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Textos de Orientação

EIXO 3 – ANALISTA TRAUMA

Cartel responsável: Cleide Monteiro (EBP/AMP), Sílvia Gusmão, Roberta Gusmão, Rosemarie Mooneyham. 

Mais-Um: Lucíola Macedo (EBP/AMP – Seção Minas).

A partir das orientações da Comissão Científica para o Eixo Três, dedicado à questão do analista trauma, cada componente, seguindo a lógica de cartel, escolheu abordar um aspecto a partir do ponto que o provocou. Lúciola Macedo, na função de Mais-um, após as considerações de cada cartelizante, faz algumas pontuações e lança questões para o debate ocorrido na preparatória do Eixo 3, em 2 de setembro.

Analista-trauma: parceiro que traumatiza o discurso comum

Cleide Monteiro (EBP/AMP)

Algumas questões iniciais: em que medida podemos afirmar que o analista adquire o estatuto de trauma? De que maneira opera o analista-trauma? E, diante dos chamados traumas de massa, o que pode o analista?

Tentando avançar nessa última questão, retomo uma Ação Lacaniana realizada no contexto dos atentados terroristas de março de 2004, na estação de Atocha, em Madri, acontecimentos que ainda hoje continuam a nos ensinar. Com base em um fragmento, pretendo cernir a dimensão do analista-trauma a partir de uma formulação trazida por Laurent1: o analista como parceiro que traumatiza o discurso comum para autorizar o discurso do inconsciente.

Araceli Fuentes2 nos conta sobre Minna, uma imigrante romena de 38 anos que vivia na Espanha e que, afetada pelos atentados terroristas, procurou a Rede Assistencial. Minna, que estava na cafeteria da estação tomando café com algumas amigas antes de ir para o trabalho, foi tomada pelo terror e saiu correndo, apavorada, entre mortos e feridos.

Na fuga, cruzou o olhar de um homem estendido no chão, com o rosto ensanguentado, que lhe evocou a imagem de um “Cristo estirado”. Essa cena a perturbou profundamente. Em seus pesadelos recorrentes, esse Cristo continua a olhá-la, recordando-lhe, a cada noite, que não socorreu os feridos.

Minna chega à consulta agitada e tomada pela angústia. Sente-se culpada por não ter ficado para ajudar os feridos, por não ter seguido o ideal transmitido por seu pai religioso, que lhe ensinara que, diante da agressão do outro, deveria responder como Cristo, oferecendo a outra face. Frente ao real do trauma, o recurso ao pai todo-amor fracassa. A analista a acolhe em silêncio, sem, no entanto, desculpabilizá-la. A culpa desliza e recai sobre os terroristas, dando lugar a um ódio até então completamente desconhecido por ela.

Araceli nos diz que, ao longo das vinte entrevistas que durou esse tratamento, foi preciso sustentar um lugar de escuta, deixando-a falar desse ódio (primeiro dirigido aos terroristas e, depois, aos pais pela rigidez religiosa) como uma via de desidealização, mantendo aberto o caminho para que, um dia, pudesse subjetivar algo de seu ser. Ela nos diz que, durante todo o tempo, tratou de não deixar que o sentido, seja do lado religioso ou do lado do ódio, viesse tamponar o lugar vazio de significação.

Jacques-Alain Miller interroga por que, no caso de Minna, houve um traumatismo. Seguindo o princípio de que, para que haja traumatismo, é necessária uma contradição entre o fato e o dito, afirma que, no caso de Minna, o dito que se contrapõe ao fato é o famoso “pai todo-amor”. Em um mundo ordenado pelo cristianismo verdadeiro, deve-se oferecer a outra face. “O que traumatiza Minna é que não há mais outra face a se oferecer”3, nos diz Miller.

Minna nos ensina que o traumatismo pode ser tomado como a consequência de um hiato entre um mundo regido pela lei do pai e a emergência de um real sem lei, como destacou Miller. Ruído o pilar de seu mundo, Minna passa a se perguntar sobre o que fazia ali, em um país de que tanto gostava, mas que agora lhe parecia estranho. Seu único filho, de 19 anos, permanecia na Romênia, enquanto o marido trabalhava em outra cidade da Espanha e a visitava apenas nos finais de semana.

