Do navio-abrigo ao fazer Escola

Por Ana Luisa Rajo

Participar da comissão de cartéis e intercâmbios da seção-RJ me animou imediatamente. A possibilidade de ver operar esse dispositivo de base na própria seção e como se dá esse fazer escola através dos pequenos grupos sempre me pareceu um verdadeiro enigma. Além disso, acompanhar como cartéis estavam ou não se formando, os temas pesquisados e como nos servimos desses produtos também me instigou.  Soma-se a isso um convite desejoso da Maricia para trabalhar com um pequeno grupo precioso. Agradeço a Maricia e ao trabalho decidido de cada uma: Sandra Landim, Renata Martinez, Maria Antunes e Cristina Duba. Agradeço ao aprendizado ao longo desses dois anos.

Nesse convite, me emocionei ao dizer da importância do cartel que, durante a pandemia, foi pra mim um navio a me abrigar da deriva que estávamos submetidos nesse período. Porém essa comissão foi mais que um navio-abrigo: tentou ler, inventar novas rotas, dar lugar ao mal-estar no qual estávamos imersos e, sobretudo, apostar nesse dispositivo inventado em tempos de um Outro desfacelado pode, hoje, mais ainda, nos servir de bússola e nos permitir arejar frente à aridez do real.

Integrar uma diretoria da seção e, principalmente, a de cartéis, foi para mim uma invenção de uma nova rota e que encontrava uma questão minha antiga: Como entrar? Como fazer? Já tinha trabalhado em outra comissão, em comissões em Jornadas. Nesses espaços o fazer parecia me dar um lugar. Muito trabalho em análise. Como nos diz Miller em “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola” sobre a posição do Ideal na Escola que, consiste em interpretar e pode ser desmassificante. “Lacan remete a cada um em sua solidão de sujeito, à relação que cada um mantém com o significante mestre do ideal sob qual se coloca”.[1] Entendo que se trata do encontro de um coletivo e, ao mesmo tempo que, encontra seu funcionamento no fazer de cada um, no fazer que pode manter viva a psicanálise. Não há um lugar dado, é preciso fazê-lo, a cada encontro, de modo  artesanal. A partir daí, pude me aproximar das questões da Escola de um modo diferente. Desta vez, com os pés dentro.

Outra nova rota realizada foi o Procura-se e as Jornadas de cartéis on-line. A participação intensa dos cartéis me surpreendeu, a partir dos trabalhos desejosos e seus fios, montando as mesas. O desejo do analista e a formação foram temas presentes em tempos de tanta angústia, no qual cada analista, frente ao real da pandemia, precisou revisitar algo em nossa prática clínica, até então assentada. No procura-se, a pergunta em como fazer acontecer um cartel se apresentava a cada encontro, como encontrar pessoas interessadas no tema, como convidar o mais-um. Diante da ausência dos encontros dos corpos, não recuamos em acolher as questões e apostar que, se estavam ali, algum tema já estava em trabalho e afirmando que a entrada num cartel se faz partir disso. Fui, ao longo desse tempo na diretoria, recolhendo sutilezas como cartelizante e integrante na comissão. Os efeitos recolhidos possibilitaram uma valorização dos pequenos fios e linhas, produtos do trabalho no pequeno grupo assim como suas crises. E reafirmar a indicação preciosa de que fundamental é o próprio desejo em pesquisar.    Como nos disse Nohemi Brown no texto “O lugar do cartel na formação do analista”: “ Se os cartéis se fundam sobre uma base circular, não hierárquica e permutativa, isso se dá na medida em que buscam favorecer a elaboração do saber de cada um de seus membros, decorrente de sua experiência com o real a partir do discurso analítico”[2].

Em nossos encontros do cartel, o cenário político e social aterrador em que nos encontrávamos tomou tempo de discussão e elaboração, a partir da ausência desse Outro que pudesse responder a falta de políticas de preservação da vida. Assim, vimos emergir a violência, o horror, a segregação, ainda mais brutal na pandemia, deixando totalmente desvelada a desigualdade social nesse país. Nosso cartel já havia elegido seu tema: o Cartel e a Guerra. Minha questão se formulou em torno da voracidade do supereu em tempos de queda dos ideais: “Como o cartel pode tratar o imperativo de gozo?”.


Referencias bibliográficas:
BROWN, Noemi. O lugar do cartel na formação do analista, 2018, Correio Express.
MILLER, JAM. Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola, 2016, opção lacaniana, ano 7, número 21.

[1]     MILLER, 2016, p. 5
[2] BROWN, 2018. Disponível em https://www.ebp.org.br/correio_express/005/lugar_cartel.html
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