Editorial Boletim Dobradiça #02

Paola Salinas (EBP/AMP) Temos nas mãos mais um Dobradiça. De entrada um entusiasmo na leitura, por apostar no cartel como dispositivo ímpar e inédito que pode nos afetar, na maioria das vezes, de uma boa forma. O cartel, longe de ter sido somente uma ferramenta de constituição da Escola por Lacan em um contexto datado, instaurou uma política. Assim, a pergunta sobre o cartel ampliado, motivadora dos escritos desta edição, nos faz chegar nas produções de Bernardino Honre, Luiz Fernando Carrijo da Cunha e Elisa Alvarenga, sob o prisma da transmissão de um fazer no cartel articulado aos fundamentos do dispositivo. Por isso é totalmente possível repensar tal funcionamento, o que cabe ou não mudar, quais implicações em relação à lógica e à política do trabalho. É a política, e não o modo de funcionamento de um cartel, o que permite preservar a novidade ao ser posto em funcionamento. Destaco um ponto que esta política convoca, no meu entender: que não lidemos com anônimos. Na produção de saber, no questionamento do saber, na relação com a causa analítica, na escrita de um produto, no laço que a discussão desse produto pode provocar ao depois, são desejados autores. Sujeitos no esforço de traçar o percurso com e na psicanálise. Ram Mandil, em uma fala sobre os cartéis na NEL, aponta que o número de integrantes de um cartel não seja suficientemente grande como para propiciar o anonimato dos seus participantes. Se o “anonimato subjetivo” não nos interessa, como não apreender e se inquietar com a entrevista de Boaventura? A época pode ser um divisor de águas. Juntamente a outros espaços na Escola e no Campo Freudiano onde esta questão tem se aberto, o que apreender de outras disciplinas, ou mesmo de os discursos, que não seja tomá-los como enunciados já sabidos?

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O Intocável e o tocável no Cartel

Bernardino Horne (AME EBP/AMP) Assim como aprendemos em “A direção do Tratamento…” que a Política em psicanálise é um ponto, podemos pensar que no instrumento privilegiado do trabalho e do estudo que cada psicanalista tem, que é o Cartel, também há uma política pontual. O cartel é a estratégia privilegiada por Lacan, no momento da fundação da Escola, para realizar o trabalho que cabe a cada um dos psicanalistas,  que é a política de restaurar a psicanálise nos seus fundamentos mais preciosos. Apesar de ser uma estratégia, um instrumento criado por Lacan para levar à prática o seu projeto de retorno a uma psicanálise verdadeira, o Cartel tem, em si, uma política, que se realiza na elaboração das noções e dos conceitos. Também a política do cartel se concretiza na delicada manobra que implica a indução ao trabalho, especialmente nos jovens que estão iniciando a sua formação. Essa indução implica assumir como responsabilidade de cada um a tarefa de manter viva a psicanálise, na medida em que esta, sendo uma prática contrária ao naturalmente humano que é a permanência no adormecimento do Princípio do Prazer, tem uma tendência natural a desaparecer. Miller, no Banquete dos analistas, diz que o trabalho central de Lacan no ensino era o de induzir ao trabalho. Induzir quer dizer levar para dentro, e Miller acrescenta que não se trata de uma identificação e sim, na verdade, de um passe. Uma passagem do trabalho da transferência para a transferência de trabalho, o que significa que se sai do amor ao saber, mas não se deixa de lado o saber — pelo contrário, é a superação do horror ao saber que dominava o sujeito durante a sua vida toda. Esse trabalho então só é possível um por um. Cada um deverá assumir seu valor na tarefa de

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Cartel: Um significante lacaniano

Luiz Fernando Carrijo (EBP/AMP) Fomos provocados a falar do número de cartelizantes em um cartel. Tomaremos, neste breve desenvolvimento, a última parte da pergunta que nos foi colocada: é possível um funcionamento que preserve o singular da questão de cada um, mesmo em grupos maiores? A experiência na Diretoria da EBP[1] nos comprova que a demanda por constituição de cartéis cujo número de participantes é maior do que aquele previsto (4+1) é cada dia mais crescente. De saída, não nos parece que o número em si seja efetivamente uma questão. Como bem nos disse Lacan no “Ato de Fundação”: “Para execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo. Cada um deles (temos um nome para designar esses grupos) se comporá de no mínimo três pessoas e no máximo cinco, sendo quatro a justa medida. MAIS UM encarregado da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um.”[2] Logo, o acento deve ser colocado sobre a lógica do funcionamento, como sublinha Lacan nos termos de um “princípio elaboração”. São inúmeros os trabalhos já publicados acerca da lógica do funcionamento do cartel, a maioria referindo-se ou à função do Mais Um, ou às contingências que levam à constituição de um cartel. Outros ainda se destinam a deslindar a função do cartel no funcionamento da Escola. Entretanto, quanto ao número de participantes, não temos tantas referências assim. A nosso ver, correlacionar um número fixo de participantes com a lógica e a eficácia do cartel é tratar a questão de modo a tamponar o que há de desafiador nesse tipo de trabalho, essencial para a produção de um saber desde um ponto de interrogação de cada um que aí se inscreve. Se Lacan utiliza o termo “elaboração”, trata-se de colocar o acento sobre as