Para que se opere a incidência do acontecimento traumático, o encontro com um analista pode produzir efeitos, como ocorreu com Minna, na medida em que o trauma se inscreveu na particularidade de seu inconsciente. Nessa experiência, os sonhos tiveram um lugar central.

Através de uma série de “sonhos resolutivos”, há uma restituição da trama do inconsciente como dispositivo produtor de sentido libidinal. Seguindo um percurso traçado a partir de sete sonhos, Araceli nos diz que, entre o primeiro pesadelo — no qual o olhar superegoico do “Cristo estirado” a atormentava a ponto de despertá-la — e o último sonho, em que um homem sem rosto, aos pés de sua cama, lhe restituía a tranquilidade, transcorreram vários meses, tempo em que pôde rir e retomar o fio da vida. Nesse intervalo, inclusive, ocupou-se de um cisto/tumor no útero, descoberto antes dos atentados, que ameaçava seu corpo e sobre o qual não quis nada saber naquele tempo.

A contingência do acontecimento traumático, que se impõe ao sujeito vindo de fora, com a presença do analista, possibilita tocar o real do corpo, evitando que ela tenha o mesmo destino do Cristo estendido em sua tumba, como destaca Araceli.

A partir desse recorte clínico, extraio três formulações que orientarão a investigação rumo à V Jornada: 1) o analista-trauma como parceiro que traumatiza o discurso comum para autorizar o discurso do inconsciente; 2) o analista-trauma como aquele que perturba a defesa contra o real sem lei; 3) o analista-trauma como testemunha daquilo que, no sujeito, fala de um gozo inominável, sustentando-o na dignidade do real.

Concluindo, de forma apressada para passar a palavra!, talvez seja possível dizer que o analista passa a ser, ele mesmo, o lugar do trauma, no momento em que encarna uma presença que toca o que não se presta ao deciframento, tomando a via da causa libidinal que excede todo sentido. O analista, assim, ocupa “o lugar da perda essencial do objeto”4. É a partir do semblante de trauma que o analista entra nessa partida para “combater a pulsão de morte com o mesmo trauma, isto é, o trauma transforma-se em vivificante”5. Como nos diz Laurent: “inventa-se um caminho novo causado pelo traumatismo”6. E isso só se dá no encontro com um analista.

O analista trauma como operador clínico

Sílvia Gusmão

O analista trauma é uma formulação para designar a função do analista no contexto da clínica do século XXI, marcada pela ênfase na perspectiva do real. O traumático é o encontro contingente com o real, ou seja, com aquilo que não se deixa simbolizar, um impossível de dizer, um excesso que marca um antes e um depois. Como o analista trauma pode operar clinicamente? De que se trata essa função? Antes de procurar responder essas indagações, retomarei a concepção de trauma na perspectiva lacaniana.

No Seminário 117, Lacan afirma: “o verdadeiro núcleo traumático é a relação com a língua”. Ele se refere ao impacto das palavras escutadas, das frases ditas que incidem sobre o corpo antes mesmo que seja possível lhes atribuir um sentido8. O que é inalcançável na experiência humana aponta para a dimensão de abertura de um buraco na relação do sujeito com um Outro, anterior à constituição deste como lugar de onde se poderiam esperar respostas para o que não se entende, mas que, ainda assim, deixa marcas. Esse buraco aberto pelo significante, que incide sobre o corpo antes de poder ser simbolizado, indica um excesso de gozo ocupado por um corpo estranho, fixado e insistente em sua opacidade. Assim, cada vez que determinados acontecimentos evocam esse ponto de não sentido, ocorre a irrupção do efeito traumático.

Isso ocorre, porque o impacto das palavras sobre o corpo não resulta apenas em simbolizá-lo, extraindo gozo e deixando um vazio. As palavras se corporificam, desregulando o gozo que escapou à simbolização. Como afirma Miller9, essa corporificação, avesso da simbolização, aponta que nem tudo pode ser simbolizado.

O valor traumático de um acontecimento tem consequências imprevisíveis e ressoa de modo singular para cada um. Seus efeitos só podem ser evidenciados a posteriori. O trauma – troumatisme, buraco e excesso — como indica Lacan, insiste com suas marcas e requer uma forma de defesa para evitar o retorno incômodo de um gozo fora de sentido, de um acúmulo de excitações que excede qualquer possibilidade de cálculo ou eliminação10.

