“Já em “Subversão do sujeito e dialética …”, Lacan termina dizendo: a castração significa que o gozo precisa ser recusado, para que possa ser atingido”. Não devemos nos hipnotizar sobre a recusa do gozo, isso é o que acontece, digamos, na lógica da castração. O termo importante é a ideia de que ele pode ser atingido, ou seja, podemos sair do teatro do sacrifício fálico.”
MILLER, J.-A. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan. Entre desejo e gozo. Rio de Janeiro, Zahar, 2011, p. 183.
A citação está no final da lição 13 do Curso de Jacques-Alain Miller Coisas de fineza em psicanálise, de 2008-09, que queria resgatar “o fio de prumo da prática da psicanálise” por um “retorno a Lacan”. Ela se abre pela lembrança de uma “passagem” de Miller em sua relação ao ensino de Lacan: antes “colado” aos seus termos, ao declará-lo um ensino que encontrou sua finitude, ele se autorizou a ressignificá-lo.
A lição prossegue sua elaboração da relação na experiência entre verdade e gozo, “significantes-mestres que ordenam de modo distinto o ato analítico” sobre os quais ele lançará “um outro olhar”.
Da verdade, que no começo do ensino de Lacan designava um registro, uma inscrição “na continuidade de uma história”, ele nos lembra que a expressão “história do sujeito” correspondia ao termo “inconsciente”: não podendo se dizer, o inconsciente era “o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira”. Correlação essencial entre inconsciente e uma história como lugar da verdade, “antônimo do recalque”, palavra de “uso completamente exterior à mentira: a verdade ou a mentira”, sobre a qual Miller vai incidir ressignificando o lugar da verdade a partir de um último escrito de Lacan onde se lê a expressão ‘verdade mentirosa’. Ela o conduz a reconfigurar a verdade num novo registro, relendo-a apenas como “esparsos clarões”, emergências de verdade que não constituirão, necessariamente com outras, uma continuidade, podendo até se desmentirem. Mas se ela pode, então, se pluralizar, ele a mantém no singular, sobretudo “por eu não conseguir apagar, excluir de minha concepção da experiência, do que dela percebo – no exato momento em que tento depurar essa concepção – a palavra “revelação”. Pouco importa supormos que a verdade seja tecida ininterruptamente ou que ela faça emergências esparsas. Produzem-se na experiência efeitos de revelação, levantamentos de véu, indicando a relação distorcida, complicada que o sujeito mantém com o saber”.
O aprendizado com as análises que dirige lhe permite, então, dizer que é da verdade mentirosa sobre o gozo que resulta “a fala que autoriza e incita o discurso analítico”, concluindo: “Se não podemos dizer toda a verdade é pelo fato de haver uma zona, um domínio, um registro – do que? – da existência no qual a verdade não tem circulação. Esse registro seria o do gozo, daquilo que satisfaz”.
Esse registro da construção lacaniana do gozo desdobra-se. Primeiramente a insistência de Lacan em que o gozo, para ser ordenado, deve ser, necessariamente, atingido pela castração: a infinitude do gozo exige que ele seja atingido por um não, por um menos, ganhe a marca de sua proibição: – phi é o símbolo nessa construção que nos apresenta o gozo “sob a forma de objetos que se substituem à castração”. Mas em seu trabalho de ressignificação, Miller vai isolar, de um outro escrito de Lacan, outro símbolo – Phi – que escreve o gozo num sentido ampliado, como gozo positivo. Lacan o chama de “falo simbólico impossível de negativizar” que resiste à castração, e acrescenta, em aposição, “significante do gozo”: Phi não reenvia ao que é de raiz imaginária e que está fora do corpo, ele diz, ao contrário, do gozo como sendo o que satisfaz um corpo, o que, em consequência, permite dizer que “numa psicanálise o que fazemos falar […] não é o puro sujeito da fala, mas um corpo, que Lacan chamava de corpo falante”.
Miller dirá, enfim, que a recusa do gozo acontece na lógica da castração. Mas se o importante é a idéia de que ele pode ser atingido, disso extrai a consequência para uma análise: “podemos sair do teatro do sacrifício fálico”.
Isso tem consequências para a experiência: “numa psicanálise o que fazemos falar não é um sujeito, não é o puro sujeito da fala, mas um corpo, que Lacan chamava de corpo falante”, diz Miller.
Talvez por isso, esse outro significante-mestre que ordena o discurso analítico – o gozo, seja abordado com “abstrações” mas “tocando de fato a maneira como a coisa acontece”. O texto freudiano “Além do princípio do prazer” lhe serve de referência: “Isso fala, isso cala, em cada um, é possível reconhecer-se nele”.