Noite de Cartéis – O cartel e a guerra – Texto de Abertura

Por Maricia Ciscato – Pela comissão da Diretoria de Cartéis e Intercâmbios da Seção Rio da EBP.

Decidimos retomar o texto “A Psiquiatria inglesa e a guerra” por encontrarmos nele importantes bases utilizadas por Lacan para formular sua proposta de cartel a partir do que ele aprende em sua visita ao trabalho desenvolvido pela psiquiatria inglesa em um contexto bastante desafiador, o da Segunda Guerra Mundial. É desejo da comissão que compõe esta Diretoria de Cartéis e Intercâmbios da Seção Rio da EBP pensar o trabalho de Escola articulado ao nosso atual contexto, que tanto nos desafia.

Lacan irá se servir de seu encontro com o trabalho (principalmente) de dois psiquiatras ingleses orientados pela psicanálise, Bion e Rickmann, que se dedicaram a tratar soldados que tiveram que se ausentar do front de batalhas durante a Segunda Guerra Mundial: desajustaram-se da tropa. Em jogo, nesse precioso texto, está um pensamento sobre a constituição grupal por uma lógica diferente da analisada por Freud em “Psicologia das massas e análise do Eu”, no qual a identificação a fazer reunir um grupo horizontal se dava a partir de uma relação específica com o Ideal do Eu.

Outro “arrebentado”

Laurent, em um texto primoroso chamado “O Real e o grupo”, no qual trabalha cuidadosamente o texto de Lacan em questão, afirma:

“Se a psicanálise é apresentada [no texto, por Lacan] em sua dimensão de eficácia social, ela o é como um instrumento de luta contra a morte a trabalho na civilização. Vemos desde já, o despontar da missão que será atribuída a uma Escola de Psicanálise: a de ser ‘uma base de operação contra o mal-estar na civilização’. É nesse contexto que lemos esse escrito, hoje.” [1]

Em um trabalho de 2007, intitulado “Da massa freudiana ao pequeno grupo lacaniano”, publicado no livro do Digaí-Maré, Romildo comenta que essa frase de Laurent pode parecer um pouco grandiosa, mas que é preciso estarmos atentos para o fato de que “como o Diabo, a chave está nos detalhes”. São as grandes utopias que podem prescindir dos detalhes; aos mundos ruídos, para os quais “faltam grandes princípios e orientação universais”, diz Romildo, é preciso uma atenção especial aos detalhes para construção de saídas. Em suas palavras:

 “A Inglaterra estava arrebentada (…). Assim, os psiquiatras e psicanalistas ingleses – Bion e Rickmann, por exemplo – só puderam propor uma reação a partir, justamente, da descentralização. Não necessariamente por um gosto democrático, o que os aproximaria das utopias, e sim pelo simples fato de que o Outro não respondia.”[2]

Há vários detalhes sobre a forma de agrupamento inventada por Bion que todos podem observar com uma leitura cuidadosa do texto de Lacan. Destaco, apenas, por um lado, os grupos pequenos, a importância da tarefa e a ausência de um líder aos moldes do mestre; e, por outro, o fato de que, para aqueles soldados, contar com o Ideal não era possível. O “Outro não respondia”, como diz Romildo.

Lacan viu se reproduzir nas sociedades de psicanálise, com a figura ocupada pelo “analista didata”, uma lógica de poder similar a do exército e da igreja estudada por Freud. Para isso, propôs estratégias a fim de fazer com que o desejo de saber e a responsabilidade de cada um com fazer viva a ética da psicanálise se colocassem a trabalho na Escola. O cartel é, portanto, ao mesmo tempo, um tratamento à lógica da mestria e uma criação inspirada por um contexto em que o líder parara de funcionar. Duas questões paradoxalmente atuais.

“República das milícias”

Expressões como “a morte a trabalho na civilização” nos ressoam forte no momento. Apresentam-se hoje através de políticas de extermínio, desde as mais constrangedoras, tristes e devastadoras políticas públicas – ou a completa falta delas – até as mais insondáveis articulações entre Estado, tráfico e milícia, articulações essas que podemos sentir especialmente na cidade do Rio, mas que tingem com tons funestos, de modo muito mais amplo, a política do país, inclusive com as hoje chamadas “milícias digitais”.

Vivemos, no Rio, a experiência de uma espécie de guerras urbanas (coloco no plural), desregradas de Ideal, uma república de narcomilícias tirânicas, disputando o poder de pequenos territórios. Um poder tirânico que se sustenta pela via imaginária do falo; o pai que opera na lógica do “tiro, porrada, bomba”, como se diz na PM, incluindo práticas de tortura e assassinatos a luz do dia. Nas palavras do jornalista Bruno Paes Manso: uma espécie de game of trones carioca.

