Jésus Santiago
O passe é certamente a culminação do desacordo de Lacan com as concepções sobre o final da análise e a formação analítica que tiveram lugar no movimento psicanalítico após a morte de Freud. Até a proposição do passe, em outubro de 1969, a formação analítica esteve relegada ao suposto caráter didático da análise do candidato à psicanalista. Em A análise finita e a infinita já aparecem os primeiros indícios do sistema da análise didática que visa atingir os resultados exigíveis para a formação analítica. Freud afirma, por exemplo, que a análise do analista “deve gerar no aprendiz de psicanalista a firme convicção na existência do inconsciente”. Trata-se, assim, de uma “aprendizagem que acontece quando através do material recalcado e de percepções até então inverossímeis, torna-se possível ao candidato uma primeira apreensão do único método garantido para a atividade psicanalítica”.[1]
Chama a atenção, nesse texto, o emprego do número de termos que resvalam para uma concepção didática ou mesmo pedagógica da análise de formação do psicanalista. Robustece-se essa concepção com a inclusão de uma observação de Ferenczi do “quão fundamental é para o sucesso” de sua prática “que o analista tenha aprendido a partir de seus próprios ‘enganos e erros’ e que tenha adquirido domínio sobre os ‘pontos fracos da própria personalidade’”.[2] É o próprio final de análise que está em questão nessa concepção didática da análise, pois exigir do analista “um grau mais elevado de normalidade psíquica e correção como comprovação de sua habilidade profissional” é, no fundo, empenhar-se para que a figura do analista possa funcionar – diz Freud – como “modelo para o paciente em determinadas situações ou mesmo como professor”.[3]
Didática versus experiência
Ao contrário dessa perspectiva didático-pedagógica, Lacan fez valer o final do tratamento analítico como experiência, precisamente como uma solução que se extrai da confrontação do ser falante com a experiência do real. Afirmar que o tratamento se constitui como uma experiência que se suporta pela materialidade da palavra e da linguagem faz surgir o problema das relações entre verdade e saber. Freud retira consequências desse problema, ao revelar o seu comprometimento com o que ele próprio denomina, nesse mesmo texto, como o “amor à verdade”.[4] O amor à verdade é o que faz com que o trabalho analítico do inconsciente, sob transferência, se confunda com a busca de verdade, e por isso a regra fundamental de dizer sempre toda a verdade. Porém, o ensino de Lacan, em seus diversos momentos, mostra que a busca da verdade esbarra com aquilo que se impõe sob o modo da experiência do real. Se o trabalho analítico do inconsciente convém ao sujeito que corre atrás da verdade, é preciso dizer, desde já, que o real não se ajusta inteiramente às verdades do inconsciente. Cabe, então, colocar a questão do que vem a ser o tratamento concebido como experiência do real em contraste com a perspectiva do amor à verdade.
Para Lacan, o amor à verdade é uma miragem na medida em que se deposita nela todas as chances de sua revelação pelo saber inconsciente, sem levar em conta a presença do real. Ao mesmo tempo que o analisante busca a verdade, é quase inevitável que a própria experiência lhe favoreça topar com o real. Há, portanto, uma nítida correlação entre a decepção em se atingir a verdade e a experiência do real. Pôr em questão o amor à verdade não quer dizer que se pode eliminá-la, pois esse deparar-se com o real supõe, em alguma medida, a decepção do sujeito em se atingir a verdade. Assim, essa disjunção entre a verdade e o real se justifica, ou seja, se a primeira se baseia na procura ou busca, o segundo presentifica o encontro.
É nesse sentido que se compreende porquê Jacques-Alain Miller inicia o seu curso sobre A experiência do real no tratamento analítico perguntando: o que é o real?[5] É certo que Lacan já havia proposto, desde 1953, numa conferência que levava o mesmo título, a famosa tríade – o imaginário, o simbólico e real.[6] Evidentemente que se o real, neste momento inicial, não encontra ainda uma formalização mais acabada, ele já se faz presente de forma implícita em suas diversas elaborações. Para se entender essa trajetória do ensino de Lacan acerca do real, admite-se que sua opção é retirar a psicanálise desse registro da didática como se ela fosse um saber que facilmente se aprende e se ensina. A saída adotada é tomar a psicanálise como experiência – tal como esta é concebida no discurso da ciência, pois na ausência da experiência nada dela se ensina, e tampouco se transmite.