Laurent11 nos fala que o traumatismo é uma questão de interior e exterior. Um interior que está também no exterior. Num primeiro sentido, o trauma é um buraco no interior do simbólico. O simbólico aqui entendido como o sistema de representações que inclui o sintoma, como resposta do sujeito ao trauma, e, também, o impossível de ser absorvido no simbólico. Este ponto de real é a angústia. Laurent nos diz que o tratamento que se deduz desse modelo é conseguir dar sentido àquilo que não tem.

Contudo, o traumatismo do real pode ser apreendido em outro sentido. As relações entre o Outro e o sujeito podem ser tomadas ao avesso, como o simbólico no real. A estrutura da linguagem — o banho de linguagem no qual a criança é imersa — é o real. Tal imersão é traumática porque carrega consigo a não relação sexual, o encontro faltoso, a impossibilidade de complementariedade com o objeto. Nessa perspectiva, após um trauma, trata-se de “causar” um sujeito para que ele possa reencontrar as regras de vida junto a um Outro que se perdeu, que já não existe.

Para Laurent, o analista pode ser concebido como um traumatismo “suficientemente bom”, capaz de “empuxar” o sujeito a falar. Ele se apresenta como um parceiro que traumatiza o discurso comum para autorizar o outro discurso do inconsciente. Pela posição que ocupa, o analista garante o surgimento do inconsciente em sua dimensão de ruptura com o sentido estabelecido. Trata-se de produzir um novo tipo de furo ali onde o sujeito se viu tomado por um excesso sem bordas — uma abertura no centro da cena traumática — sustentando, assim, a possibilidade de que cada um invente uma resposta singular diante do irredutível do acontecimento traumático.

O analista não opera apagando o trauma, mas sustentando-o como real: acolhe o indizível, intervém de modo calculado e abre espaço para que o sujeito invente uma solução singular. Seu trabalho se dá no lugar do furo — um furo que precisa conjugar o trauma como buraco no simbólico com seu avesso, enquanto buraco no real12.

Como manter juntos o direito e o avesso do trauma, como propõe Laurent? No processo de simbolização que o trauma convoca, trata-se de o analista não intervir para anulá-lo nem de emprestar-lhe um sentido já dado, mas de sustentar que o sentido produzido pelo sujeito preserve o vazio instaurado pelo trauma, mantendo-se circunscrito em torno dele.

O analista-trauma: corte e invenção

Rosemarie Fernandes Mooneyhan

Desde Freud, o trauma não é apenas um acontecimento externo, e, sim, uma ruptura que marca o sujeito de forma singular. Já Lacan nos mostra que o trauma é uma irrupção de gozo, que escapa ao sentido, produzindo um buraco. Para Lacan, somos todos traumatizados pela língua, pois o encontro entre a palavra e a carne, traumatiza, produzindo um gozo inassimilável, com o qual teremos que nos responsabilizarmos. O trauma é o encontro com o real, algo que escapa à rede de significantes e não se inscreve totalmente na linguagem. O analista precisa lidar com a subjetividade de cada analisante, pois algo do singular de cada um estará presente; independente do que tenha acontecido, cada sujeito responderá de um modo próprio à mesma experiência e nem todos estarão traumatizados. Segundo Marcus André Vieira, o papel do analista “… está condicionado à premissa de que há em qualquer trauma ‘um fator subjetivo’ ineliminável”13.

No texto Ler um sintoma, Miller14 nos faz pensar na leitura do trauma, pois o sintoma surge para tentar dar uma resposta à experiência traumática, ao encontro com o real.  Ele propõe que se trabalhe reduzindo os efeitos do sentido, visando o fora do sentido, o real do sintoma. É importante que o analista aponte para mais além da decifração, aponte para a fixação de gozo, a opacidade do real.

No que diz respeito a interpretação do analista, Miller, em A palavra que fere, diz que Lacan, em A direção do tratamento, pretendia que existissem regras para a interpretação, mas não as formulou, pois, a seu ver, a interpretação não é uma técnica, e, sim, uma ética. O título: A palavra que fere sugere uma ferida, um corte, onde a palavra do analista, se fere, machuca, traumatiza, nos levando a pensar sobre a palavra que traumatiza, o analista trauma. Para Freud, o sintoma é uma formação do inconsciente e tem um sentido, pode ser decifrado e interpretado.  A interpretação lacaniana é diferente da freudiana, pois a freudiana se encerra quando se descobre o sentido sexual da mensagem cifrada, enquanto a interpretação lacaniana, caminha para a não relação sexual, ou seja, ao impossível de dizer: “a interpretação freudiana é a tradução em termos sexuais. A interpretação lacaniana não é tradução, mas revelação, ela ergue o véu sobre o que é impossível de dizer, ela lê o-que-não-se-pode-dizer, ela o torna sensível”15.

