Bernardino Horne (AME EBP/AMP)
Assim como aprendemos em “A direção do Tratamento…” que a Política em psicanálise é um ponto, podemos pensar que no instrumento privilegiado do trabalho e do estudo que cada psicanalista tem, que é o Cartel, também há uma política pontual.
O cartel é a estratégia privilegiada por Lacan, no momento da fundação da Escola, para realizar o trabalho que cabe a cada um dos psicanalistas, que é a política de restaurar a psicanálise nos seus fundamentos mais preciosos. Apesar de ser uma estratégia, um instrumento criado por Lacan para levar à prática o seu projeto de retorno a uma psicanálise verdadeira, o Cartel tem, em si, uma política, que se realiza na elaboração das noções e dos conceitos. Também a política do cartel se concretiza na delicada manobra que implica a indução ao trabalho, especialmente nos jovens que estão iniciando a sua formação. Essa indução implica assumir como responsabilidade de cada um a tarefa de manter viva a psicanálise, na medida em que esta, sendo uma prática contrária ao naturalmente humano que é a permanência no adormecimento do Princípio do Prazer, tem uma tendência natural a desaparecer.
Miller, no Banquete dos analistas, diz que o trabalho central de Lacan no ensino era o de induzir ao trabalho. Induzir quer dizer levar para dentro, e Miller acrescenta que não se trata de uma identificação e sim, na verdade, de um passe. Uma passagem do trabalho da transferência para a transferência de trabalho, o que significa que se sai do amor ao saber, mas não se deixa de lado o saber — pelo contrário, é a superação do horror ao saber que dominava o sujeito durante a sua vida toda. Esse trabalho então só é possível um por um. Cada um deverá assumir seu valor na tarefa de sustentar a psicanálise.
Os elementos a serviço da política do Cartel, ou seja, as suas estratégias e táticas são o número de participantes, a permutação dos membros e a obrigatoriedade de se escrever um texto, que é dada a cada um dos membros incluindo o Mais Um.
A política é, então, o intocável — ou seja, a elaboração dos conceitos e a indução ao trabalho de Escola. O que é possível de ser mudado sob certas circunstâncias — o tocável — é o número, a obrigatoriedade do texto e o tempo da permutação.
Sobre o número de membros em cada cartel, que é a pergunta de hoje, entendo, então, que é possível de ser mudado de acordo com certas circunstâncias especiais: o próprio Lacan diz 3 ou 5, o que quer dizer que há uma certa elasticidade. A questão neste ponto é que deverá haver sempre um limite que permita a elaboração do texto de maneira individual. Se o número de pessoas é grande, a dificuldade em uma conversação, em um debate, que necessariamente é personalizado, torna-se um obstáculo a esse trabalho no qual todos os participantes são ativos e responsáveis. Se o número ultrapassa certos limites, é melhor fazer vários cartéis; e se a ideia é estar juntos, podem ser feitas reuniões de cartéis. Penso que se o que se deseja é a presença importante de um membro, será melhor fazer um grupo de estudos ao qual podem ser acrescentadas algumas das condições de trabalho dos cartéis.
No último Scilicet sobre Sonhos, todos os trabalhos foram elaborados em cartéis. Foram publicados quatro textos de cada tema. O Mais Um de cada cartel não escreveu o seu texto. É uma situação especial possível, pois não afetou a elaboração — que é o intocável, como aqui estamos chamando à política do cartel. O texto que se deve escrever e apresentar, pelo menos no cartel, significa que nesse ato o falasser está incluído e forma parte da complexa rede de saber que está em construção permanente. O Cartel do Passe faz a experiência de incluir o membro do Secretariado no Cartel e, portanto, hoje o Cartel do Passe não é 4 + 1, e sim 5 + 1 ou 4 + 1 + 1.
O trabalho em cartel tende a evitar a divisão entre mestres e alunos, não como uma tentativa de fazer a todos iguais, senão, pelo contrário, aceitando que cada um é um participante dessa rede de saber, desse conjunto de uns que é a Associação Mundial de Psicanálise e o Campo Freudiano.