Gostaria de apresentar algumas das questões que o debate em curso na cultura com relação à explosão dos gêneros nos coloca, a nós analistas.
Que explosão? São 56 opções para definição de gênero de alguém que se inscreva hoje no facebook americano, 17, no brasileiro. A ideia é que haja gêneros para todos os gostos, desde os clássicos, até gênero “fluido”, “pangênero” ou ainda o gênero “questionando o gênero”.[1] Sentimos o quanto estamos diante de uma catalogação instável e em proliferação descontrolada, mas como abordá-la?
A anatomia de Freud
Proponho partirmos de uma premissa essencial a essa proliferação: a anatomia não é destino.
Essa premissa tem uma materialização já clássica, dita transexual. Ela exibe seu desacordo entre sexo e gênero e exige correção, como no clichê: “sou uma alma de mulher, num corpo de homem”. É uma posição dita trans-binária, pois se mantém referida ao binarismo masculino-feminino. Há uma posição “trans” bem mais radical, para a qual não apenas a anatomia, mas o próprio binarismo deve ser superado como forma única de identidade e sexualidade. O binário hetero seria apenas uma matriz possível entre outras, um modo de vida straight. Neste plano, nem a anatomia, nem o binário são incontornáveis no que concerne à sexualidade. É a posição dominante nos estudos queer.[2]
Tanto uma posição quanto a outra parecem diametralmente opostas à célebre frase de Freud: a anatomia é o destino.[3]
A frase, tomada de forma isolada, parece indicar que a anatomia sustentaria uma diferença natural, original e, portanto, intransponível entre homem e mulher. Ao contrário, ela vem ratificar a ideia de que a anatomia é decisiva, mas nada essencial, nada natural, pois só intervém, para a criança, em um segundo tempo, a partir do olhar do Outro. É o mundo que vai dizer, seguindo seu modo de “ler” a morfologia da criança, para que lado ela deve ir em termos de identidade sexual e não seus genes, ou qualquer tipo de sexualidade primordial. Nada mais coerente com a ideia de que nos tornamos o que somos a partir do Outro e que faz Freud afirmar, por exemplo, que “a masculinidade e a feminilidade puras aparecem como construções teóricas de conteúdo incerto”.[4]
Lacan resume e explicita essa posição freudiana ao nos incitar a situar a anatomia a partir de sua raiz etimológica, como tomo, tomia, corte.[5] A diferença anatômica entre macho e fêmea não está no real, ela é um recorte que resulta do encontro entre simbólico e real. Só há diferença no simbólico. Afinal, segundo nosso aforismo maior: não há relação sexual no real.
Trans
Tudo resolvido? Não, porque Lacan mais que qualquer um, mostrou como as determinações simbólicas são decisivas, como as fixações libidinais a que nos remete Freud se instauram em nossa história como verdadeiros acontecimentos, compondo nosso corpo e traçando muito de nosso destino.
Difícil, para quem lida com a viscosidade da libido nessas fixações e sua tendência à repetição, compartilhar da euforia de tantas áreas da cultura com relação à possibilidade de uma extensa reinvenção de si.
Ora, o debate é intenso e polarizado. Nele, se temos reservas com relação à essa possibilidade nos vemos logo ao lado dos que nos levam ao pior, ao impor um violento “não” a qualquer mudança que não seja dentro do paradigma hetero (com Deus e a pátria de preferência).[6]
Não é uma questão estritamente política, mas igualmente clínica, pois nos deparamos cada vez mais com sexualidades vivas, ativas, mas ilegíveis a partir do prisma masculino-feminino. Para colocar a questão no plano da radicalidade do que nos apresenta nossa clínica hoje, temos que estar dispostos a rever nossos conceitos. Não foi sempre foi o caso?
Digamos, então, que a questão “trans” seja “até que ponto ainda precisamos da anatomia, por um lado, e do binarismo homem-mulher, por outro, para nos sustentar em nosso ser sexuado?” Seu desdobramento no plano de nossos conceitos seria: É possível prescindir do falo como operador de diferença e de partilha do teatro dos sexos?
O falo e a paz
Tantos recriminaram a Freud que um só discriminante, o falo, e não dois atributos, pênis e vagina, sustentassem essa partilha! Lacan percorre inúmeros caminhos abstratos, da lógica e da matemática, por exemplo, para nos mostrar que o essencial é que o dispositivo fálico institui uma diferença sustentada no binômio zero e um.
Zero e um sustentam um “sim e não” bastante sólido.[7] Em vez de duas marcas de atribuição sexual, ou outras mais ainda, apenas “um” ou “zero”.
