Relator: Cleyton Andrade (EBP/AMP).
Cartel: Carlange de Castro, Cleyton Andrade (EBP/AMP), Vânia Ferreira, Wilson Lima. Mais-um: Flávia Cera (EBP/AMP).
Será que ainda precisamos definir a violência? Ela já não seria suficientemente óbvia, nos restando apenas apontá-la e, com isso, dizê-la com todas as letras, caras e formas?
Ou ela ainda, e, apesar de tudo, exige, novamente, incansavelmente, uma nova tradução? Seria a violência um dos intraduzíveis?
Afinal, onde ela se faz presente? No soco desferido em meio a uma discussão acalorada? No discurso de ódio monetizado pelas bigtechs? Na crueldade e covardia do feminicídio, na violência transfóbica, racista, na LGBTQIAPN+ fobia? Na violência contra pessoas de classe social mais baixa? Na violência colonial? Na violência de uma tentativa de golpe que insiste em não recuar com a participação hipócrita de quem está ao seu lado, e também na imprensa, no Congresso ou na porta dos quarteis digitais? Na violência de ouvir o hino brasileiro traduzido para um inglês tosco e brega com a bandeira norte americana tentando tremular a nossa soberania?
Ou podemos nos resumir à figura do soco, à essa estética liberal de uma violência despolitizada, reduzindo a uma mera contingência de um embate entre semelhantes, desconsiderando, supostamente em nome da clínica, que estruturas, sistemas sociais e econômicos portam o DNA da violência? Essa questão coloca sob foco, a relação entre ato, comportamento e discurso.
No Seminário 5, Lacan [1] vai fazer uma oposição entre agressividade e violência. A agressividade surge na relação com o semelhante, ligada à identificação narcísica e à constituição do sujeito, enquanto a violência é vista como um excesso pulsional, um gozo que vai além da agressividade como mera função defensiva, sendo um “a mais” que pode romper os laços sociais constituídos pela cultura.
Frente à inconsistência do Outro, à banalização de tudo e a generalização do trauma, a questão da violência passa a estar presente tanto no corpo do outro quanto no próprio corpo. Isto quando retorna através de mutilações, ou nas passagens ao ato de jovens homossexuais, aquela de Freud ou, absurdamente, daquelas que, até hoje traduzem no próprio corpo a violência fóbica do Outro social.
Como podemos tratar com Lacan, das relações entre a fala e a violência? Por um lado, Lacan [2] vai enfatizar que na relação inter-humana o que pode se manifestar é a violência ou a fala, não uma combinação das duas. A fala, situada no simbólico, atuaria como forma de conter o excesso do gozo que pode se manifestar como violência, que está mais ligada ao real. Nesse momento, ele situa a violência no limite da fala, sendo muitas vezes considerada seu posto. Contudo, já no Seminário 20, Lacan [3] situa duas modalidades de gozo: o gozo fálico, maleável aos semblantes e um gozo a mais, suplementar ao limite. Os semblantes se organizam em função do gozo fálico, mas também vacilam diante do excesso de gozo. Aqui ele já passa a articular a violência como um excesso pulsional e a lógica do gozo sem sentido, que escapa ao simbólico e retorna no real como violência. A palavra, que é simbólica e pacificadora, pode também ser violenta quando atua para romper o pacto com Outro da linguagem. O que ainda teríamos a dizer sobre as relações entre a fala, a linguagem e a violência?
Lacan resumiu o essencial das estruturas clínicas na sua teoria dos discursos. Ou seja, fez dos discursos, dos laços sociais, da inclusão de fenômenos sociais, o elemento fundamental do que estava em questão nas estruturas clínicas. Isto é quase um convite explícito a desdobrar discussões nesse ponto entre social e clínica. Citamos Miller: “é fato que, apurando assim o conceito de estrutura, Lacan aparentemente o estende para fora dos limites da clínica em sentido estrito, já que com ela ordenou quatro discursos nos quais entram formações sociais. No entanto, é sobre o conceito de discurso que converge toda a sua elaboração estrutural da clínica” [4].