Lacan faz questão de esclarecer que esse apoio na experiência se faz em função da ciência, e não por meio de outras formas discursivas, como a religião ou a mística. Assim, segundo ele, “uma ciência é especificada tanto por um objeto definido” quanto “por um certo nível de operação, reprodutível que chamamos experiência”.[7] Seu intuito é retirar a prática analítica da ordem do ritual e da cerimônia que encerra a psicanálise didática e que se constitui numa maneira de evitar a ordem do real. Conciliar as operações da experiência analítica com o horizonte da ciência o leva a extrair suas primeiras elaborações clínicas dos princípios conceituais da linguística estrutural. A aplicação dos conceitos da linguística à psicanálise se restringe ao que se designa como o algoritmo saussureano modificado, S maiúsculo sobre s minúsculo, separando o significante e o significado.
[ALGORÍTMO-I]
Miller e a genealogia do real
Segundo Miller, em A experiência do real, a primeira resposta de Lacan acerca do real é aquilo que está fora desse algoritmo, uma vez que se apresenta como prévio a ele e, principalmente, como o que se reencontra sempre no mesmo lugar.[8] É o exemplo da estrela que sempre tornará a voltar no mesmo lugar e num momento fixado, ou seja, na mesma hora da noite e no mesmo meridiano.[9] Esse retorno sempre no mesmo lugar é uma evidência de que o real não é tratável pelos processos de substituição e de conexão próprios da função simbólica. O nascimento do real se faz, assim, de uma maneira tal que a operação analítica tende a alojá-lo no seu exterior. É como se a análise transcorresse desconhecendo-o e como se ela apenas liberasse os seus efeitos fora do âmbito disto que retorna sempre no mesmo lugar.
[O REAL NO ALGORÍTMO-I]
No fundo, à psicanálise só interessa o significante, o significado e sua relação. A tese que se sustenta é que, ao apostar todas suas fichas nesse algoritmo, o real aparece, nesse início, como confundido com o sentido. É o que Lacan argumenta no seu texto inaugural, “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”: o inconsciente aparece como história, entendendo-se por história uma sucessão de ressignificações do real.[10] Dizer que o inconsciente é história pressupõe admiti-lo como um conjunto de efeitos de sentido. Para o primeiro Lacan, a história consiste na própria substância do que é o real. Nesses termos, pode-se tomar como ponto de partida de sua concepção do real, o real como um equivalente do sentido.
O passo seguinte que Lacan promove, e que se cristalizou como o núcleo clássico de seu ensino, é que o real da psicanálise é o significante. Essa segunda acepção do real é a consequência natural de haver estabelecido uma relação de causalidade entre significante e significado, de haver feito do significante a causa dos efeitos que povoam o domínio do significado.[11] Trata-se de uma consequência de sua construção das leis do inconsciente permeáveis às leis da linguagem, construção extraída do linguista Roman Jakobson. É claro que Lacan a transforma sobre o modo das leis da condensação (metáfora) e do deslocamento (metonímia), que, traduzidas em termos de real, simplesmente significa que o real do inconsciente é a causa significante.
Por muitos anos, a elaboração dessa noção das leis do inconsciente ocupa o lugar central do ensino de Lacan, segundo o qual o inconsciente não é história, senão saber. E o que se atribui, nessa construção, como índice do real, é o fator causal do significante para o inconsciente. Através dessa equação entre o significante e o real se celebra o casamento da psicanálise com a ciência, pois o inconsciente evidenciaria que há um saber que se aloja no real e que o real se apresenta sob a forma das leis que ordenam esse saber.[12] O importante a destacar nessa apreensão inicial do real é que ele se apresenta como uma escrita permeável à leitura. Exatamente nesse ponto da escrita permeável à leitura formula-se a questão fundamental com a qual a experiência do passe se defronta, a saber: quais são as chances de o final de análise tornar o real minimamente legível.