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Porque cartéis

Elisa Alvarenga (EBP/AMP)  “Constituem-se equipes de cerca de dez sujeitos, nenhum dos quais é investido de uma autoridade preestabelecida; uma tarefa lhes é proposta, que deve ser resolvida em colaboração … [com a] preocupação de se fazer valer ao objetivo comum, perseguido pela equipe” (Lacan, J. A psiquiatria inglesa e a guerra, Outros Escritos, p. 119). Começo com esta citação, extraída do texto de Lacan que serviu de base para sua invenção do dispositivo do cartel, após seu encontro, na Inglaterra, com os psiquiatras ingleses Bion e Rickmann. Publicado em 1947, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, ele traz o testemunho de Lacan de uma experiência realizada por esses psiquiatras durante a guerra com os recrutas que afluíram para o hospital militar sob a rubrica da inadaptação, delinquências e reações psiconeuróticas. O método de trabalho inventado por esses psiquiatras, servindo-se da inércia fingida do psicanalista, com esses pacientes, consistia em formar grupos sem líder, definidos por um objeto de ocupação, inteiramente entregues à iniciativa dos homens. O resultado foi a constituição do “espírito de grupo” e a realização de um trabalho coletivo escolhido pelos grupos, reerguendo o sentimento de dignidade desses homens. Se a questão colocada pela Equipe de Cartéis da EBP é sobre o número de cartelizantes e a pertinência – ou não – dos “cartéis ampliados”, penso que essa experiência inaugural dos grupos operativos ingleses que inspirou Lacan nos aponta um caminho de reflexão. Nela, as equipes pareciam contar com um número maior de participantes que o clássico número de cartelizantes – três a cinco – proposto por Lacan. E se reuniam em torno de tarefas a serem executadas. Esse é o ponto em comum com minha experiência em “cartéis ampliados”, dos quais venho participando há vários anos para algumas tarefas específicas: cartéis clínicos do CPCT

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Epistemologias do Sul

Entrevista com Boaventura de Sousa Santos, por Cleyton Andrade  Temos o prazer de receber para o segundo número do Boletim DOBRADIÇA o professor Boaventura de Sousa Santos. Agradeço em nome da Diretoria de Cartéis e Intercâmbios a oportunidade desta conversa. Mesmo não sendo necessária uma apresentação, quero salientar alguns pontos da trajetória de nosso convidado. Sua tese de doutorado, resultado de um trabalho de campo em uma comunidade do Rio de Janeiro, resultou no livro Direito dos oprimidos, que se tornou uma referência na sociologia do Direito. Foi um dos fundadores da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, tendo criado também o curso de Sociologia, nesta universidade. Seus livros são traduzidos em diversos países e seu nome é referência obrigatória quando se trata de temas como globalização, sociologia do Direito, epistemologia, democracia e direitos humanos. Cito ainda alguns de seus conceitos mais importantes, que provavelmente aparecerão ao longo desta nossa conversa: sociologia das emergências, ecologia dos saberes, linha abissal, pensamento pós-abissal, epistemicídio, razão indolente, razão metonímica, interlegalidade, epistemologias do sul, dentre outros. Quero também agradecer à Dafne Ashton que muito contribuiu para a concretização desta entrevista. Seja bem vindo à Escola Brasileira de Psicanálise professor Boaventura de Sousa Santos. 1) Cleyton Andrade:  O senhor faz uma trajetória difícil de ser resumida em poucas palavras. Vai desde o direito dos oprimidos, passando pela justiça racial, uma crítica ao império cognitivo, para me referir a apenas alguns pontos fundamentais. O senhor poderia nos dizer um pouco sobre o que constitui as epistemologias do sul? Boaventura de Sousa Santos: As Epistemologias do Sul são uma proposta epistemológica que pretende identificar, validar os conhecimentos nascidos nas lutas, nas lutas sociais contra a opressão que, na época moderna, foram fundamentalmente produzidas por três formas de dominação: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. São

