“O gozo peniano advém a propósito do imaginário, isto é, do gozo do duplo, da imagem especular, do gozo do corpo. Ele constitui propriamente os diferentes objetos que ocupam as hiâncias das quais o corpo é o suporte imaginário. O gozo fálico, em contrapartida, situa-se na conjunção do simbólico com o real. Isso na medida em que, no sujeito que se sustenta no falasser, que é o que designo como sendo o inconsciente, há a capacidade de conjugar a fala e o que concerne a um certo gozo, aquele dito do falo, experimentado como parasitário, devido a essa própria fala, devido ao falasser” LACAN, J. [1975-76] O seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007, p. 55)
Uma precisão sobre o gozo fálico no Seminário 23
Nessa passagem do Seminário 23, Lacan faz uma diferença entre o gozo peniano e o gozo fálico. Essa diferença, no entanto, deve ser situada considerando o esquema que ele apresenta na página anterior, no qual ele faz surgir três campos centrais resultantes do enlaçamento dos registros do Real, do Simbólico e do Imaginário.
O primeiro desses campos, (J de A barrado), situado entre Real e Imaginário, designa o gozo do Outro barrado e não só demonstra a inexistência do Outro, mas demarca que essa inexistência também recai sobre o gozo: “O gozo do Outro do Outro, não é possível pela simples razão de que não existe”[1]. Assim, no que diz respeito ao gozo, não encontramos aqui, em J de A barrado, nenhuma ordem de existência, e é sob o fundo dessa não existência que devemos entender todo o resto. Em outras palavras, essa não existência é o suporte do que pode existir, é o suporte do inconsciente tomado como falasser. Assim, por força dessa inexistência, com relação ao falasser, restam apenas duas existências possíveis para o gozo: uma que provém do sentido, resultante da interseção entre o Imaginário e o Simbólico, e outra que se produz na articulação entre o Simbólico e o Real, que constitui o gozo fálico (J de Phi). É nesse contexto que Lacan nos esclarece: “o gozo dito fálico não é certamente, em si mesmo, o gozo peniano”[2]. O gozo peniano, ele irá situá-lo, conforme a citação acima, no Imaginário tomado como corpo, mas, também, como sentido.
O corpo é o que confere ao gozo uma consistência e, embora, como nos diz Lacan, “o corpo não se evapore”[3], essa consistência do corpo não é física e, sim, mental: ela vem do pensamento, ou seja, do sentido que se dá à unidade do corpo e, uma vez que não se pensa sem palavras, podemos dizer que o sentido, conforme situa Lacan, se tece entre o Imaginário e o Simbólico. Dessa forma, o corpo condiciona tudo que o registro Imaginário aloja de representações, de sentido: é no corpo imaginário que o sentido se constitui sob o modelo da unidade do corpo. Então, como demonstra Miller[4], se o Outro não existe, é o corpo que toma seu lugar, não o corpo do Outro, mas o corpo próprio: “disso resulta que tudo que estaria investido na relação com o Outro é aqui rebatido sob a função originária da relação com o corpo próprio”[5]. Trata-se, portanto, da relação com a imagem especular, do duplo, que é investida narcisicamente. Sem essa imagem, não há gozo do corpo. Da perspectiva do inconsciente como falasser, o corpo é sua única consistência e não o Outro. Assim, o falasser responde à inexistência do gozo do Outro do Outro com seu próprio corpo e isso, por sua vez, produz gozo, gozo do corpo. Logo, podemos afirmar que o corpo é tomado aqui como um objeto do qual se pode dispor para gozar. Por isso, “o falasser adora seu corpo, porque crê que o tem”[6], como um objeto. O gozo do corpo é, portanto, a raiz a partir da qual se constituem os diferentes objetos que ocupam as hiâncias, as zonas erógenas das quais o corpo é o suporte imaginário. Nesse contexto, o gozo peniano pode aparecer como o objeto que condensa o gozo imaginário, narcísico, em uma parte do corpo.
O gozo fálico, em contrapartida, não é do corpo, sua existência encontra-se fora do corpo. Sendo assim, sua relação com o corpo é a de um parasita: ele vive do corpo, alimenta-se dele, mas sua relação com o corpo é de desarmonia. O gozo fálico, na perspectiva do inconsciente como falasser, encontra-se separado do corpo, da imagem e do sentido, na conjunção entre Simbólico e Real. O gozo fálico é opaco, sem imagem, mas, também, impossível de negativizar e, ao mesmo tempo, o suporte da fala, ou seja, de uma satisfação que se transporta para fora do corpo e que, nem por isso, produz necessariamente um sentido. O falo como significante desse gozo é sozinho, sem ligação com outro significante e, sendo assim, ele assinala uma separação de todo e qualquer sentido, marcando cada um em sua solidão como falasser. Ele institui a fala não em sua função de comunicação, mas de produção de gozo. É na conjugação do gozo do Um-sozinho e do gozo da fala que o gozo fálico confere um lugar ao que não se deixa absorver pelo sentido, interrompendo sua proliferação e produzindo uma ancoragem real referenciada no não sentido do gozo. Considerando essa orientação para o real, Lacan situa o gozo fálico, na experiência analítica, como “contrabalançando”[7] o sentido, e o falo, como demonstrará mais adiante na lição VII, como o “único real”[8] que verifica a inexistência da relação sexual.