De um real que fosse legível
Antes mesmo de demonstrar como o real se apresentará como efetivamente separado do sentido e do saber e, portanto, como não transparente à leitura, Miller é levado a explicitar, em detalhe, de que modo Lacan, segundo a perspectiva estruturalista, torna o real passível de significantização. Tanto no estruturalismo de Lévi-Strauss, quanto no de Lacan, o real se constitui para entregar à ordem simbólica e ao significante os elementos que tornam possível sua significação. De fato, o ponto de vista estruturalista busca resgatar os elementos reais que se mostram incrustados nas leis lógicas que regem a combinatória significante de um sistema simbólico dado.[13] Em Lévi-Strauss, essa combinatória se compõe por meio de oposições binárias, como é caso, por exemplo, de substâncias “más e venenosas” e as “boas como os remédios, os “povos de terra firme” e os da “água”. Enfim, são essas oposições que dão lugar ao real como exterior a elas e, ao mesmo tempo, são elas que se repartem em elementos destinados a servir aos significantes.
[SIGNIFICATIZAÇÃO DO REAL]
(1) ELEVAÇÃO DO SIGNIFICANTE À QUALIDADE DO REAL (2) IMPLICAÇÃO DO SIGNIFICANTE NO REAL
Se o real serve ao significante ao favorecer as oposições binárias, ao mesmo tempo a repartição de seus elementos constitui a elevação do significante à qualidade de real. É nessas condições que o real passa a significar, uma vez que se constitui sob o modo de uma harmonia preestabelecida, sob o modo das oposições binárias, cuja finalidade é significar. Por intermédio dessa lógica pode-se, então, falar de uma “transmutação do real em significante”.[14] Trata-se, assim, de um real que tanto se oferece quanto se coloca a serviço ao que é da ordem da lei e do sentido. É possível se perguntar porque Lacan, mesmo do ponto de vista da experiência analítica, se deteve nessa concepção do real que se transmuta em significante. Supõe-se que se tem aqui o cerne do que se denomina como a primeira clínica de Lacan, ou seja, um real que se oferece na experiência por meio de dados que não foram escolhidos e nem selecionados anteriormente, e, por estarem inscritos no discurso, o real engendra e entrega significações.[15]
O cúmulo dessa significação do real, na ordem individualidade psíquica, é o destino que traduz para o sujeito a repartição do real sob o modo de uma significação que se fixa nos termos da fantasia fundamental. O sujeito se vê, assim, submetido e guiado por essa fixação da significação na fantasia que, em última instância, recebeu sua determinação pela ação do desejo do Outro. Nessa transmutação em que o real se transforma em significante, pode-se dizer que aquilo que se escreve no inconsciente, sob o modo de suas formações, é passível de leitura. No final da década de 50, Lacan define o sintoma, em sua versão formação do inconsciente, como “o que se pode ler, por já estar inscrito no inconsciente, ele mesmo, num processo de escrita”.[16] Trata-se, enfim, de uma relação direta e imediata entre o que se escreve e o que se lê.
A experiência do real é o que se lê do sintoma
É somente no Seminário “De um discurso que não fosse semblante” que surgem os sinais mais evidentes de uma formulação mais acabada e genuína do real, na medida em que sua concepção se faz sem os instrumentos da linguística. Em outras palavras, o real deixa de estar submetido ao algoritmo do significante/significado e passa a ser distinto tanto do sentido (imaginário) quanto do saber (simbólico). Nesse mesmo Seminário, torna-se, então, uma instância própria e genuína, visto que remete o sentido e o saber ao puro registro do semblante. É preciso reconhecer que a categoria de semblante apenas veio à tona em função da inoperância da ação significante sobre o real, enfim, com a ruptura com a tese da transmutação do real em significante. Pode-se afirmar a partir daí que apenas se fala de experiência do real no momento em que este adquire o valor de instância com autonomia própria, indiferente à matéria linguística e, por consequência, ao sentido e ao saber.
