, onde as identidades sexuais são qualificadas em termos de gênero. O livro “Problemas de Gênero”, de Butler, aparece somente vinte anos depois e sequer cita o trabalho de Barthes. Zambinella é o herói do Neutro. É este personagem, o castrado, pelo qual Barthes teoriza o desaparecimento do modelo biológico dos sexos em proveito de outra apreensão da diferença sexual, a estrutura simbólica. Barthes confere à castração uma potência contagiosa de disseminação das identidades sexuadas. Assim, diretamente ou não, o termo “gênero” como questionamento das identidades sexuais, biológicas, históricas, culturais, sociais, simbólicas, já emergia na França desde os anos 1960. É introduzido pelo pensamento do Neutro tomado pela temática da castração, recorrente também nos escritos de Gilles Deleuze, segundo uma relação retorcida da teoria lacaniana, como será mais tarde retomado por Jacques Derrida. A castração é o operador que introduz o Neutro; nem homem e nem mulher. A meu ver, podemos dizer que é Freud o precursor de uma abordagem não biológica do sexo. Ao final da primeira parte dos “Três Ensaios sobre a Sexualidade” encontramos um corte entre o sexo biológico e a escolha sexual, quando Freud conclui, a partir de um comentário da obra de Krafft-Ebing, que “o conhecimento obtido em casos considerados anormais nos diz que neles há apenas, entre instinto sexual e objeto sexual, uma soldagem, que arriscamos não enxergar devido à uniformidade da configuração normal, em que o instinto parece já trazer consigo o objeto” (FREUD, 2016, p. 380).

Para Marty há claramente dois problemas no gênero. Com Butler, o problema se desprende no campo das interações sociais a partir dos espaços sociais minoritários, na medida em que faz do conceito de gênero uma noção derivada da sociologia. Já em Barthes, o problema se produz a partir da ordem das representações simbólicas dos sexos. Por um lado, afirma que o livro de Robert Stoller, Sex and Gender, é uma apropriação americana da obra de Freud, ao disseminar em 1968 o termo “gênero”. Por outro lado, temos a pulsão freudiana, como encontro da linguagem (psíquico) com o corpo (o somático) na díade com biológico. Stoller transcreve a díade biologia vs. pulsão pela díade sexo vs. gênero.

A meu ver, o conceito de instinto em Darwin não tem um caráter conservador, muito pelo contrário, é evolucionista. A ação do meio interno e externo sobre a configuração do instinto, provocada pela pressão seletiva dos meios exterior e interior ao organismo, resulta em modificações dos seus caracteres nas populações. Freud destacava que a cultura, o discurso do Outro, pode também ser responsável pelas modificações da pulsão. Isto é, a própria noção darwiniana de instinto em “As origens da espécie” contém o germe da cisão sexo/gênero que aparecerá quase cem anos mais tarde, onde a ordem simbólica é também determinante na função sexual: “É possível mostrar que tais casos de diversidade de instinto numa mesma espécie ocorrem na natureza (DARWIN, 2018, p. 301)”.

Marty permanece fiel a noção de “corte epistemológico”, emprestada de Louis Althusser à Bachelard que é retomada à sua maneira por Michel Foucault, principalmente em “As palavras e as coisas”, onde encontramos a expressão domínio ou campo epistemológico. Foucault nos apresenta que o corte epistêmico entre o campo das ciências humanas e o das ciências naturais é o campo da linguagem. Nesse sentido, encontramos no livro de Foucault um elogio à psicanálise, no qual retoma a discussão entre ciências da natureza e ciências humanas, onde a linguagem humana é o plano no qual se ergue o que se denomina as ciências do homem.

É muito importante destacar que para Marty “a categoria do gênero ilustra espetacularmente a função significante no espaço do saber, o fato que uma noção não se torna necessariamente heurística – ferramenta decisiva para a compreensão – desde que se extrai da cadeia das palavras, do fluxo lexical que carregam as línguas e toma a função de uma marca. A noção acede à um sentido que passa muito longe da significação que se atribui até aqui, ao ponto mesmo de ser fetichizada, de tornar-se palavra-chave, objeto de uma fascinação coletiva, palavra-talismã”. Em termos lacanianos, podemos dizer que Marty destaca que a palavra gênero não é decisiva para a compreensão. Ela se tornou um S1, um significante que funda um discurso-mestre, assim como destacou Miller em relação ao projeto de Paul Preciado. Em outras palavras, Butler está para Marty assim como Preciado está para Miller. Preciado como comandante de um discurso que se pretende ser discurso-mestre.