Paes Manso, como resultado de uma vasta pesquisa, publicou em 2020 o livro “A república das milícias”. Diz ele:

“Nessa realidade do submundo do poder policial existem normas próprias em que as leis e o Código Penal não passam de abstrações. São levados em consideração, mas pouco funcionam na prática cotidiana. As leis até podem ser defendidas em público ou usadas de forma tática para atingir adversários ou punir inimigos, entretanto não são levadas tão a sério. (…) Essa rede, para continuar forte e mobilizada, precisa fazer dinheiro e descobrir oportunidades de negócios. Sem dinheiro não há poder, um problema que a criação do modelo de negócios miliciano soube resolver. Em 2018, a eleição de um governador e de um presidente que representam em muito aqueles que veem o mundo de dentro desse subterrâneo ruinoso mostrou aos paramilitares que eles tinham chegado mais longe do que imaginavam. Os controles formais, a Constituição, a democracia, não passavam de entraves para o poder dos mais fortes.”[3]

A guerra é uma modalidade de laço social

Estamos distantes do contexto das Grandes Guerras. Paes Manso nos dá o tom: as leis e os códigos penais não passam de abstrações usadas de acordo com os interesses. O falo simbólico já não funciona para fazer operar a negatividade da lei ou o Ideal na guerra. Mas é importante também a clara articulação feita entre as milícias e o fazer dinheiro, pois elas não são, nem de longe, selvagens e insensatas, como podemos tender a pensar.

Vale retomarmos Marie-Helène Brousse em um valioso livro para esta conversa, “A psicanálise na hora da guerra”:

“Não há guerra sem discurso, o que implica que a guerra não pode se reduzir a manifestações naturais ou irrupções de agressividade. A guerra é uma das modalidades do laço social e não seu contrário.” [4]

E ainda:

“Na perspectiva analítica, a lógica é considerar a guerra como um sintoma. Quando o NP perde sua força e o significante mestre não pode mais comandar o discurso ou não pode decidir por uma das versões, as guerras vêm em seu lugar para organizar o ‘comércio inter-humano’ segundo essa solução de gozo ‘ruinoso’ que é o traumatismo.”[5]

Se concordarmos com ela e tomarmos a guerra como um sintoma do laço social – ou seja, como uma expressão e não a ruptura do mesmo –, perguntamo-nos sobre o que podemos extrair da lógica da guerra hoje, no Rio (mas não apenas) nas tonalidades milicianas. O que ela nos ensina sobre o discurso que dá a toada em nossa época e, portanto, sobre o laço social no Brasil de hoje?

“Guerra de narrativas” e “Imperativo de gozo”

Em “A psiquiatria inglesa e a guerra” Lacan faz uma análise sobre as distintas posições assumidas pela Inglaterra e pela França durante a Segunda Grande Guerra. Segundo ele, os franceses, naquele contexto, se orientaram pelo que nomeou de um “modo de irrealidade”, enquanto os ingleses teriam assumido uma posição distinta, a qual Lacan nomeia de uma “relação verídica com o Real”. É em nome desse “realismo”, dessa “relação verídica com o Real”, que Lacan se expressará.

Em que pé estamos com isso hoje? Acompanhamos o que se chama de “guerra de narrativas”, forte estratégia das “milícias digitais”.

Lembramos que o “narrador” teve sua morte já decretada por Benjamin em seu famoso texto. Para Benjamin, a primeira guerra mundial já não pôde ser narrada. O leito de morte do soldado (que podemos tomar como o real da guerra) perdeu-se uma vez que as histórias de guerra passavam a ser contadas pelos jornais que começavam circular na época. Não havia mais a figura daquele capaz de fazer ouvir, em seu contar, o silêncio e o horror. Aquele que, com a arte narrativa, bordejava e transmitia o Real. Com o fim da narrativa, entrava em campo o início da “informação”, que, apesar de solapar a arte do narrador, mantinha de algum modo um compromisso com a Verdade.