Dois atributos distintos, pênis e vagina, por exemplo, estruturam uma diferença instável: “Um” e “um” sempre abre a possibilidade de um a mais: “porque não “um”, mais “um”, mais “um” e assim indefinidamente”? É o que nos mostra o facebook hoje. Já com um discriminante único temos uma partilha que não se infinitiza. Sejam infinitos sujeitos, eles poderão sempre ser divididos em dois: uns têm outros não.
O problema começa quando se toma a diferença fálica como atribuição de valores. Homem-mulher, a despeito das aparências, não são, na clínica freudiana, ao menos tal como lida por Lacan, uma distribuição de desigualdades sociais ou de poder, mas a presença ou não de um atributo, com vantagens e desvantagens tanto para o lado que o porta quanto para o que não o porta.
Insisto: não me refiro às inúmeras situações sociais em que a inegalidade pode ser absurda, mas à situação muito especial que é a da clínica psicanalítica. Nela, o que está em jogo não é tanto de que lado estamos, muito mais como, para cada um, um corpo originalmente “perverso polimorfo”, como define Freud, mesmo não tendo que exatamente escolher um lado, terá que se localizar em algum ponto do continuum entre os polos masculino-feminino e recalcar tudo o que não se encaixa bem nele.
Cis
O modo de estruturação “sim ou não”, parece, porém, fora de moda no nosso mundo estadunidense. O ideal liberal de hoje é que haja tantos “uns” quantos se quiserem contar, todos diferentes entre si.
Porque não? Não creio que devamos ter, como psicanalistas, nenhuma pretensão de saber quais os caminhos corretos para a cultura. Há uma questão, porém, que não podemos evitar por dizer respeito aos fundamentos de nossa clínica: Caso a partilha binária, hetero, obrigatória, seja realmente descartada, como modo de estruturação predominante de nosso ser sexuado, de que modo isso incide sobre outra partilha, bem mais geral, a do binarismo significante?
“Noite” e “dia”, por exemplo, constituem um par oposto de significantes. Eles não traduzem realidades objetivas, mas as criam, para além das variações objetivas de luz e sombra. Engendram realidades bem concretas, basta o exemplo dado por Lacan no Seminário 3 para nos convencermos. Ele propõe que nos imaginemos em um fim de tarde sendo tomados pela paz do anoitecer.[8] É uma realidade engendrada pela diferença entre a noite e o dia, sustentada apenas pelo recorte deste par significante. E precisamos tanto da noite e do dia como dessa paz para viver nesse mundo.
A matriz hetero, ou cis, edípica é, segundo Lacan, um poderoso “método de adaptação”. Ela associa um discriminante binário do tipo “zero” e “um” a um suporte anatômico, o pênis, e ao mesmo tempo a um binário significante homem-mulher. Estabilizado este binário, o dispositivo será o “ponto de basta” que estabiliza muitos outros.[9]
Caso essa matriz não seja mais o ponto de basta fundamental da cultura, podemos ainda assim viver o dia e a noite de maneira estável? Ora, desde sempre Freud e Lacan examinaram situações onde o falo era inoperante e mesmo assim o binarismo significante seguia de pé. Então, ou recusamos ao psicótico a possibilidade da paz do entardecer ou assumimos que há outras vias, não fálicas, para vivê-la.
O que não cabe no Facebook
Mas Lacan irá bem mais longe. Ele não apenas descreverá exceções ao binarismo edípico igualmente eficazes. Com suas fórmulas da sexuação, introduzirá um novo par que passará a nos orientar na clínica sobre as questões do sexo fora de qualquer binarismo.
Apesar de mantidos os termos “masculino” e “feminino”, este par no Seminário 20 não é mais um binário. Não são gêneros, traduzem uma dialética de articulação entre dois modos do gozo se inscrever no corpo. O gozo fálico, dito “masculino” corresponde à experiência de uma satisfação vivida como conjunto fechado, compacto, totalizado, chamado por isso por Lacan de campo do Todo. Já o outro lado, “feminino” é o do gozo como um conjunto aberto, inconsistente, portanto, sem identidade definida, para o qual Lacan reserva o termo nãotodo.[10]
A polaridade binária de gênero passa a ser regida pela dialética entre o Todo e o nãotodo. Os gêneros da lista do facebook, binários ou não, estarão todos, para Lacan, do lado totalizante, dito masculino, por remeterem a uma identidade estável. Do outro lado, feminino, como falar em “um lado”? Este gozo não tem assentamento, não é um topos, seja ele identitário ou de gênero.