Marty fará referência a Lacan quando, em 1971, comenta a obra de Stoller, Sex and Gender. Lacan fará um elogio a Stoller na descrição dos casos de problemas de identidade sexual (é Lacan que introduz esse termo – identidade – segundo Marty) e, igualmente, uma crítica por Stoller desconhecer a noção de forclusão. Segundo Lacan: “O importante é isto: a identidade de gênero não é outra coisa senão o que acabo de expressar com estes termos, “homem” e “mulher”. É claro que a questão do que surge precocemente só se coloca a partir de que, na idade adulta, é próprio do destino dos seres falantes distribuírem-se entre homens e mulheres (LACAN, 2009, p. 30)”.

O que é surpreendente, segundo Marty, foi Lacan utilizar o termo identidade de gênero e não se interessar sobre a oposição extremamente esclarecedora que ele tinha sob os seus próprios olhos: Sex and Gender. Marty destaca que esta indiferença, tanto de Lacan quanto de Barthes, não compromete a extrema audácia que se observará em Lacan sobre essa questão. No entanto, Lacan não seguiu a sua própria máxima: “É que a uma nova verdade não podemos contentar-nos em dar lugar, porque é de assumir nosso lugar nela que se trata” (LACAN, 1998, p. 525). Para Marty fica evidente que Lacan e Barthes deram lugar à noção de gênero, mas que não assumiram um lugar nessa noção. Talvez, pelo fato de que o gênero não havia ainda se tornado um significante mestre do amanhã. A conclusão de Marty é que muitos já haviam dado um lugar à noção de gênero, como Esther Newton e John Money, que introduziu a noção de gênero na sua tese sobre o hermafroditismo em 1952. Ele foi o primeiro a falar de papel de gênero e a substituir a noção de preferência sexual por orientação sexual. No entanto, ninguém assumiu aí um lugar.

Butler mantém uma distância grande do campo literário e estético para tratar a noção de gênero. Essa distância precede uma posição radical adotada por Foucault, bem como uma crítica de Rubin a Deleuze por pensarem o masoquismo a partir de um romance. Há um descrédito da literatura pelos movimentos LGBTQIA+, por considerarem a abordagem literária elitista, obras de homens brancos e de um discurso de dominação. Butler chega a fazer uma crítica no prefácio de 1999 de um de seus livros que não fora traduzido na França, quando supostamente declarara já ter conquistado a Europa. Na verdade, ela irá falar na França muito mais tarde do que nos outros países da Europa. Segundo Marty, o aparente franco centrismo do livro de Butler a coloca de fato a uma boa distância da teoria que é praticada na França. Trata-se de uma rivalidade franco-americana afirmada e mascarada na obra de Butler. É uma parte do livro em que Marty denuncia aquilo que Derrida já pontuou sobre esse termo theory (em letra minúscula), pois não se trata de uma teoria do gênero no campus dos Estados Unidos, mas de um artefato puramente norte-americano cuja pluralização (estudos) assinala uma estratégia do free market (livre mercado) e do pluralismo liberal. Segundo Marty, nada a ver com a Theory (em letra maiúscula), uma palavra fetichizada pelos Modernos.

Assim, o corte epistemológico realizado por Marty coloca em tensão o formalismo francês com o utilitarismo e o pragmatismo americano. Butler é uma crítica do formalismo francês por não ter um objetivo político. É isso que ela denomina de pós-estruturalismo, um “formalismo que se desinteressa pelo contexto social e por um objetivo político”. Uma crítica injusta, segundo Marty. Por exemplo, Butler acusa os “estruturalistas” de serem responsáveis pela resistência ao casamento para todos. Trata-se de uma violência de Butler para provocar polêmica. A própria Butler posteriormente se pronunciará contra o casamento gay e lésbico, já que a ampliação do casamento para as minorias iria reforçar as instituições de “regulação do comportamento dos homens”.