Diante disto, se faz necessário substituir o primeiro algoritmo por outro em que o real se apresenta como, efetivamente, separado do sentido (imaginário) e do saber (simbólico):
[ALGORÍTMO-II] VERSÃO I
Ainda que seja uma dedução direta do percurso do ensino de Lacan, esse último algoritmo é uma construção de Miller que visa nos dar conta não apenas de que o semblante é esse amálgama entre o sentido e o saber, mas, principalmente, da inversão nas relações entre o real e o semblante. De maneira a ordenar os dois pares de termos – significante/significado e real/semblante –, propõe-se uma reescritura do algoritmo em que, ao contrário de suas formulações nos anos 50, o semblante aparece dominado pelo real:[17]
[ALGORÍTMO-II] VERSÃO II
Essa inversão radical do que foi o ponto de partida do ensino de Lacan – o princípio estruturalista de Lévi-Strauss de que o semblante domina o real – abre novas perspectivas para sua concepção do final de análise e, sobretudo, em relação ao próprio entendimento do que é o passe.
Quando o real reduz tanto o sentido quanto o significante a não serem mais do que semblantes, convoca-se de modo inevitável a função do escrito, com a qual o real passa a ser tratado pela experiência. Isso quer dizer que a experiência do real se apresenta numa relação de compatibilidade com a função do escrito. Refere-se à compatibilidade pois se sabe que Lacan se manifestou contrário, no caso da experiência do passe, a tomar o escrito como meio de transmissão.[18] Ao tratar o escrito como função, e não, como experiência, propõe-se que a experiência do real faz valer a presença do escrito no oral. Com efeito, é preciso não confundir a experiência do real como um equivalente da experiência da escrita. Se não existe o passe escrito, por outro lado, isso não quer dizer que o que se fala, no passe, seja indiferente ao que se escreve. Se o passe é a transmissão da experiência do real, ele é, portanto, o momento proeminente em que o oral não existe sem o escrito, em que o que se escreve se faz presente no que se fala.
A propósito dessa intromissão do escrito no oral, assinala-se que mais da metade das lições do Seminário “De um discurso que não fosse semblante” é dedicada a demonstrar que, diante do real sem lei e sem sentido, abandona-se as categorias linguística do significante e do significado. A partir daí, passa-se a contemplar o escrito como instrumento capital para abordá-lo e tratá-lo. Tanto nestas lições quanto na célebre lição do “Mais, ainda” – “A função do escrito” –, Lacan fornece argumentos para mostrar que há no escrito algo que vai além do algoritmo linguístico do significante/significado.[19] O escrito aparece como o que excede à função significante, colocando-se igualmente como meio privilegiado de apreensão do real, visto que este se mostra refratário à uma leitura imediata e direta por meio do sentido ou do significante.
O real compatível com a função do escrito passa a ser opaco, turvo e avesso à leitura e, por essa via, transforma o sentido e o significante em puros correlatos do semblante. Insiste-se nesse ponto de que foi necessário estabelecer uma genealogia do real para conectá-lo com a experiência na medida que concebido como escritura e não-transparente à leitura, tornou-se possível tratar o real como experiência. Para dar conta dessa reviravolta das relações entre o semblante e o real é preciso considerar que a escrita emerge como um protagonista da crítica lacaniana da linguística.[20] É certo que a experiência do real desloca a importância do oral – o que se fala – e passa a dar lugar ao escrito – ao que se escreve. Ou, ainda, o foco do trabalho analítico orientado pelo real deixa de ser simplesmente o que se fala e o que se ouve e desloca-se, também, para o que se escreve e o que se lê. Isso porque o osso do sintoma deixa de ser o significante e seus efeitos de sentido provenientes do retorno do recalcado, e passa a ser a escritura e a leitura possível do gozo no sintoma. Qualifica-se de uma leitura possível do sintoma, considerando que, nesse caso, o escrito e a leitura não se confundem e se apresentam numa relação de disjunção.
