Luiz Fernando Carrijo (EBP/AMP)
Fomos provocados a falar do número de cartelizantes em um cartel. Tomaremos, neste breve desenvolvimento, a última parte da pergunta que nos foi colocada: é possível um funcionamento que preserve o singular da questão de cada um, mesmo em grupos maiores?
A experiência na Diretoria da EBP[1] nos comprova que a demanda por constituição de cartéis cujo número de participantes é maior do que aquele previsto (4+1) é cada dia mais crescente. De saída, não nos parece que o número em si seja efetivamente uma questão. Como bem nos disse Lacan no “Ato de Fundação”: “Para execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo. Cada um deles (temos um nome para designar esses grupos) se comporá de no mínimo três pessoas e no máximo cinco, sendo quatro a justa medida. MAIS UM encarregado da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um.”[2] Logo, o acento deve ser colocado sobre a lógica do funcionamento, como sublinha Lacan nos termos de um “princípio elaboração”.
São inúmeros os trabalhos já publicados acerca da lógica do funcionamento do cartel, a maioria referindo-se ou à função do Mais Um, ou às contingências que levam à constituição de um cartel. Outros ainda se destinam a deslindar a função do cartel no funcionamento da Escola. Entretanto, quanto ao número de participantes, não temos tantas referências assim. A nosso ver, correlacionar um número fixo de participantes com a lógica e a eficácia do cartel é tratar a questão de modo a tamponar o que há de desafiador nesse tipo de trabalho, essencial para a produção de um saber desde um ponto de interrogação de cada um que aí se inscreve.
Se Lacan utiliza o termo “elaboração”, trata-se de colocar o acento sobre as condições para que um cartel se dê independentemente de seu resultado, na medida em que o cálculo de sua eficácia admite um impossível – um cartel pode sim fracassar e, no entanto, ter seguido o princípio de funcionamento com sua inscrição na Escola. São inúmeros os fatores que entram em jogo na determinação desse fracasso. Aprendemos muito quando tais experiências são colocadas a céu aberto. O “instante de ver” que leva “cada um” a formular uma questão é fundamental para que a singularidade da produção esteja a salvo. Um tempo de solidão, certamente. O “tempo para compreender” já está, ele mesmo, inserido no trabalho do cartel, ou seja, numa lógica coletiva, mas não sem o que J-A. Miller designa como sendo um funcionamento a partir de um agente provocador. Seu texto, já amplamente divulgado, “Cinco Variações sobre o tema da elaboração provocada”[3],, nos traz de maneira clara o que está em jogo no funcionamento do cartel. As cinco variações estão colocadas a partir do giro dos discursos, e não entraremos em mais detalhes discorridos nesse texto, somente sublinhando dois pontos que, a nosso ver, são fundamentais para responder à pergunta que nos foi colocada.
Primeiro, a partir da homologia entre os discursos da histeria e da ciência, trazidos à luz por Lacan, Miller sustenta uma “elaboração provocada” a partir de um agente provocador, sendo ele mesmo provocado. É a propriedade intrínseca ao Mais Um que, estando causado pelas enunciações advindas da psicanálise, pode ocupar o lugar do sujeito causado e provocar os membros do cartel a partir de sua própria relação com a causa que o divide. Isso quer dizer que se no discurso da histeria o “objeto a” ocupa o lugar da verdade, no cartel ele é deslocado para “fora” assumindo a função de causa. Logo, é enquanto sujeito dividido que o Mais Um funciona como agente provocador. Ademais, isso diferencia o lugar do ensino na psicanálise. Mas se cada um dos membros do cartel também entra com seu quinhão quanto à sua própria relação com a descompletude do saber, caberá ao Mais Um, como condição determinante para a eficácia do cartel, recusar a demanda que lhe possa ser dirigida de ocupar tanto o lugar do mestre, quanto o lugar do saber suposto. Não é como analista que ele entra no jogo. De todo modo, a recusa da maestria, da suposição de saber e da posição do analista poderá sustentar o grupo fora das identificações verticais, segundo as formulações de Freud em “Psicologia das massas e análise do eu”.[4]
Segundo, em decorrência mesmo das posições subjetivas colocadas no interior do cartel, é necessário, de acordo com a lógica coletiva pensada por Lacan quanto ao funcionamento do pequeno grupo, que cada um de seus membros entre a partir de seu traço particular; um significante que os designe, a cada um. Caberá também ao Mais Um fazer essa detecção e fazer valer esse traço de particularidade. Esse detalhe irá fazer com que o grupo saia da lógica da identificação horizontal[5] preservando o lugar da produção de um saber que porta uma enunciação.
Esses dois pontos recolhidos do texto de Miller[6] enfatizam na lógica própria ao trabalho do cartel, que embora o funcionamento se dê em grupo, a lógica coletiva que aí se aplica concerne ao um-por-um – um conjunto de “uns” que compartilham da causa freudiana, mas cada um com seu ponto de sustentação em um significante que lhes designa na diferença. Nesse sentido, Miller alude a que o número de participantes não é tão relevante, pois tratando-se de um coletivo de “uns”, a contagem é sempre (1+1+1+1…+1), resultando num conjunto onde o “vazio” se conta. Miller declara ainda que seu Seminário da Orientação Lacaniana funciona desde o mesmo princípio.
Entretanto, a pergunta que nos é colocada diz respeito à viabilidade do trabalho com um número de integrantes maior que o já consagrado 4+1, ou os ditos cartéis ampliados. Nossa ideia quanto a isso é a de que a eficácia ou a viabilidade deve ser medida em função destas duas variáveis que funcionam como condição para que um cartel responda à produção de saber. Sendo assim, um cartel pode ser ampliado desde que resguardados os princípios em que o “enxame” se diferencie numa lógica que não é da colmeia, ou pelo menos que ali não haja rainha.[7]