Esta crítica não é nova. Foi endereçada aos modernistas nos anos 50 e 60 e reanimada nos movimentos de maio de 1968 pelo slogan “as estruturas não descem às ruas”. Marty relembra a resposta de Lacan durante uma conferência de Foucault: “não considero de forma alguma que seja legítimo ter escrito que as estruturas não descem para a rua, porque se há alguma coisa que os acontecimentos de maio demonstram é precisamente a descida para as ruas das estruturas” (LACAN apud FOUCAULT, 2009, p. 298). Assim, para Butler, a modernidade francesa está assimilada a um discurso elitista, estetizante, veiculador, via Lacan, Barthes ou Deleuze, de topos românticos, machistas e essencialistas. Há uma oposição muito clara entre os modernos e os gêneros. A aventura estruturalista realizada a sua maneira por cada um, Foucault, Deleuze, Barthes, Althusser, Lacan, teria sido para Butler um “romantismo”.

Para Marty seria necessário compreender o que esconde e designa essa apelação “infamante” e se seu sinônimo seria simplesmente o de um niilismo europeu. A resposta é não, “a característica recorrente, oblíqua, totalizante, do estigma designa muito bem o que nós começamos a esboçar, a saber, a violência da alteridade cultural”. A princípio, tal acusação de Marty à Butler pode parecer enigmática. No entanto, podemos fazer um esforço para traduzi-la: o que Marty denomina de violência da alteridade cultural é a posição ideológica do pensamento americano diante da teoria francesa, quando a própria Butler e os genders se colocam no lugar do Outro do Outro para conquistar e colonizar a Europa.

Apesar de o Neutro ter um lugar na teoria Queer, essa teoria não é o pensamento do Neutro, pois não o trata como um operador. Segundo Marty, “o Neutro é o que opera no interior de uma estrutura binária como um espaço suplementar que anula a oposição que a constitui, por exemplo, aquela do masculino e do feminino, isto é, a da diferença sexual”. É importante salientar que a maneira como Barthes utiliza a noção de neutro, que aparece pela primeira vez em seu texto “O grau zero da escrita”, é semelhante àquela da física elétrica. “Chama-se condutor neutro, num circuito elétrico ou sistema elétrico, o elemento do circuito ou de um sistema, que de qualquer forma ou natureza não conduz carga elétrica em fluxo orientado, determinado por diferença de potencial elétrico externo ou em gradiente e, portanto, não exibe diferença de potencial elétrico entre quaisquer pares de pontos do seu domínio”. Poderíamos considerar que o termo espaço suplementar para o Neutro seria correspondente ao gozo suplementar de Lacan, o gozo do Outro barrado? Sabemos que o gozo suplementar recusa a ordem simbólica e a dialética significante, isto é, o binarismo. Trata-se do real sem lei que possui um potencial impossível de regular pelo simbólico.

As identidades de gênero podem até parecer o campo do não-binário, mas será mesmo? A taxonomia LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Queer, Intersexo, Assexuais e outros) é colocada sempre em oposição dialética ao cisgênero, cuja identidade sexual corresponde ao sexo biológico, norma reivindicada por alguns pseudocientistas para confirmarem suas próprias crenças ou, mais diretamente, pelos criacionistas: “A mulher não se vestirá de homem, nem o homem se vestirá de mulher: aquele que o fizer será abominável diante do Senhor, seu Deus (Deuteronômio: 22)”.

É justamente o que Marty destaca, o termo neutral nos estudos de gênero aparece como uma adição à corrente de assinaturas que inicia na sigla LGBTQIA+. O gênero neutral se acrescenta aos outros no espectro dos gêneros. Já o pensamento do Neutro aponta justamente para um fora da série, para fora do simbólico, uma exceção do sentido, segundo Barthes, uma outra lógica do sentido, segundo Deleuze, uma différance, segundo Derrida e, acrescento, um real, segundo Lacan.