O gozo feminino lacaniano não é um gênero, mas a experiência corporal de um gozo “inassimilável”, como C. Leguil destaca em Lacan.[11] Não é nem mesmo a ausência de gênero, um gênero agênero, mas um gozo que insiste inclassificável por definição, que torna qualquer lista precária, inconsistente. Ele nos habitará, por sermos seres falantes, desregulados pela linguagem, em qualquer uma das possibilidades de gênero do facebook.
No-binarios
Afuera del todo x notodo?
Um real queer?
Grande pretensão a do psicanalista de legislar sobre o que seria, “na verdade” o masculino e o feminino! Corremos este risco a cada vez que usamos a diferença entre gozo fálico e gozo feminino confundida com o binarismo de gênero. Talvez por isso, Lacan tenha proposto outros modos de apreensão deste gozo: suplementar, louco, místico ou ainda gozo opaco do sinthoma. É com esse que quero concluir.
Sem justificar porque chamá-lo de gozo do sinthoma, que se retenha sua definição como “acontecimento de corpo”. Ela indica, segundo J. A. Miller, o acontecimento de um gozo que não é um “gozo sentido” (gozo totalizável, que se sente e se localiza no corpo), mas um gozo opaco (deslocalizado, sem lugar no corpo, mas ao mesmo tempo sendo dele).[12]
O que temos de vida em nós pode ser vivido no campo do universal. É a que serve o falo, para tornar esse gozo apreensível, localizado (e também limitado). Parte da vida do corpo não será, porém, apreendido por esse aparelhamento e se manterá, no corpo, mas sem nome ou endereço.
Ora, se o termo queer designa a ideia de que não há identidade legível, fálica ou não, que diga a última palavra sobre nosso gozo, Lacan demonstra, então, que a psicanálise sempre lidou exatamente com o gozo visado pelos estudos queer.[13]
Retomo para concluir a questão “trans” no ponto em que acredito seja o essencial: Seremos, psicanalistas, suficientemente queers para não nos precipitarmos em direção a nossas chaves edipianas de leitura e estarmos à altura do real em jogo nas soluções queer de nosso tempo?[14]
A resposta passa pela questão maior de Lacan, com estar à altura do real em jogo em uma análise? Nosso desafio é esse, mostrar como é possível, como analistas, estarmos à altura do sem-chão do gozo opaco que nos habita para propor uma escuta livre o bastante de preconceitos que lhe dê o lugar necessário na análise e na vida.
Post scriptum
Creio que dessa forma respondo à vertigem que me tomou ao ler o seguinte diagnóstico da situação enquanto preparava esta apresentação: “os/as psicanalistas, por mais que almejem a abstinência na sua escuta, não escapam a essa situação”, que é a do “homem-varão branco ocidental cis e heterocentrado, de classe média ou média-alta”. [15] Podia jurar que o autor, Thamy Ayouch, me conhecia e apontava o dedo para mim!
Essa vertigem paranoide se dissipou quando a ela respondeu minha certeza de que é sempre possível escapar, em parte que seja, à nossa situação. A crítica do autor, muito justa, incidia sobre a pretensão, associada à posição cis-hetero, em sustentar um olhar “de fora”, imparcial. Já minha certeza se sustenta no que vivi bem “de dentro”, como analisante.
Um analisante é tudo menos o campeão da luta anti-preconceito ou das reinvenções de si. Ele vem se queixar e refazer o caminho de como tudo e todos foram levando-o a ser o que é. Tudo parece concorrer para que nada rompa as determinações de seu labirinto obsessivo, ou de sua prisão histérica. Apesar disso acontece, às vezes, em uma análise o quase milagre de uma fala que nem se queixa, nem se contrapõe a nada, que tem como interlocutor um Outro inconsistente, em aberto, nem vilão, nem herói. Acontece, em uma análise, que alguém tome a palavra para acertar as contas com seu destino.
É ao mesmo tempo a descoberta de que nossa existência depende do que somos, do gozo que coube, mas muito mais do pôde não caber. Pura singularidade, não se encadeia, está fora de qualquer pacto, mas sem ele nada “dá liga”.
Talvez seja essa a especificidade da psicanálise, a de oferecer a quem está se debatendo com os preconceitos do Outro e com os seus próprios a possibilidade de retomar as tantas demandas e fixações libidinais que fizeram história em sua vida para fazê-las funcionar de outro modo. Como? Contando com a vida que a todas estas determinações escapou. Ela se pressente nos repetidos encontros com um gozo a nós destinado, mas para o qual não haverá jamais destino. Queer ou não, é com essa alteridade sem corpo (em nosso corpo) que lançamos a cada vez os dados.[16]
Buscar o ponto de real em que esse gozo é abertura ao Outro foi o que me levou a tomar, neste debate, a palavra.
Marcus André Vieira
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