Segundo Laurent, em A ordem simbólica no século XXI, consequências para o tratamento: “nosso horizonte é o de um analista vazio, que está advertido de seu gozo, mas que sabe, para além do furo na ordem simbólica, instalar-se na posição daquele que pode perturbar a defesa. (…) podemos pensar o psicanalista como psicanalista trauma”16. É um analista que corre riscos calculados. Não se trata mais de conduzir o tratamento somente pela interpretação clássica, e, sim, de operar a partir do real do sintoma, onde o simbólico esbarra em um limite. O analista não busca decifrar tudo, mas localizar pontos de opacidade e extrair, aí um saber singular do falasser. O analista deve intervir para tocar o ponto de gozo que ordena o sintoma e criar possibilidades para que o sujeito invente sua própria solução, sua forma única de fazer com o real.

Para Lacan, “(…) o inconsciente é que, em suma, fala-se sozinho, se é que há falasser… Falamos sozinhos porque só se diz uma única e mesma coisa, exceto se nos abrirmos para dialogar com um psicanalista. Não há meio de fazer outra coisa que receber de um analista o que perturba nossa defesa (…)”17. Ele aponta para o analista como perturbador de uma defesa, que toca no gozo do Um que fala sozinho, dizendo o mesmo, para que possa vir a surgir algo da fala que não quer nada dizer.

No testemunho de passe de Marcus André Vieira, O grito, o abraço e o risc, ele aborda o trauma do ponto de vista da voz, que esteve presente do início ao fim em sua análise. Relata que na noite anterior a uma sessão memorável acordou sobressaltado no silêncio da noite com algo que acabara de ouvir. Havia acordado com seu ronco. “Não ouvi meu ronco, mas era como se ele ainda estivesse ali. (…) Foi um momento muito especial, ‘entre dois’, feito ao mesmo tempo de som e de silêncio. Ele apresentou algo extra, inexistente e existente ao mesmo tempo”18.

Marcus relata uma lembrança, de quando era recém-formado em medicina, e dava plantão em uma clínica psiquiátrica, que se conectava com o sonho que o despertou com o ronco: “uma paciente obesa, sentada, nua em um canto toda a manhã, me chamara atenção. Ao me aproximar, percebi que ela balbuciava alguma coisa. Cheguei mais perto para ouvi-la, foi o bastante para ela se virar para mim e me tomar em um fortíssimo abraço. Impossível de se livrar dele. Me debati, gritei e foram necessárias quatro enfermeiras para tirá-la de cima de mim”19. Outra lembrança o interessa por ser, para ele, uma retomada da outra situação radical mais antiga: “Um rapaz de vinte anos, um dos meus amigos, ‘do nada’, voa em meu pescoço, e começa a me estrangular. Ninguém perto. Quando estou a ponto de apagar, ele me solta e sai andando. Ninguém viu. Recobro o fôlego e não solto um pio. Não havia o que pensar ou dizer, nem como chorar ou brigar, apenas seguir como se nada tivesse acontecido”20.

Para ele, os balbucios da moça faziam contraponto aos gritos da sua infância e o abraço, à mão na garganta. Entre dois, como a experiência do ronco, a que ele chamou de gozo extra. A voz da moça o fisgara e seu abraço o colocou como objeto. Na análise, envolvido entre roncos e balbucios, precisou lidar com o incompreensível dos sons emitidos pelo analista. Eram intervenções sonoras, fora de sentido: rasgar jornais, roncar, pigarros, teclar no computador, entre outros. Em uma sessão falava sobre como a voz do Outro fazia seu coração bater e o analista diz: “seu coração é um tambor”. “Até então, a voz do Outro me tornava soldado. Eu era, corpo todo, tambor do Outro. Agora a voz que me agitava era parcial, não mais total, permitia-me aproveitar um pouco, relaxar e gozar.”21

