Cartel – máquina de guerra contra o isolamento

Você está aqui:
Sandra Arruda Grostein

A partir da questão colocada pelos editores de Dobradiça, gostaria de desenvolver uma reflexão sobre o impacto da virtualidade no dispositivo do cartel. Como sabemos, o dispositivo do Passe na EBP não aderiu de imediato ao mundo virtual, foi preciso um tempo para compreender, antes que este voltasse, parcialmente e sob algumas condições, a funcionar no âmbito da Escola. O Cartel, ao contrário, não só se manteve ativo como cresceu muito em número e em diversidade na sua composição.

Recorrendo a um breve histórico folheando as revistas Correio, destacaria alguns pontos para levantar ao menos uma hipótese sobre as consequências deste momento para o dispositivo cartel.

Na Correio número 10,  anterior à fundação da Escola, JA Miller recupera a famosa colocação de Lacan no Ato de Fundação – “para a execução do trabalho adotaremos o princípio de uma elaboração sustentada num pequeno grupo”[1], este recorte visava ressaltar o fato de que nesta proposição Lacan marca a existência do trabalho de Escola e não um trabalho que pode ser desenvolvido na Escola. Seu argumento neste texto versa exatamente sobre uma mudança no dispositivo onde ele sugere que o cartel original de Lacan era “um órgão de crítica e de controle das produções” e que foi substituído pelo lugar onde se processa um aprendizado.

Num outro texto da Correio de novembro de 2006, Stella Jimenez articula o real e o cartel ao dizer que Lacan coloca seu Sinthoma, isto é, o real, à prova de duas maneiras: “na clínica e na Escola, ao confiar o miolo da transmissão à participação em cartéis”[2]. Ela lembra que os cartéis subvertem a ordem simbólica ao apelar ao pequeno grupo sem líder, escapando do “ensino tradicional” em busca da transmissão da psicanálise na relação com o escrito, isto é, o produto de cada um ao finalizar um cartel.

Para concluir esta breve pesquisa encontrei no número 76 da Correio um texto de Carlos Augusto Nicéas intitulado “A solidão do pequeno grupo”[3] , onde ele busca articular a afirmação de Lacan no Ato de fundação – “fundo tão só como sempre estive …” com a solidão de estrutura da relação de cada um com a causa analítica, isto é, o lugar da causa que permitiu Freud inventar a psicanálise se reproduziria para cada um no cartel.

A partir destes três pontos de articulação, com Miller em seu texto ao destacar a função do cartel como órgão de crítica e de controle das produções, com Stella ao marcar a importância do escrito no tratamento do real na Escola e com Nicéas ao relembrar a importância da causa na “soma das solidões”, podemos retomar a discussão sobre o efeito da virtualidade no dispositivo do cartel.

Não há dúvida de que o número e diversidade dos cartéis neste tempo pandêmico e virtual produz efeitos no trabalho da Escola ao evitar a dispersão que o isolamento promove. Porém, ter se convertido num agente aglutinador e agalmático não garante ao dispositivo seu propósito e é preciso estar atento para a ameaça sempre presente, aquela vinda do imaginário, de transformar esta máquina de guerra contra o didatismo num instrumento do analista solitário realizar seu ideal narcísico face a demanda crescente de estudo e aprendizado da psicanálise.


 

[1] JA Miller – O Cartel no Mundo- Correio número 10
[2] Stella Jimenez- – Cartel, Número especial do Correio- Novembro 2006
[3] Carlos Augusto Nicéas- Solidão do pequeno grupo- Correio número 76