Algumas questões sobre o ‘cartel entre distâncias’ – Antônio Benetti

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Partirei do princípio fundamental da psicanálise de Orientação lacaniana formulado por Lacan a partir de 1970: “A Relação sexual não existe!”. E de sua outra formulação em “L’insu…”, lição de 11/01/77: “…diante do real, só existem duas posições possíveis: debilidade mental ou delírio.” Ele se inclui na debilidade mental, ou seja, “saber fazer aí, o possível, com os recursos que se tem…”.

Então, nada de “regras”. Que pudessem, enquanto semblantes, eliminar o Real dos cartéis, do trabalho em cartel, o “rattage”… uma derrapagem para fora dos scripts traçados…o trabalho em cartel nos escapa…sempre…

No caso, a questão é o trabalho em cartel na Escola Brasileira de Psicanálise do Campo Freudiano-AMP, num país de extensão geográfica imensa com Seções da EBP em vários lugares do território…

A invenção do trabalho com a psicanálise e de sua transmissão via pequenos grupos, os cartéis: “juntem-se, façam ‘cola’, ao redor de um tema, por dois anos e dissolvam-se apresentando o produto próprio de cada um realizado no trabalho no grupo. No mínimo quatro, ao redor de um  outro, ‘mais um’, com a função de zelar e provocar a elaboração de cada um a partir do tema escolhido pelos componentes do grupo.” Isso aconteceu em 1964 e foi depois formalizado por Lacan em 1967, na época de seu seminário sobre o “Avesso da psicanálise”(os quatro discursos), pouco antes do maio de 68…

A Escola Brasileira de Psicanálise cresceu muito, não só em número de membros, mas também em número de Seções e Seções em formação.

Aí surge mais do que nunca a importância do trabalho cotidiano de transmissão da psicanálise através do pequeno grupo: o cartel.

E o que nos foi demandado a partir do trabalho em cartel, via encontros virtuais: o que muda em relação à transferência de trabalho? A função do Mais-um sofre alguma mutação? As Seções fechadas e a Escola, funcionando de forma remota, se sustentam como lugares de endereçamento das produções singulares de seus cartelizantes?

Nunca tive a experiência de um trabalho em cartel online…

A única experiência de cartel a distância foi presencial: quatro colegas da Seção Minas-EBP se constituíram em cartel, tendo como mais um Carlo Viganó, então residente em Milão.

Nós nos reunimos presencialmente duas vezes, em  Belo Horizonte, em reuniões longas que ocupavam a manhã toda e a tarde, com intervalo para almoço, e em Barcelona, 1998, por ocasião do Congresso da AMP.

Trabalhávamos em torno da questão das forclusões localizada e generalizada e em Barcelona rumo ao trabalho com o “Nó de Borromeu”, ocasião em que C. Viganó e Ricardo Carrabino apresentaram trabalho sobre o tema, aplicado à clínica psicanalítica…

Não foi nada fácil, mas foi o possível e efeitos de transmissão da psicanálise ocorreram inegavelmente, tendo marcado o percurso de cada um dos membros do cartel. Barcelona 98 foi ocasião da cisão na AMP e um dos membros do cartel se desligou da Associação,  junto a seu analista.

Atualmente me encontro na posição e função de Mais-um de um cartel inscrito na Seção Minas-EBP, ao redor da leitura e discussão do seminário “La experiência de lo real en la cura psicoanalítica”, de J.A.Miller.

Qual a questão que nos fisgou e causou cada um nesse trabalho, onde  nos reunimos quinzenalmente  com todos presentes? O capítulo III, “Perturbar la defensa”.

Onde podemos ler, na p. 35: “la tarea del analista, el efecto de su acto, podia ser calificado de perturbar la defensa.”. E, na p. 36: “Perturbar la defensa es entonces la manera con la que defini la última vez el corazón, la matriz misma de la operación analítica”.

Avançamos na leitura passo a passo e tivemos discussões elucidativas e elaborativas dos conceitos que surgem, como o de defesa, transferência negativa, resistência, etc, não sem citações de fragmentos clínicos ilustrativos do que se trabalha. Uma colega fez um grupo de whatsapp de apoio, onde são colocadas transcrições de gravações de algumas reuniões,  citações de referências bibliográficas, etc, pondo os membros do cartel em trabalho.

Mas, sem abrir mão do vivo das reuniões presenciais…

Aí fomos surpreendidos pelo COVID-19.

Reuniões interrompidas. O grupo de whatsapp do cartel transformou-se, no momento, em grupo social, com envio de zaps, etc. Ou seja, o efeito de grupo no cartel foi deslocado para o grupo de whatsapp…

O que me parece importante permitir, enquanto Mais-um…

Mantém-se um certo affectio societatis neste momento de risco e angústia para todos… 

O  cartel continua, mas não num trabalho em cartel… 

Às vezes trocam-se algumas informações referidas a livros e textos…

O Cartel produz efeitos de grupo e de Discursos. Às vezes em um Discurso, outras em outros, inclusive com efeitos analíticos raras vezes e o Mais-um deve zelar para que o trabalho de transmissão, a que se propõe um cartel, continue.

Perturbar a defesa não seria função do Mais-um hoje, quando o efeito de grupo se faz presente?

Exemplo: um colega manifestou sua dificuldade em escrever e consequentemente produzir seu produto próprio…

O Mais-um intervém: “fica tranquilo…Vai escrevendo frases que você achou importantes, perguntas, depois pode trazer para a reunião do cartel oportunamente e vamos tentando colaborar com a produção do seu texto…” Ficou menos angustiado e deu OK.

A questão do online na transmissão da psicanálise me remete a duas intervenções de J.A.Miller em 1998 e 2008.

Seria possível considerá-las no trabalho em cartel à distância?

Antônio Benetti (EBP/AMP)

1998:
 2008 – Seminário de J. A. Miller:
  • “Cuando pensamos que son todos sujetos del significante, resulta simples, se hacen análisis por telefono.¡Se ríen! Es que ustedes son buenos parisinos, buenos francesitos. El análisis por teléfono se pratica…, en nombre de Lacan. De sujeto del significante a sujeto del significante. He recuperado a algunos de los que fueron pasados por esa trituradora, y puedo decirles que ¡no cuenta para nada!, ¡no existe! Es una broma…mala. ¡Qué lástima! ¡Imaginen el campo que se nos abriría por internet!” (Sutilezas analíticas: Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller, p. 250, Editora Paidós)