O tambor, o balbucio, o ronco, os gritos dos pacientes da clínica, os gritos do pai, condensaram a força do objeto voz na vida de Marcus, que a partir da interpretação do analista, se faz uma extração do objeto. “A extração do objeto é a solução analítica para o trauma estrutural. Encontrara um gozo incluído no trauma: o de deixar agarrar e assim enlaçar. Dito de outra forma: a mesma chave de braço que apertava a garganta podia ser abraço.”22

Analista trauma, perturbador da defesa

Roberta Gusmão

Em tempos de fragilidade do simbólico, onde o real insiste em se manifestar de um modo caótico e aleatório, sem que se possa recuperar uma ideia de harmonia, evidencia-se cada vez mais a ineficácia da interpretação pela via do sentido.

Diante da prevalência da desordem do real, Miller — na apresentação do IX Congresso da AMP — convida o psicanalista a investigar no sujeito contemporâneo “a dimensão da defesa contra esse real sem lei e fora de sentido”23, possibilitando assim não só uma outra forma de apreender como também de operar com o real, através do efeito do seu ato de desordenar, perturbar a defesa.

Desta forma, o analista, quando convocado a intervir do lugar de analista trauma, provoca, com seu ato, algo que incide sobre um significante assemântico, isolado, um S1 que não se articula a um S2, e por isso se faz imune a eficácia simbólica; produzindo, assim, um efeito vivificante sobre o sujeito. Tal ato, por seu equívoco, ressoa no corpo, traumatiza, perturba a defesa, introduzindo assim um incômodo na satisfação que o analisante tem no seu modo de gozo.

Pontuo aqui que este incômodo é necessário para que o sujeito atinja a sua singularidade, pedaço de real imutável e incurável, e que, ao surpreender o real, um novo enlaçamento a partir desse ponto possa se produzir e assim inventar um modo de se a ver com seu gozo

Em A ordem simbólica no século XXI, consequências para o tratamento24, Laurent traz a noção de analista-trauma como “uma posição do psicanalista na qual ele aceita riscos, calculados, certamente, e não se submete inteiramente às interdições protetoras ou mortificantes, sem que com isso caia no ativismo terapêutico”.  Nesta posição, o analista direciona sua prática para o sinthoma, por isso não interpreta à maneira do inconsciente, se não no sentido contrário, ou seja, aponta para o deciframento que não dá sentido. Produz, com seu ato, muitas vezes o efeito de perplexidade no sujeito, pois o expõe ao inesperado e ao que é traumático, desestabilizando o que até então se sustentava como um modo de se proteger do real e levando-o a se defrontar com o que usualmente evita.

Ilustro minhas considerações sobre o analista-trauma, enquanto perturbador da defesa, através de um recorte do testemunho de passe de Alejandro Reinoso.

Em seu testemunho, Reinoso destaca a seriedade como o significante-mestre de identificação do sujeito. A seriedade, traço que o acompanhava também no trabalho analítico, muitas vezes se encontrava com um sorriso do analista, o que o inquietava. Um sorriso sem sentido. “Ele está rindo de quê? – se perguntava. E não entendia, já que não havia nada de engraçado no gozo que o afligia. E é quando produz um sonho (sonhado e relatado em italiano, língua do seu avô materno): “Eu estava em um restaurante chinês, saboreava um arroz muito gostoso e o comia com muito prazer. Era um arroz ao modo cantonês (il riso alla cantonese). O analista, antes que eu concluísse o relato do sonho, recortou o equívoco homofônico, il riso al Lacan-tonese, o riso ao modo de Lacan. Efeito imediato: ri às gargalhadas, vibrando com todo o corpo; o analista também riu”.

Reinoso pontua que o riso-a-la-Lacan é uma escritura poética de uma interpretação que tocou suas entranhas, um equívoco surpreendente sem sentido. Cito-o: “o analista manobra diretamente com lalíngua do falasser, fazendo emergir um significante novo que se inscreve no corpo e assim bordeja sua consistência de forma diferente. Um despertar para a leveza no corpo, início de uma transformação da existência séria e taciturna que abriu uma porta inédita para o cômico”25.