Concluindo, o Neutro de Barthes lido por Marty é uma espécie de vazio, completamente ao contrário da proliferação verbal que se trata no discurso LGBTQIA+. “O neutro permite esperar um tipo de silêncio do gênero. O neutro é o grau zero do sentido, onde um signo – um signo neutro – marca uma ausência, uma falha essencial, uma carência, se definindo como sendo nem masculino nem feminino, nem um nem outro, neuter, segundo a etimologia latina”. Assim, ao contrário do neutral, ao neutro não se pode acrescentar outros particularismos como uma minoria se acrescenta às outras minorias. O neutro abole tudo, todos e todas.

Nesse sentido, Marty concebe o conceito de gênero não como uma noção paradigmática, mas como uma categoria dialética. Acrescento, dialética em relação ao discurso do mestre, à norma. Poderíamos denominar isso de uma tentativa de fazer existir o Outro do Outro? Se para Lacan o Outro do Outro não existe, a interpretação de Marty é muito fiel ao pensamento de Lacan. A posição de Butler é a posição de um conquistador do Outro, para ocupar o lugar de um Outro para o Outro, de uma alteridade.

Marty destaca que o pensamento Neutro caracterizava os modernos, não só Barthes, mas todos eles, nos mostrando que este operador epistemológico explica a heterogeneidade entre essas duas culturas, a ordem simbólica de um lado e a ordem social do outro. É a sociedade que é contaminada pelo neutro da castração, o qual não emana dos agenciamentos sociais, das rupturas societárias e dos grupos minoritários.

Em termos lacanianos, podemos dizer que o neutro de Marty é o que está fora do discurso do Outro, fora do discurso social, do comunitarismo, da religião, do direito e do Estado. Seria o que chamamos na psicanálise de real? “Se há o neutro, ele não pode ser senão da estrutura mais profunda, aquela que governa a ordem simbólica onde o sexo se ordena ao símbolo e onde o ser não se revela como ser falante”. Não seria o real o operador lacaniano que expressa a estrutura mais profunda, aquela que governa a ordem simbólica, cujo sexo pode, até certos limites, se ordenar pelo símbolo?

Segundo Marty, “reciprocamente, a teoria do gênero desorganiza a ordem simbólica, mas seu ativismo não supõe de nenhum modo uma autonomia desta ordem simbólica”. É disso que se trata: a teoria do gênero desorganiza a ordem simbólica para ali fundar uma nova ordem simbólica representada pelas taxonomias das minorias de gênero, em oposição dialética à maioria. Um conjunto de pequenos outros em oposição ao Outro. Tudo isso é completamente diferente do Neutro e de sua versão lacaniana, o real, que estão totalmente abolidos da ordem simbólica. É nesse sentido que a abordagem dos gêneros por meio de operadores psicanalíticos como o Édipo, o falo e o incesto, emergem da história cultural das sociedades e não da função constitutiva de um sujeito, como consideravam os modernos. O neutro é o operador que na obra de Marty reúne outros operadores dos modernos, os quais, cada um à sua maneira, nomeiam aquilo que está fora da ordem simbólica. Esses operadores revelam a diferença fundamental entre o sexo dos modernos e os estudos de gênero.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DARWIN, Charles. Instinto. In. A origem das espécies por meio da seleção natural. São Paulo: Ubu Editora, 2018, p. 291-340.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In. Estética: literatura e pintura, música e cinema (Ditos e Escritos, III). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
FRANCE CULTURE. Gender Studies: la première grande enquête philosophique sur l’origine des études de genre et leurs conséquences aujourd’hui. Entrevistador: Marc Weitzmann. Entrevistado: Éric Marty. 4 abr. 2021. Podcast. Disponível em: https://www.franceculture.fr/emissions/signes-des-temps/gender-studies-une-enquete-philosophique-sur-lorigine-du-genre-et-ses-consequences-aujourdhui. Acesso em 19 jul. 2021. 43 min.
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LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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MILLER, Jacques-Alain; MARTY, Éric. Entretien sur « Le sexe des Modernes ». Lacan Quotidien. Butler dans le Champ Freudien. Nº 927. Paris: Navarin Éditeur, 29 mar. 2021, p. 2-31. Disponível em: https://lacanquotidien.fr/blog/wp-content/uploads/2021/03/LQ-927-A.pdf. Acesso em: 19 jul. 2021.