Amor e Loucura*

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​​​​O amor cortês é uma poética inventada para “Cantar as Mulheres” na idade média. Lacan se interessou pelo caráter inédito de uma encenação que exige gestos e palavras refinadas. Momento de separação entre as funções femininas e maternas sustenta a impossibilidade do objeto amado. O trovador aspirante a amante deve cumprir etapas e suplicar humildemente antes de ousar formalizar o pedido. ​

O fazer-se desejar sem piedade pelo sofrimento do aspirante é a posição da bela indiferença, comparável às preliminares do ato sexual. No Seminário 7 Lacan sublinha a elevação da Dama à posição de A Coisa em dois níveis: como significante, precisa ser conquistada pela arte, canto, poesia, em uma sublimação forçada; e na outra face a Dama como real sem sentido, impossível de decifração. Desse modo, transforma-se o impossível da relação sexual pela interdição que tenta fazê-la existir, troca o impossível pela incapacidade pessoal. A Dama é fiel ao recado que hoje ainda as mães aconselham às filhas: “tem que se fazer desejar”. Conselho que põe no centro a grande questão da mulher no lugar de objeto a, que chama o desejo, mas pede para ser amada, pede ao amor que vele o objeto a e produza um mais além. ​

No amor cortês a questão que se destaca é a organização de um ritual que permite e, ao mesmo tempo, delimita o gozo e trata a não relação sexual. ​

Mas o real não é mais aquele, os impasses da civilização nos enfrentam, mesmo sem saber, com a lacuna aberta entre o “Passado e o Futuro” que é o titulo de um livro de Hannah Arendt.​

De fato, o fenômeno totalitário revelou que não existem limites às deformações da natureza humana e que a organização burocrática das massas, baseadas no terror e na ideologia, criou novas formas de governo e dominação, cuja perversidade nem sequer tem grandeza, conforme nos aponta Hannah Arendt ao examinar a banalidade do mal no relato que fez do processo Eichmann. (Eichmann in Jérusalem – A report on the Banality of Evil, 1963).​

“Nossa herança nos foi deixada sem nenhum testamento”, disse o poeta francês René Char, ao que de Hanna Arendt acrescenta “talvez esse seja o mais estranho dentre os aforismos estranhamente abruptos em que o …o poeta condensou a essência do que vieram a significar quatro anos na Resistance (resistência) para toda uma geração de escritores e homens de letras europeus”. Na mesma linha se pode incluir Tocqueville “desde que o passado deixe de lançar sua luz sobre o futuro, a mente do homem vagueia nas trevas”

​Declarações que guardam toda a atualidade ainda hoje em que vivemos o auge dessa queda da Tradição, a tal ponto que Miller pode dizer “A ordem simbólica não é a mesma”, os adolescentes também não. Em 1890, Frank Wedekind escreveu uma peça chamada “O Despertar da Primavera” tão audaz ao retratar o tema da sexualidade adolescente, que teve de esperar 15 anos para poder representá-la em 1906. Dele resgato uma frase: “O despertar da sexualidade só é possível aos meninos quando eles sonham com isso”, bela intuição que Lacan retoma quando situa o despertar adolescente na dependência dos sonhos, para poder encontrar-se com o outro sexo. Nesse sentido, parece-me importante sublinhar o pulo que significa pensar o amor contemporâneo da inexistência do Outro e da proliferação dos nomes do pai e, fundamentalmente, a virada teórica que significa pensar o amor como invenção, diferentemente de Freud que o considerava repetição.

​Será que o campo do chamado subjetivo é suspeito? Vejamos que tanto Wedekind como Freud e o próprio Lacan nos alertam para o que é fundamental. Se a saída do Édipo para Freud significava uma certa pacificação no período de latência, é graças à fantasia e ao sintoma que cumpre essa função. Na puberdade começa outra ordem com a introdução do real da pulsão, que não vem com instruções e as que existem não servem para todos. A marca do real do gozo é chamada de entrada na puberdade e põe o púbere na situação de modificar, elaborar o novo e dar-lhe um lugar na sua vida. Precisa decidir o que faz com a roupa velha das fantasias infantis e o que inventar no buraco da não existência sexual. O corpo não é mais o mesmo deve ser reconstruído.​

Uma paciente fala de sua divisão nas coisas do amor com a seguinte frase: “Por exemplo, se vem alguém com umas flores bate na porta e diz que te ama é que está perturbado, doido… todo meu grupo pensa igual”. Mas o problema não é só a irrupção de um apaixonado impaciente, pois se alguma paquera vira namoro logo se instala a desconfiança, a angústia com relação ao parceiro; o que provoca, para sair da encruzilhada, uma sexualidade sem compromisso. De fato, o amor sempre esteve ligado à perturbação, mas não poderíamos concluir que hoje apresenta particularidades inéditas? Como entender a violência e o amor atual? Como pensar o amor e os acontecimentos corporais? O corpo como imagem e o corpo pulsional? Como pensa Lacan a saída desse muitas vezes pesadelo? São algumas questões que me estimulam a seguir. Espero contagiar a outros.

Silvia Emilia Espósito (EBP/AMP)

*N.E.: Texto publicado originalmente no site do XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, 2016: “Adolescência, idade do desejo”.