A latência como desarmonia entre o real e o significante
Cabe salientar que esse domínio do real sobre o semblante se verifica, sobretudo, quando se toma como fator crucial da experiência analítica aquilo que é o campo lacaniano do gozo. O terreno propício para a demonstração do real do gozo – componente de base do sintoma – é a sexualidade em Freud, quando se visa, nela, desvencilhar-se das abordagens que se baseiam no desenvolvimento evolutivo da libido. Nada da sexualidade freudiana se aproxima do modelo normal do comportamento sexual que busca um “objeto” do sexo oposto, a partir do momento em que, supostamente, se consuma a maturação genital, tendo-se como “objetivo” a reprodução da espécie. Constata-se que, ao contrário desse sentido normal e evolutivo, a sexualidade é marcada por discordâncias paradoxais cujo exemplo marcante e discutido por Miller é o período de latência.[21]
O período de latência é a prova de que a transmutação do real em saber, ou seja, a significantização do real não é passível de aplicação à sexualidade, na medida em que esta é incompatível com uma suposta harmonia evolutiva no desenvolvimento libidinal. Enquanto um período que vai da sexualidade infantil – aos cinco ou seis anos – até o início da puberdade, a latência designa um intervalo desenvolvimento da sexualidade. Observa-se, nesse período, uma diminuição das atividades sexuais, a dessexualização das relações de objeto e, especialmente, o aparecimento de sentimentos como o pudor ou a repugnância e de aspirações morais e estéticas. Entre a constituição da fantasia – consumada por voltas dos seis anos de idade – e a adolescência, a sexualidade entra em um processo de profundo adormecimento, devido à forte incidência do recalque, que Freud denomina período de latência. Quanto à força do recalque em ação nesse momento, é preciso considerar que o objeto primeiro é a mãe, “objeto memorável significantizado”, objeto que se escreve na memória, uma memória em nítida defasagem com o desenvolvimento que visa a construção do parceiro sexual.[22]
A latência é um índice de que o objeto mãe significantizado retorna parasitando as sequências do desenvolvimento libidinal do sujeito. Para Miller, a latência é uma das referências que permite mostrar que há desarmonia entre o significante e o real e que, portanto, não se pode postular uma teoria do gozo calcada na significantização do real. Ou seja, há sempre discordância entre o objeto encontrado e o objeto procurado, na medida em que o objeto procurado mantém um laço com o objeto memorável e significantizado da mãe. A clínica demonstra que o objeto conservado no significante, transmitido pelo significante, entrará em discordância com toda relação de objeto ulterior do sujeito. Como exprime Miller, “a sombra que o objeto primordial carrega consigo continuará a infectar as relações objetais” que o ser falante irá contrair ao longo de sua vida.[23]
Enquanto fato de estrutura, mostra-se que o período de latência é índice da ausência de saber sobre o programa de gozo, ou seja, que não há nada no inconsciente que programe o acesso ao outro sexo.[24] É o que justifica que, na segunda clínica de Lacan, essa falha concernente ao programa de gozo, essa “falha do saber no real”, venha a ocupar um lugar axial no desfecho do tratamento analítico.[25] E toda a elaboração culmina nessa proposição de que o essencial é que a sexualidade produz falha no gozo, e que essa falha é o que torna possível falar do gozo enquanto real. Isso quer dizer que, no tocante ao outro sexo, não há um programa capaz de se escrever esse real, ou, ainda, falta um saber para fazer existir uma harmonia entre os sexos. A proposição de que a sexualidade faz furo no real é o que se expõe a partir do período da latência como princípio de uma “nova proposição universal: se algo falha na sexualidade, se isso falha é para cada um”.[26] Esse universal concernente ao princípio de que a sexualidade faz furo no real quer dizer que ninguém pode se sair bem com o real do gozo, ou seja, há sempre mal-estar no gozo, ou, como se exprime São Paulo, “foi-me dado um espinho na carne”.[27]
O passe não é uma autoficção
A invenção do passe é o que expressa o cerne do discurso analítico, considerando que a presença do ficcional, do que tem relação com o semblante, deve manter um laço inelutável com a experiência do real. Diante da experiência do real, o passe aparece como o impossível em dizer toda a verdade sobre o mal-estar do gozo e apresentando-se sempre revestido por verdades mentirosas. Se é impossível escrever e ler toda a experiência do real do gozo – osso do sintoma –, o amor à verdade deixa de ser o horizonte do tratamento analítico. Que lugar a questão da verdade – tão cara à Freud – passa a ter no curso do tratamento analítico? O mínimo que se pode dizer é que o ser falante, confrontado com sua solução final para a experiência do real, não pode abrir mão da natureza de semblante da verdade. Diante da experiência do real, evidencia-se assim, um declínio do amor à verdade, que dá lugar a essa conjunção inusitada entre a verdade e a mentira própria do final da análise.
