A anarquia individual

Por: Denise Henriques
Cartel: Amor na psicanálise
Cartelizantes: Ana Maria Ferreira da Silva; Denise Ávila; Denise Henriques e Cristina Duba (mais um).

Os estudos do Cartel “Amor na Psicanálise”, formado por mim, Ana Maria Ferreira da Silva, Denise Ávila e Cristina Duba (mais um), conduziu a uma pesquisa sobre o gozo no ensino de Lacan, a partir do interesse pela conexão entre amor e pulsão. Esta me permitiu ampliar o campo de visão e me fazer perceber em outras leituras o que apreendi das facetas do amor.

Nesse trabalho, particularmente, recorto o que pude recolher sobre a questão da não relação sexual no conto “O banqueiro anarquista” de Fernando Pessoa.

O conto é uma crítica à realidade de diversos movimentos sociais e organizações políticas. Uma sátira aos que se agarram a um posicionamento ideológico apenas na teoria, mas não conseguem praticá-la totalmente. O próprio título do conto indica essa contradição, esse paradoxo: como pode um anarquista ser banqueiro, justamente aquele que concentra muito poder, representante-mor do sistema capitalista?

O personagem banqueiro, que se diz anarquista, aponta as falhas da dificuldade de se alcançar plenamente a doutrina em sua análise que prova que ele é, verdadeiramente, um anarquista e os outros anarquistas não o são. A escolha da profissão do personagem, um banqueiro, auxilia no tom satírico do contrastante ideal dele, de ser anarquista vivendo numa sociedade capitalista com a tirânica opressão financeira, onde o dinheiro é tratado como a mais importante das ficções sociais. Chegando a concluir que somente tornando-se rico, pode se tornar livre da força opressiva do capitalismo. O que traduz o sonho universal, um ideal de todos.

Fernando Pessoa classificou esse conto como “conto de raciocínio”, pois se trata de uma reflexão detalhada da adesão de um idealismo e da influência das ficções sociais na cultura. Ao que parece, este foi publicado em 1922, mas escrito antes, por volta de 1914, no início ou durante a primeira guerra mundial, momento político conturbado na Europa.

A estrutura do conto tematiza os embates entre relações humanas e relações tirânicas, e entre ideologia na teoria e na prática. No primeiro embate, o conto ilustra um impossível nas relações, um não há relação, ilustra com precisão o aforismo lacaniano “Não há relação sexual”. O banqueiro, na sua pretensão em propagar ideias anarquistas, percebeu que toda relação acabava sendo opressiva, coerciva, perversa, tirânica. O que confrontava com o ideal anarquista. Na tentativa de se lutar por um ideal em conjunto, no caso, por liberdade, esbarrava-se com a tirania: uns controlando outros. Se for compelir, ajudar, auxiliar os outros a serem livres, se estaria diminuindo a liberdade deles, estaria sendo tirânico e perverso com eles. Diante disso, o outro embate, entre ideologia na teoria e na prática, acaba ficando complicado, pois quando se leva a ideologia à prática não se leva em conta o impasse nas relações humanas, o impasse de uma dinâmica singular, do gozo de cada um, o que reflete a preferência ao “objeto a em detrimento do Ideal” do eu, como Miller indica em seu texto “A teoria do Parceiro”.

O que se capta no conto é que somente existe liberdade individual. Só se consegue liberdade para si próprio. Não se consegue libertar os outros, senão isto seria uma soberania sobre eles. Transmite que o ideal de conquistar a liberdade precisaria ser individualizado, pois assim faria com que cada indivíduo, dentro de uma esfera capitalista, pudesse saber lidar com sua anarquia individual, ou seja, com seu gozo, e isso levaria a entender que existe algo de si mesmo na sua fala, o que faria com que o sujeito se implicasse em seus atos para poder expressar seus talentos naturais (dons) sem obstáculos, sem coerções externas, sem mal encontro, sem mal-estar.

A dificuldade nas relações sociais percebidas por Fernando Pessoa, provavelmente, em 1922 (ou antes), é disso também que a psicanálise se ocupa; é o que, nessa época, já estava mobilizando Freud em seus estudos, o que Lacan vai desenvolver posteriormente, e o que hoje continua mobilizando a psicanálise na medida em que mudanças ocorrem nas dinâmicas formas de laços sociais.

A psicanálise lacaniana visa trabalhar pela separação da ligação do sujeito ao seu Outro mau, para que cada um promova certa independência e evite cair nas armadilhas tirânicas do supereu como retorno de gozo (Barros, Romildo do R., Três conferências sobre Supereu). É por isso que a clínica é do caso a caso, do um a um, do singular. E por isso trabalha a formação de cada analista na solidão do seu fazer, mas não sem contar com as relações entre os psicanalistas, e para isso as escolas, os cartéis e os congressos têm papéis fundamentais.

Em seu texto Uma conversa sobre o amor, Miller diz que “O que Freud inventou foi um novo tipo de Outro ao qual dirigir o amor: um novo Outro que fornece novas respostas ao amor e, talvez, respostas mais adequadas do que aquelas que se encontram na vida cotidiana. Freud inventou um novo Outro do amor, mas não um novo gozo, porque então seria a questão de uma nova perversão”, de uma nova tirania.

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