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Outra Cena

A psicanálise vai ao cinema – Seção Sul – é uma atividade de Intercâmbio da Seção Sul com a cidade e é realizada mensalmente em parceria com o Centro Cultural Badesc, há mais de dez anos. É uma atividade aberta onde, depois da exibição de um filme, acontece uma conversa com um público heterogêneo composto predominantemente por não-psicanalistas. A atividade conta com dois convidados, um psicanalista da EBP e outro ligado a um outro campo de saber para viabilizar o debate entre diferentes perspectivas. Os filmes são escolhidos tendo os temas dos eventos da Escola como seu principal norteador. Normalmente acontece nas últimas sextas do mês. Coordenação: Cinthia Busato e Artur Cipriani Lacan na academia – Seção Minas Gerais – o espaço de conversa com a Literatura foi retomado neste semestre, agora na versão online, sendo transmitido pelo canal do Youtube da Academia Mineira de Letras. Os temas contemplados são o do XXIII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano: O feminino infamiliar: dizer o indizível e o do Sonho (Congresso da Associação Mundial  de Psicanálise). No dia 26 de agosto tivemos a presença da professora Tereza Virgínia Barbosa e da psicanalista Cristiane Barreto que nos falaram sobre o tema: Medeia e o feminino infamiliar. No dia 28/10 convidamos a psicanalista Ana Lúcia Lutherbach para uma conversa em torno do livro “A obscena senhora D de Hilda Hilst”, ao lado da escritora, artista e compositora Beatriz Azevedo. Fecharemos o semestre em novembro com um debate em torno do tema do sonho a partir da obra de André Breton. Desta vez, receberemos nossa colega Lúcia Grossi e a professora da faculdade de letras da FMG Márcia Arbex. Coordenação: Laura Rubião Equipe: Cristina Marcos, Inês Seabra, Luciana Silviano Brandão, Patrícia Ribeiro Cinema e Psicanálise – Seção Minas Gerais – Temos uma parceria com a Sala Humberto Mauro, da

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Editorial Boletim Dobradiça

O Boletim Dobradiça inicia um novo ciclo e se insere na série de boletins que tomaram como orientação este significante: Dobradiça. A atual Diretoria de Cartéis e Intercâmbios da EBP, através desta publicação, visa fortalecer o laço e a reflexão entre nós com relação aos cartéis e aos intercâmbios, em sua articulação com a Escola e para além dela com o mundo que nos rodeia. O ano de 2020 com seu cenário de pandemia trouxe enormes desafios para a sociedade. No âmbito da comunidade de analistas que compõe a nossa escola, a prática clínica, a troca teórica e a manutenção dos laços não ficam ilesos. Esse boletim foi elaborado com a intenção de contribuir para que possamos atravessar cuidadosamente esse período, mantendo um vivaz interesse pelo que surge de novo ao longo do caminho. Dobradiça, significante que nomeia o boletim de Cartéis e intercâmbios sinaliza sua função mecânica de sustentar o que divisa passagens e denota uma forma de conexão entre os espaços. Nosso boletim percorre um caminho moebiano, um íntimo que se desdobra em público, recolhendo os efeitos de extimidade que possam advir. O Cartel enlaça é a sessão que abre nosso boletim. A cada número, convidaremos três colegas a escreverem sobre o funcionamento do Cartel nos dias de hoje: como este se aproxima e no que se desvirtua do plano Lacan? Nesse número conversamos com colegas membros da Escola sobre o Cartel à distância: o que muda no cartel sem o encontro presencial? Stella Jimenez, Marcelo Veras e Antônio Benetti, partiram dessa questão e trouxeram pontuações fundamentais a partir da experiência como Mais-Um em cartéis que seguem funcionando mesmo durante o confinamento. Cada um, a seu modo, contribuiu para que sigamos no esforço de elaboração sobre o dispositivo de Cartel, tal como funciona ou fracassa hoje. Em seguida,

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Sobre Cartel e redes – Marcelo Veras