Com a ruptura clínica do ultimíssimo ensino de Lacan, somos conduzidos a admitir que é preciso contar com o semblante para se ter acesso à não-relação sexual que, em última instância, emerge com a falha do saber para programar os encontros sucessivos com o real. De fato, essa ruptura postula que o semblante, enquanto junção do significante e o significado, se escreve ali onde, no real, o saber falha. A partir do semblante como letra, Miller se propõe completar o segundo algoritmo para precisar que é o furo no real que determina o que se escreve como semblante.
[ALGORÍTMO-II] VERSÃO III
Se a ausência de uma escrita sobre a relação entre os sexos determina o furo no programa do gozo, por outro lado leva-se em conta que é exatamente nesse ponto que se escreve o semblante como letra. Nesse caso, trata-se do semblante que presentifica a radicalidade do significante apartado de seu significado.
Assim, não se concebe o passe como um fato verificável segundo uma correspondência estrita entre os dados e fatos da história do sujeito e a verdade da solução encontrada pelo sujeito. Para o AE, aquilo que regula a questão da verdade, que tem estrutura de ficção. é o princípio de que um fato por si só não prova nada. Em outros termos, a verdade do final de análise não é dedutível dos fatos proeminentes da biografia de um sujeito. Em suma, o passe está mais do lado da ficção do que de fatos biográficos supostamente comprováveis por um discurso que não fosse semblante, ou seja, que pretendesse atingir o referente apreendido como realidade pré-discursiva.
Por outro lado, tampouco se pode restringir a experiência do real no passe com a reunião de dados clínicos ao longo do percurso de análise do AE. Para Miller, nada se opõe mais ao conceito de passe do que essa reunião exclusiva de alguns elementos clínicos extraídos de sua própria trajetória de análise.[28] Conceitualmente falando, é a estrutura de transmissão do Witz que deve predominar no relato do passante, na medida em que nela se destaca a defasagem entre a verdade como ficção e o real do gozo opaco. E, diante da transmissão dessa opacidade do gozo em jogo no final de análise, a verdade está condenada a mentir quando ela busca a dizer o real.[29]
É inegável que, para dizer o real implicado na conclusão da análise, o AE se vê obrigado a recorrer ao seu romance familiar e aos seus retratos de família enquanto semblantes que se escrevem ali onde o saber falha em dar conta do real. Quem pode desconhecer que o passe exige um olhar retrospectivo de sua história familiar em que, muitas vezes, aparece um pai caracterizado pela marca da impotência e uma mãe com a qual o sujeito, é levado a consentir que é dela que se extrai uma parte importante do seu modo de gozo. Os irmãos e as irmãs podem estar presentes nas histórias de família que se compõem como um tecido de semblantes que visam a encobrir o furo no real do gozo.