Debate – EIXO 3 – Analista-trauma

Lucíola Macedo (EBP/AMP)

Os produtos aqui apresentados abordam o caminho percorrido por cada uma das cartelizantes em torno de três proposições, extraídas do trabalho em cartel: 1) o analista-trauma perturba o discurso comum, para autorizar o discurso do inconsciente; 2) o analista-trauma perturba as defesas erigidas “contra o real sem lei”, permitindo, com o ato analítico, a passagem do inconsciente transferencial ao inconsciente real; 3) o analista-trauma opera como testemunha de uma perda, lugar “daquilo que, no sujeito, fala de um gozo inominável”, como aponta Cleide à propósito de Minna, Roberta com o testemunho de Alejando Reinoso e Rose com o testemunho de Marcus A. Vieira.

Isso se presentifica desde a instauração da transferência, como motor do trabalho analítico. É por isso que Lacan, no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, afirma que a presença do analista deve ser incluída no conceito de inconsciente, e que a sua presença não se dá  de ego a ego, mas como caput mortuum da descoberta do inconsciente, o que se articula com a causa perdida, com o encontro faltoso, e, mais amplamente, com aquilo que, por sua natureza, se perde: é uma zona de perda porque não opera via identificação ou reforço do ego. Onde o inconsciente não tem nenhuma espécie de substância, mas se constitui como “a soma dos efeitos da fala sobre um sujeito”. Ele diz: “paradoxalmente, a diferença que garante a mais segura subsistência do campo de Freud é, por sua natureza, um campo que se perde. É aqui que a presença do psicanalista é irredutível como testemunha dessa perda: é uma perda seca”26. Trata-se de uma zona de sombras que se declina, no tratamento em opacidade do gozo; assim como a “perda seca” se declina em hiato, deslocalização, efração, disrupção. Essa passagem do Seminário 11 remete a uma passagem do Seminário 19 … ou pior: “para nos acostumarmos com esse des-ser (o de ser o suporte, o dejeto, a abjeção a que pode agarrar-se aquilo que graças a nós, vai nascer de um dizer que interprete), convido o analista a ser digno da transferência”27.

Achados: Cleide, com Ricardo Seldes – fazer do trauma algo vivificante! “combatendo a pulsão de morte com o mesmo trauma”.

Nessa mesma direção, a dos achados, destacaria, no caso Minna: ao considerar o trauma como processo, como aponta Laurent em O trauma ao avesso, escutamos o hiato entre o trauma social e o trauma singular (diante do real do trauma, do real sem lei, o recurso ao pai todo amor, à lei do pai, fracassam); o hiato entre os fatos e os ditos parece se realizar no equívoco, na passagem de uma língua a outra, do romeno ao espanhol e vice-versa, no trabalho de análise conduzido através do trabalho dos sonhos. O relato do caso traz sete sonhos! Podemos dizer que o trabalho do sonho conduziu a passagem do horror/terror ao trauma, nesse tensionamento e torção entre o trauma como acontecimento social ao trauma como processo, singular?

Seguimos com o fio da investigação de Silvia: como o analista-trauma opera? De que maneira a operação analítica perturba o discurso comum para autorizar o discurso analítico? Gostaria de destacar o seu achado: o analista não opera apagando o trauma, mas sustentando-o como real. Pediria que nos diga um pouco mais sobre esse seu achado.

O achado de Roberta: o analista-trauma aceita riscos calculados, cifra mais que decifra, atento ao equívoco, isola o significante assemântico, as homofonias, equívocos, jaculações de lalíngua, com seu efeito vivificante, a percutir no corpo. O analista-trauma como aquele que perturba a defesa não opera pela via do sentido. Poderia nos falar sobre a função dos sonhos em análise como um operador do analista-trauma?

Rose, o seu achado: é preciso encontrar um gozo incluído no trauma — “a chave de braço que apertava a garganta podia ser abraço”. Mas “o gozo do objeto nos mantém, porém, no plano do trauma e de sua subjetivação (que Lacan chamou de fantasia/fantasma). O decisivo em termos de conclusão envolve uma abertura para um espaço fora da fantasia… o gozo condensado no objeto encerra apenas uma fração da vida que levamos em nós. Minha agitação viril num extremo, e a docilidade do agarrar e ser agarrado noutro, formavam o leque das paixões ditados pela fantasia. Mas há vida fora da fantasia”28. Pergunto: uma torção que já não é agitação nem abraço, e que é tudo isso também, “em lugar nenhum e em toda parte”, deslocalizado, que não cabe em si: “o abraço me ensinou a não caber em mim”. A vida que há fora da fantasia seria uma abertura ao outro gozo, ao gozo dito feminino?