Quatro mais um, o que se escreve nas redes Uma das mais conhecidas teóricas sobre os efeitos da AIDS na cultura, Paula Treichler, foi pioneira na distinção entre pandemia real e simbólica (1). Vivemos no momento algo semelhante, o vírus faz furo no corpo imaginário, como algo inassimilável no espelho, e faz furo no simbólico, como algo que afeta nossos ritos e códigos de vida. O novo código social, para a parte do mundo que escolhe a cultura e não a barbárie, impõe a separação dos corpos por um certo período, deixando a sombra de que futuras separações, em caso de recrudescimento de notificações possa ocorrer. Isolamento de corpos não implica em isolamento social, pois a marca do humano é a linguagem, e as redes sociais nunca serviram tanto para favorecer os encontros. A comunicação virtual, fora alguns efeitos que derivam da etologia, nos separa da natureza, já que os animais isolados se dissociam sem possibilidade de comunicação, eles não formam bando, tal como uma ovelha desgarrada do rebanho. Já o homem, ele descobre de modo cada vez mais acelerado a vertigem das possibilidades do encontro virtual. Assim como havia um sem limites de reiteração narcísica das imagens por selfies, vivemos o sem limites da presença do outro. Os grupos de WhatsApp, as chamadas e seminários por Zoom, Skype ou Messenger, encurtou o espaço de comunicação, tempo necessário para compreender, e nos lançou todos em um presente de eterna vigília. Quais os efeitos sobre a temporalidade subjetiva, em que “Toda assimilação ‘humana’… se põe como assimiladora de uma barbárie”? (2) Pouco sabemos do que vai emergir após o confinamento, mas temos a certeza de que os encontros virtuais, antes vistos com desconfiança, encontraram um lugar definitivo na civilização. O Cartel não é uma rede O momento atual exige que se

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Minha experiência com cartel à distância – Stella Jimenez

Em primeiro lugar, devo dizer que é muito pouca, porque só agora estou começando a trabalhar nessa modalidade. A minha primeira impressão é de que o cartel é o dispositivo que menos sofre nesta forma de trabalho. Mas essa pode ser uma conclusão muito apressada. Existe, sim, uma certa perda de espontaneidade.  Num cartel, apesar de ser o dispositivo de base da escola, se produz geralmente uma afetuosa camaradagem, favorecida pelo fato de ser um pequeno grupo. Pela web é necessário pensar antes de falar, ativar o microfone, etc. Ao falar em presença sempre se percebe os gestos, movimentos, aceitação ou surpresa do que está sendo dito.  No cartel à distância os rostos visíveis ficam como fixados numa expressão neutra, o que produz certo e fugaz estranhamento.  Infamiliar que dura décimos de segundos, desde a volátil sensação de que um quadro se mexe, ou que uma tela nos fala, até a tranquilidade de saber que é uma outra pessoa nos falando.  Num encontro de seminários ou de núcleos, essa sensação se perde entre os muitos rostinhos esparramados no painel.  Com um analisando essa sensação não existe porque sempre se sabe que é um sujeito quem está nos falando. Em relação à transferência de trabalho, não percebi modificações. Os cartelisantes  entusiasmados continuam  com o mesmo entusiasmo.  Os não completamente engajados perderam a possibilidade de acusar o tempo e a distância pelo não  comparecimento. Até o momento não consigo circunscrever alguma outra particularidade. Falta tempo e experiência para poder falar mais. Stella Jimenez (membro EBP/AMP)

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Algumas questões sobre o ‘cartel entre distâncias’ – Antônio Benetti

Partirei do princípio fundamental da psicanálise de Orientação lacaniana formulado por Lacan a partir de 1970: “A Relação sexual não existe!”. E de sua outra formulação em “L’insu…”, lição de 11/01/77: “…diante do real, só existem duas posições possíveis: debilidade mental ou delírio.” Ele se inclui na debilidade mental, ou seja, “saber fazer aí, o possível, com os recursos que se tem…”. Então, nada de “regras”. Que pudessem, enquanto semblantes, eliminar o Real dos cartéis, do trabalho em cartel, o “rattage”… uma derrapagem para fora dos scripts traçados…o trabalho em cartel nos escapa…sempre… No caso, a questão é o trabalho em cartel na Escola Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano-AMP, num país de extensão geográfica imensa com Seções da EBP em vários lugares do território… A invenção do trabalho com a psicanálise e de sua transmissão via pequenos grupos, os cartéis: “juntem-se, façam ‘cola’, ao redor de um tema, por dois anos e dissolvam-se apresentando o produto próprio de cada um realizado no trabalho no grupo. No mínimo quatro, ao redor de um  outro, ‘mais um’, com a função de zelar e provocar a elaboração de cada um a partir do tema escolhido pelos componentes do grupo.” Isso aconteceu em 1964 e foi depois formalizado por Lacan em 1967, na época de seu seminário sobre o “Avesso da psicanálise”(os quatro discursos), pouco antes do maio de 68… A Escola Brasileira de Psicanálise cresceu muito, não só em número de membros, mas também em número de Seções e Seções em formação. Aí surge mais do que nunca a importância do trabalho cotidiano de transmissão da psicanálise através do pequeno grupo: o cartel. E o que nos foi demandado a partir do trabalho em cartel, via encontros virtuais: o que muda em relação à transferência de trabalho? A função do Mais-um sofre

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