Isso empurra o passe para a ficção; porém, é preciso evitar a presunção de que a ficção por si só seja capaz de desfazer a opacidade do real. Miller chama a atenção para o fato de que o AE pode permanecer fixado em sua história, exibindo um saber que recaí facilmente no que se designa como autoficção. Não creio que haja AE que, nos momentos de seus pronunciamentos públicos, não se veja às voltas com as chances de produzir um testemunho que não fosse uma repetição do mesmo. Devido às inúmeras vezes que, no contexto institucional das Escolas, o AE é convocado para dar seu testemunho, nem sempre é possível preservar a singularidade do que se transmite como passe. Quando a transmissão da experiência do real não prevalece, a tendência do testemunho é convergir para uma modalidade do relato qualificada, por Miller, como autoficção.[30]
A autoficção é um gênero narrativo que se inspira na autobiografia, na medida em que se baseia no relato dos acontecimentos de vida do autor de modo romanceado e estabelecendo uma equivalência entre a tríade clássica: autor, narrador e o personagem principal.[31] A autoficção aparece, assim, como uma espécie de variante da autobiografia, no sentido de que se mostra despojada do ideal de um discurso referencial. A metamorfose da autobiografia em autoficção diz respeito aos efeitos discursivos que decorrem da linguagem empregada concernente aos distintos acontecimentos de vida. Independentemente da veracidade dos fatos relatados, certas características estilísticas do discurso são suficientes para gerar efeitos de verdade que, nesse caso, assumem a estrutura de ficção. Importa dizer, ainda, que o fator ficcional emerge, na autoficção, com a tentativa de organizar a história de vida segundo uma lógica causal que não era absolutamente percebida, pelo autor da autoficção, no momento dos acontecimentos.[32]
Como se frisou antes, o fator ficcional do passe não é suficiente nem para dar conta da opacidade do real, nem tampouco para captá-la e circunscrevê-la. Mais do que isso, o relato autoficcional tende inclusive a velar essa opacidade que apenas a experiência do real no passe pode escrever por meio de suas margens e bordas. Como Miller destaca, o risco que se corre, nessa tendência à autoficção, é a regressão ao estágio do espelho.[33] Enfim, o AE pode estabelecer uma relação especular com sua ficção e demonstrar uma impotência em se desapegar de sua história que já se tornou passado.[34]
Em uma intervenção há mais de trinta anos, Miller sustenta a tese de que, no passe, a história passada deve tornar-se cadáver. Se os semblantes mais cintilantes da história se anulam ao longo da análise, a experiência do real torna possível destacar e realçar um objeto duro, turvo e sem brilho, que antes parecia ser confuso e incerto.[35] É a cabeça do cadáver tornado esqueleto que se escondia na anamorfose. A caveira escondida na anamorfose, Lacan denomina-a como a encarnação imajada do furo no real, ou seja, uma forma imajada do final de análise.[36] Nesse final, o passado deve ser desinvestido, abandonado atrás de si depois de um último olhar em que se experimenta o real sob o modo desse objeto duro. O passe apenas tem sentido se, uma vez franqueado, a história de sua dor se desvitaliza, perde sua cor, seus acentos trágicos, para se converter em Witz.
A meu ver, a intrusão da autoficção no testemunho de passe reflete a exclusão da experiência do real sem sentido e sem lei imajado pela caveira. A presença da autoficção nos testemunhos constitui um aspecto importante na crise atual do passe e reflete o emprego desestruturante de algumas teses oriundas do ultimíssimo ensino de Lacan. Para Miller, é bem provável que a autoficção seja uma decorrência de uma má interpretação da afirmação de Lacan, presente no seu ultimíssimo ensino, de que a psicanálise é uma escroqueria. Segundo ele, essa afirmação do último ensino vale mais como um “suplemento, ao mesmo tempo, irônico e aporético”, do que a afirmação de um certo anarquismo metodológico na construção do testemunho, que sugere que tudo no passe possa ser válido – “anything goes”.[37] Uma tal afirmação de Lacan não deve ser tomada literalmente. Para Miller, “não há dúvidas de que Lacan pretendia superar as críticas mais malévolas e amargas de nossa disciplina e, assim torná-las vãs”.[38] Assumir que tudo é válido em sua construção ficcional do testemunho é uma interpretação errônea do recurso necessário do semblante e do ficcional no tocante à transmissão do final de análise. Permitir que o passe se transforme apenas no exercício de autoficção é excluir o que é o seu fundamento e sua razão de ser, ou seja, a escrita do real na solução final do sujeito.