A transferência enquanto suposição de saber está teorizada por Lacan, na transição da primeira para a segunda década do seu ensino. Sobre esta teorização Miller, em 2004(1), comenta, que a chave do que Lacan aí sustenta não está no Sujeito suposto saber e sim no paradoxo que está em jogo nesta suposição.
Este paradoxo pode ser visto no par de opostos que aí se conjuga: uma demanda dirigida a um Sujeito-suposto-Saber veicula um desejo de curar-se. Entretanto este desejo traz consigo uma recusa a curar-se, o que significa querer restituir o gozo perdido no abalo da montagem sintomática.
No Seminário 11, de Lacan(2), vamos observar que, na relação com o inconsciente, a transferência representa, ao mesmo tempo, uma possibilidade de abertura e uma possibilidade de fechamento. Isso indica, num certo sentido, uma partição da transferência em motor e obstáculo, conforme o paradoxo freudiano de 1912(3), que alcança a versão do inconsciente como pulsátil.
É interessante notar que esse movimento da transferência, que se conjuga ao movimento do inconsciente, tem algo em comum com a adolescência, pois esta diz respeito a uma posição transitória que, desde esse lugar, faz báscula. E essa báscula diz respeito, justamente, ao desejo, pois é nesse momento que o mesmo é posto à prova na medida em que no lugar da pergunta “o que eu sou para minha mãe?”, se instala outra pergunta “o que é o Outro sexo?”, o que provoca um movimento de ir e vir, dado que responder ao desejo do Outro provoca um impasse.
No 3º ensaio de sua teoria sexual, intitulado “As transformações da puberdade”(4), Freud indica que a metamorfose concerne à pulsão sexual, dado que esta sofre uma mutação de um modo “infantil” a um modo “definitivo”; o que significa outro ponto de báscula.
Dadas estas aproximações entre os conceitos de transferência, inconsciente e o momento da adolescência, interrogamos: o que a clínica psicanalítica tem a dizer sobre o manejo da transferência com adolescentes? O caminho nos é indicado por Miller quando, ao falar sobre a experiência do real na cura analítica, nos convida a considerar as operações de causação do sujeito. Podemos, então, tomá-las como um ponto de partida, relacionando-as com as duas faces da transferência.
A operação de alienação corresponderia à face do SsS, que, por sua vez, corresponde ao movimento de abertura do inconsciente, com base no qual o sujeito pede uma mediação e formula uma demanda. A operação de separação corresponderia ao efeito de transferência que se opõe à revelação da verdade, trazendo o obstáculo imaginário sob a forma do amor que engana. É justo nessa vertente que se situa o conceito de transferência como colocação em ato da realidade sexual do inconsciente; uma vertente da repetição que constitui uma certa particularidade da presentificação do adolescente no dispositivo, evidenciando um não querer saber sobre as marcas significantes que determinam o seu gozo.
A adolescência é, portanto, um momento de impasse que se reflete nesse movimento transferencial. Um impasse em que as duas correntes propostas por Freud, terna e sensual, não se encontram. Diante de tais impasses Miller(5) propõe tratar a adolescência como uma construção, considerando três aspectos: saída da infância, diferença dos sexos e imiscuição do adulto na criança.
Podemos nos servir destas considerações como ponte para compreender que uma particularidade do adolescente no dispositivo é a presentificação da transferência para além da suposição de saber. Isso significa que o desejo e a fantasia não estão postos, o que constitui um impasse clínico. Portanto, o desafio diz respeito ao saber que já não está encaixado no Outro e sim no próprio bolso, através dos objetos tecnológicos que o capitalismo oferece. É o que nós vamos examinar na prática e que Miller chamou de “autoerótica do saber”.
Na perspectiva da suposição de saber está posto o fundamento de que, como linguagem, o Outro antecede ao sujeito. Na perspectiva do gozo, que caracteriza o último ensino de Lacan, o Outro não existe a não ser por um movimento que o converte em depósito de um objeto, enquanto corpo. Assim sendo, podemos entender que a suposição de saber pertence à categoria dos semblantes e vem dar conta do horror à exposição ao objeto de gozo, que aparece como consequência do real como impossível. Daí a adolescência ser caracterizada como a crise dos semblantes.
Na medida em que o analista não opera do lugar de mestre, faz valer os semblantes necessários para promover a desobstrução do sujeito a um significante mestre do Outro, permitindo que se coloque em jogo a sua ficção. Estando o adolescente em crise de semblantes, instala-se aí um impasse que vai na contramão do trabalho de transferência.
Para sair desse impasse cabe ao analista, sem deixar de acompanhar o uso dos objetos de gozo, tentar introduzir um ponto de basta a esse gozo desenfreado, visando tirar o adolescente de uma situação de báscula, para introduzir, na dimensão da castração, um ponto de vacilação.
Sabemos, com Lacan, que o algoritmo da transferência configura um saber que, situado ao lado do semblante, toca o real. Assim sendo, cabe interrogar o estatuto do objeto a e de que modo a sua articulação com o saber abre caminho ao real.
O objeto a, como resultante de duas operações de estrutura lógica – alienação e separação – já está sendo tratado por Lacan fora do domínio imaginário. Se pensarmos o objeto a articulado ao algorítimo da transferência, numa perspectiva de anterioridade lógica ou de sustentação, somos impelidos a deixar de pensar a transferência correspondendo a uma diacronia significante, numa perspectiva de repetição e levados a pensá-la numa perspectiva pulsional, como satisfação.
Assim sendo, a mesma lógica que nos faz pensar o inconsciente como uma dedução da transferência, faz pensar a transferência como uma dedução do objeto a.Tomando este referencial, e sem cair no engodo de uma generalização, podemos pensar que, sob transferência, o encontro com o desejo do analista pode permitir ao adolescente uma conexão com o circuito da mensagem do seu sintoma e consequente advento da causa, que singulariza esta divisão.
Analícea Calmon (EBP/AMP)