Freud já havia chamado a atenção sobre um jogo de forças entre laços sociais e a destruição. Os laços evitam a destruição, enquanto a destruição visa aniquilar os laços. Sua clínica da virada do século, destacou o real do sexo, enquanto a Primeira Grande Guerra destacou o real da morte. O trauma sob duas inscrições: o sexual e a morte. Em ambos os casos, vemos sua clínica não sendo dócil a uma separação entre clínica e debate social. Não é em torno de uma topologia de psicologia individual e social que Freud se situa. Ele sempre deixou claro que o sujeito paga com o próprio corpo o real que se impõe nas contradições sociais, nomeando seja como sexual ou como morte. Como esse impasse tem chegado na sua clínica?
A guerra não nos tornou mais cruéis e violentos. A tecnologia não nos embruteceu, apenas permitiu que a destruição atingisse escalas cada vez maiores. Não estamos mais cruéis pelo genocídio em Gaza, ou pela indiferença diante de mais de setecentas mil mortes sem vacinas. A destruição assume formas novas e é historicamente variável. Mas a crueldade continua a mesma. A tecnologia, seja em armamento ou nas redes sociais, não nos transformou em pessoas más. Apenas forneceram e fornecem modos de expressão de um anseio pela destruição, um anseio humano… infelizmente, demasiadamente humano.
Freud teve o cuidado de chamar a atenção para a tarefa de fortalecer a capacidade crítica de inibir. Contudo, o desdobramento que dá a essa capacidade crítica desemboca na sua teorização sobre o supereu. Capacidade crítica – autocontrole – supereu. O problema disso é que será creditado ao supereu a gestão de impulsos destrutivos. Se tomamos como referência a passagem ao ato, o sujeito prescindiria do Outro, dizendo um não radical, estando, justamente por isso, absolutamente suprimido e submerso pelo imperativo superegóico. É inegável uma relação entre violência e passagem ao ato, exatamente por demarcar uma irrupção que transgrida os limites e os recursos da fala e do laço, endereçados ao Outro.
O efeito colateral de uma operação que visa a manutenção da cultura resulta em um imperativo implacável que pode chegar ao suicídio. Então não temos saída? Ou nossos impulsos estilhaçam os laços sociais ou nossa defesa se encarrega disso? Resta definir que recursos temos, clínicos e políticos, para responder à violência.
Há uma violência não dita nos nossos casos que se queixam de jornadas de trabalho excessivas com remuneração incondizente, vista na incapacidade de concorrer em situações de igualdade pelo mercado de trabalho ou nas desigualdades sociais diluídas pelos sintomas de cada um. Temos aí não uma análise sociológica a ser feita, mas, sim, uma interrogação no mínimo topológica, esperando para ser devidamente elaborada e formalizada pelos psicanalistas. Freud não reduziu os soldados da neurose de guerra às suas meras individualidades, nem os reduziu a soldados de um exército, forcluindo sua condição. Não é só a guerra nem só a neurose, mas uma topologia sob o nome de neuroses de guerra.
Sendo assim, como o trauma se imiscui na violência? Não tanto se o trauma é violento. Afinal, se há uma estética do trauma, esta não precisa ser cenicamente violenta. Ao contrário da cena literária e gramaticalmente composta da fantasia em Freud. Nela, sim, há uma criança espancada. Mas o trauma prescindiu do elemento cênico, já em Freud, antes mesmo de Lacan. Então, se o trauma não precisa da liturgia da violência, por outro lado, o trauma ainda assim, pode se imiscuir na violência.