* * *

Sobre a função dos sonhos em análise como um operador do analista-trauma: “o tecido do inconsciente é feito de sonho, afirma Freud, à propósito do umbigo do sonho. Este último é a cicatriz do trauma. Nesse ponto, esbarra-se com o ininterpretável, com o limite onde todo e qualquer sentido se detém, a indicar presença do real nos sonhos. O trabalho do sonho poderá operar, nessa perspectiva, como um modo de tangenciar o real traumático através das imagens oníricas, favorecendo a que no lugar do furo do trauma, daquilo que não se liga a nada, se imagine o real. É Lacan quem o diz: não há nada mais difícil que imaginar o real.  Recorremos ao imaginário para termos uma ideia do real, e assim, o que não pode ser dito, poderá ser mostrado. Assim, o sonho poderá se tornar uma via de acesso ao real”29.


NOTAS 

1 LAURENT, É. O trauma ao avesso. Papéis de Psicanálise, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 21-28, abr. 2004.

2  MILLER, Jacques-Alain. Efeitos Terapêuticos Rápidos em Psicanálise: conversação clínica com Jacques-Alain Miller em Barcelona. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise – Scriptum, 2008. p. 15-46.

3 Ibid, p 41. 

4 LAURENT, op. cit., p. 26.

5  SELDES, Ricardo. La urgencia dicha. Buenos Aires: Editorial Diva Freud, 2019. p. 69.

6  LAURENT, op. cit., p. 26.

7 LACAN, J. (1901-1981). Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise 1964. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 

8.  RÊGO BARROS, M. R.C.  Trauma, uma nova perspectiva sobre o real. Opção Lacaniana online, ano 6, número 16, março de 2015.

9  MILLER, J-A. O Ultimíssimo Lacan, aula de 13 de janeiro de 1988 do Curso de Orientação Lacaniana.

10  Idem.

11  LAURENT, E. O trauma ao avesso – Papéis de Psicanálise, v. 1, n. 1, abril, 2024. Instituto de Psicanálise e Saúde Mental de Minas Gerais.

12  Idem.

13  VIEIRA, M. A. “O Trauma subjetivo”. Psico (PUCRS), v.39, p.509-513, 2008.

14  MILLER, J. A. “Ler um sintoma”. In Afreudite-Ano VII, 2011- n. 13/14. Pp.1-30.

15  MILLER, J. A. “A palavra que fere”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 52, p.69. julho, 2010.

16  LAURENT, É. “A ordem simbólica no século XXI. Consequências para o tratamento” Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n.62, p.88 dezembro, 2011.

17  LACAN, J. Le Séminaire, Livre XXIV, L’insu que sait de l’une-bévue s’aile à mourre, aula de 11 de janeiro de 1977.

18  VIEIRA, M. A. “O grito, o abraço e o risco”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 70, p. 94. junho, 2015.

19  Ibid.

20  VIEIRA, M. A. Opção Lacaniana online nova série. Ano 4. Número 11, p.4, julho 2013.

21  VIEIRA, M. A. “O grito, o abraço e o risco”. Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 70, p. 95. junho 2015.

22  Ibid. 

23  MILLER, J. A. Intervenção de encerramento do VIII Congresso da AMP, apresentando o IX Congresso da AMP. 2012. 

24 LAURENT, É. A ordem simbólica no século XXI. Consequências para o tratamento. Opção Lacaniana n° 62.

25  REINOSO, A. “Um despertar poético para o riso”. Papers+Um: Freud-a-la-Lacan, 2020b, p. 45-46. Disponível em https://congresoamp2020.com/pt/el-tema/papers/01_papers_trad.pdf.

26  LACAN, J. Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: JZE, 1988, p. 122.

27  LACAN, J. Seminário 19… ou pior. Rio de Janeiro: JZE, 2012, p. 226.

28  VIEIRA, M.A. O grito, o abraço e o risco. Opção lacaniana, n.70, junho 2015, p.95.

29  MACÊDO, L. Prólogo. In: Sonhos e testemunhos: políticas do inconsciente e discurso jurídico. São Paulo: INM Editora, 2025, p.17-18.

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