A narrativa tal como usada hoje na expressão “guerra de narrativas” é a completa anulação daquilo que transmitia o narrador benjaminiano, é aquela que não tem qualquer compromisso com a transmissão de um Real. E é também descolada de um compromisso com a Verdade, que a informação pode visar. Nessa guerra, uma “narrativa” vazia visa eliminar outra, “cancelá-la. É a “lógica do cancelamento”, como se diz, em que linchamentos virtuais se propagam.[6]

Romildo, acompanhando Lacan em seu texto aqui já citado, afirma que um dos sintomas da falência das grandes utopias, desse Outro universal que não responde, é a emergência de imperativos superegóicos, ou seja, de imperativos de gozo. A massificação de discursos de ódio e a circulação livre de narrativas, sustentadas em inverdades, poderiam ser lidas como evidências, em nosso contexto, do imperativo de gozo?[7]

“Relação verídica com o Real” e “Realismo de combate”

Como uma modalidade de laço que leva em conta “uma relação verídica com o Real” pode pulsar fazendo-se ressoar nesse contexto? Ou então: como nos servirmos do “realismo de combate” – expressão utilizada por Laurent para se referir ao “realismo psicanalítico” de Lacan e diferi-lo de um “realismo político” que, à época, serviu para cobrir “os piores comprometimentos com o nazismo” – numa dimensão coletiva atual?[8]

A palavra “dignidade”, pinçada do texto de Lacan por Romildo para descrever a diferença de postura da Inglaterra em relação à França, parece ser uma espécie de charada e elo para pensarmos uma “relação verídica com o Real”. Romildo nos diz: “Manter a dignidade, no caso em questão [o da Inglaterra], correspondia a fazer com que um coletivo subsistisse sem a garantia física do Um” (do Pai).

A questão da dignidade está em jogo constante na guerra, nas situações-limite, põe em jogo a relação da causa com o simbólico. É o tema de Antígona, é também a questão de Primo Lévi em “É isto um homem?”. Essa relação de articulação e não de oposição entre Real e Verdade parece ser a chave, mas como isso é alcançado? Como se desenha hoje?[9]

Surge então a questão sobre o cartel como “máquina de guerra”.[10] Essa é uma expressão que tem algo de enigmático e de resposta verídica ao Real. Tempos de guerra são tempos de ruptura com o automaton da rotina, que revelam os significantes mestres que estão no comando da civilização. Pensar o cartel como “máquina de guerra” dá uma dimensão viva e contemporânea a essa forma de provocar a elaboração. Contra o que se faz a guerra aí? Talvez o famoso clichê: “estar à altura de sua época” tenha relação com isso: a guerra (ou a pandemia) nos obriga a estar a essa altura, a responder a essa contingência da civilização, a essa ruptura da rotina com nossas “máquinas de guerra” precárias.[11]

No cartel, há uma transferência em jogo. Uma “transferência de trabalho” que – a partir da função que exerce o mais-um, ou o “menos-um”, como diz Miller, promovendo a horizontalidade no cartel – visa escapar à mestria, descompletando o sujeito e relançando o desejo. O cartel como “máquina de guerra” teria sua força justamente na dimensão de dignidade que essa transferência de trabalho pode produzir? Seria uma máquina de guerra não apenas contra o discurso do mestre, mas também contra o imperativo de gozo supergóico?[12]

Se a guerra é um sintoma da civilização, devemos tomá-la uma a uma, guerra a guerra, e localizar, em cada época, o que ela nos permite ler sobre o laço social em jogo e como responder a isso. O jogo de xadrez humano que utilizamos em nosso cartaz, realizado em 1924, entre o Exército e a Marinha russos, nos lembra que, na guerra, que é sempre política, precisamos de estratégia e tática.  Um analista “para estar à altura de sua época” precisa trabalhar para ler os sintomas em jogo e se posicionar. Chamamos Romildo hoje aqui, com muita alegria, para nos ajudar nesse esforço de leitura e a avançar nas tantas questões que o tema nos provoca.


[1] Laurent, E. O real e o grupo. In: Cartel, Novas Leituras. Brown, N. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2021. P.35.
[2] Rego Barros, Romildo. Da massa freudiana aos pequenos grupos lacanianos. Em: Psicanálise na favela. Digaí-Maré.
[3] Paes Manso, B. A república das milícias: Dos esquadrões da morte à era Bolsonaro. São Paulo: Todavia, 2020. P. 129.
[4] Em: Brousse, M.H. (org.) El psicoanálisis a la hora de la Guerra. Buenos Aires: Tres Haches, 2015. P.6.
[5] Idem. P. 226.
[6] Questão levantada por Sandra Landim.
[7] Questões formuladas por Ana Luiza Rajo e Sandra Landim.
[8] Questões formuladas por mim e por Ana Luiza Rajo.
[9] Questão formulada por Renata Martinez.
[10] Miller, J.A. Novas reflexões sobre o cartel (1994).
[11] Questão formulada por Cristina Duba.
[12] Questão formulada por Maria Antunes.
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