Os relatos clínicos entrecortados, fragmentados, sem forma definida, uma discursividade sincopada, comumente apontam para acontecimentos cotidianos, sociais, públicos, que elevam esses acontecimentos a circunstâncias marcantes de um esquecimento que insistem em serem lembrados. A irregularidade da forma significante que confere uma chancela de traumatismo ao relato. A clínica seria aqui pensada como um condensador do mal-estar social e político de uma subjetividade trágica? Qual o lugar de uma clínica que não se inibe diante dessas questões?
Em um texto publicado no Brasil em 2004, Eric Laurent [5] diz, claramente, sobre um traumatismo na vida política francesa: o resultado do primeiro turno das eleições presidenciais, nas quais um representante da extrema-direita venceu o representante da esquerda. Ele ainda indica que qualificar um tal fato de “traumático” pode ser feito num sentido clínico, e não apenas metafórico.
O trauma é aquilo que escapa a toda programação, sendo um dos nomes daquilo que não é programável. Um exemplo claro é a sexuação, resistente às tentativas de escrita. A sexuação é uma difícil reação ao trauma, um esforço para absorver a descrição do funcionamento do corpo e da mente.
O trauma deve ser pensado como uma relação entre interior e exterior. O toro demonstra como indicar um interior que também está no exterior. O que nos autoriza a pensar em acontecimentos coletivos, da cultura, das sociedades, dos Estados, da política, como pertinentes para a clínica, que possam resistir a uma depuração higienizada e intimista. Se o toro é um espaço que inclui um buraco, ele nos permite pensar as diversas manifestações de furo na sociedade e nos laços sociais. Ou seja, de um lado, o trauma é o furo no simbólico, para que possamos discutir as formas de “exclusão interna ao simbólico”. Se o sujeito não pode responder ao real a não ser pela via do sintoma, ele, de um modo ou de outro, é instado a responder com sua cota aos impasses que a vida política e dos laços sociais o enredam. Há um fora de sentido quantitativo com o qual se deve fazer alguma coisa. Deve-se restituir a trama de sentido na trama inconsciente do sujeito, ou seja, em relação ao sintoma e ao fantasma. Isso não nos colocaria diante de uma questão paradoxal? A de vermos o discurso do mestre como uma alternativa incluída dentro do percurso de trabalho da psicanálise. Afinal, em alguma medida, diante de laços desfeitos com a vida, para seguir em frente, não poderia ser necessário, uma reconciliação mesmo que seja com a desordem do mundo?
Mas há um outro lado… não aquele em que se restitui um sentido e recompõe um laço com o Outro. Mas um em que será preciso reinventar um Outro que já não existe mais. Nessa via a ser reinventada, não há como fazer uma inclusão na trama do sentido no fantasma e no sintoma; mas, sim, pela via da insensatez do fantasma e do sintoma. O excesso quantitativo fora do sentido, do Freud do Projeto de 1895 retorna aqui, em Lacan, como um traumatismo fundamentalmente sexual. Aquele no qual a relação sexual não se inscreve. A linguagem não socorre mais, uma vez que ela própria é traumática, e é nesse lugar que o analista opera, no lugar do trauma, um analista traumático… que convida a falar. Como assim? Depois de tantas questões sobre violência, fantasma, trauma, ainda seria possível falar de um analista traumático?
As próximas páginas serão as suas….
NOTAS
[1] LACAN, J. Seminário 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
[2] LACAN, J. Seminário 11: Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
[3] LACAN, J. Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
[4] MILLER, J-A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan – Entre desejo e gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p. 79-80.
[5] LAURENT, E. O trauma pelo avesso. Papéis de psicanálise. Vol 1, nº 1. Belo Horizonte: IPSMMG, abril de 2004.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LACAN, J. Seminário 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
_____. Seminário 11: Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_____. Seminário 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
LAURENT, E. O trauma pelo avesso. Papéis de psicanálise. Vol 1, nº 1. Belo Horizonte: IPSMMG, abril de 2004.
MILLER, J-A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan – Entre desejo e gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2011, p. 79-80.

Comments (0)