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Cleide Monteiro
Elizabete Siqueira
Coordenadoras da Comissão Científica

Com o Real começa nosso desafiador percurso como falasseres, desde sempre e para sempre subordinados às suas imprevisibilidades. O Real é, paradoxalmente, ponto de partida e de chegada; bem como aquilo que se distingue da dita “realidade” que habitamos e se localiza no mais além do princípio do prazer, campo que nos surpreende incansavelmente com suas múltiplas e incalculáveis facetas.

Por esta razão é o que se coloca fora da dimensão ideal de um suposto mundo harmonizado pela fala e pela linguagem, função e campo nos quais Lacan formalizou, em um primeiro momento, o inconsciente freudiano. É no Seminário 23 que ele assume que sua invenção do Real se impôs como sua resposta sintomática à elucubração freudiana: “Digamos que é na medida em que Freud articulou o inconsciente que eu reajo a isso”[1].

O Real assim considerado, uma reação de Lacan, convoca-nos a admitir que no nível do inconsciente a linguagem tem dois efeitos sobre o ser falante: um efeito sujeito que é também um efeito desejo e uma produção de gozo, nomeada por Lacan de substância gozante. Em 1972, no Seminário 20, a partir da experiência freudiana, Lacan sente-se impelido a ir mais além quando propõe que “o gozo é alguma coisa de substancial e por isso é importante produzir sob o nome de um novo princípio… que comporta algo de pôr em função outra forma de substância, a substância gozante”[2]. Substância que se localiza no corpo, no cruzamento entre o significante e o Real. Com essa dimensão substancial, o corpo será postulado em sua condição de corpo vivo, um corpo que se goza. Trata-se, então, de um corpo que busca satisfação a todo custo. É este corpo da pulsão, corpo vivo, substância gozante, o que interessa à Psicanálise.

Portanto, há uma mudança de perspectiva: o verdadeiro Outro daquele que Lacan passa a chamar de falasser é o corpo. Nesse momento proporá que no corpo há restos, restos de gozo, que jamais serão alcançados pelo significante, indicando, com isto, que há algo foracluído que diz respeito à vida e ao sexo, e por isso traumáticos. Em outras palavras, a linguagem não é a única morada do falasser. O corpo como palco de gozo lhe faz face e deixa ver que a fala instiga o gozo, bem como o consumo do corpo que goza, que é gozado e que se faz gozar.

No discurso dominante de uma época em que assistimos a uma aliança da ciência com o capitalismo, a permissividade e o excesso nomeiam a nova economia de gozo. Nela, os corpos se degradam, se segregam e se reificam. Isso traz consequências para se pensar o tipo de demanda que a época mobiliza, em um circuito de falar para si, como indica Miller, “ele fala para se satisfazer com isso”[3]. Nesse circuito da fala-satisfação, na qual se situa a “palpitação mais íntima da experiência analítica”, tomando de empréstimo essa expressão de Miller, interrogamos: como o analista pode operar diante de “palpitações de um gozo”[4] (p.77)? Como daí esperar um dizer?

Nessa direção, o discurso analítico sustenta um outro uso do Um, assentado na responsabilidade assumida com aquilo que não tem conserto nem nunca terá, como bem cantou o nosso Chico Buarque.

O Real assim considerado convoca-nos a interrogar sobre suas respostas a partir das contingências na clínica. Como o analista opera seguindo uma orientação que aponta para o Real?

Nesta IV Jornada da Seção Nordeste, nos interessa pensar, a partir do ultimíssimo Lacan, o Real em jogo na experiência analítica, interrogando o específico do discurso analítico ao se posicionar de modo diferente em relação aos outros discursos. Ao colocar o objeto no lugar do agente, a psicanálise propõe uma clínica do gozo, clínica do caráter exemplar de cada caso, do saber-fazer-aí com isso, a uma só vez singular e pragmática. Como indica Zenoni[5], no horizonte de nossa prática há que se interrogar o gozo que nos habita e não pode ser eliminado, visando torná-lo menos devastador e menos invasivo.

Para tanto, é fundamental considerar que “aquilo a que concerne ao discurso analítico é o sujeito, o qual, como efeito de significação, é resposta do Real”[6]. Conceber o sujeito desta perspectiva – uma resposta do Real – conduz Lacan, desde seu primeiro ensino, à ideia de um significante assemântico, aquele que não tem nenhuma espécie de sentido.

É no Seminário 23 que Lacan insiste em dizer que há uma orientação que não é o sentido, mas o Real. Ele é contundente: “a orientação do Real, no território que me concerne, foraclui o sentido”[7].

É partindo desse solo lacaniano do qual vocifera a formulação de que “o Real é sem lei”[8] que pretendemos retirar as consequências clínicas do que não é determinado por uma lei natural, mas que se apresenta como pedaços de Real na imprevisibilidade de uma clínica sustentada pela desmontagem da defesa contra o Real sem lei e fora do sentido.

Das embrulhadas do sentido ao “Real arriscado”, assim se delineia um Real próprio à psicanálise: o Real contingente, situado no campo da sexualidade, na modalidade do encontro.

Nesta perspectiva, tomemos como ponto de orientação da prática analítica hoje a indicação de Lacan de que o inconsciente é real, acrescentando que ele é feito do “ácido da contingência”[9], escrita primária produzida pela percussão do significante no corpo e seus efeitos de gozo.

É esta clínica das imprevisibilidades do Real o aquilão que nos conduzirá à IV Jornada da Seção Nordeste. Que cada um possa, a partir de sua prática clínica em consultório ou em outras inserções, produzir trabalhos a partir de três eixos temáticos:

Eixo 1: As coisas do amor

Eixo 2: As subjetividades contemporâneas e urgências

Eixo 3: A prática analítica nos territórios


[1] LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 128.

[2] Idem. O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973). 2ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. p. 35.

[3] MILLER, J.-A. Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O Sinthoma. Rio de Janeiro: Zahar, 2010, p. 77.

[4] Ibidem, p. 77.

[5] Zenoni, A. Depois do Édipo, o que se torna a psicose? Quarto, n. 104, Bruxelas, 2023.. 

[6] LACAN, J. O aturdito. (1972) In: LACAN, J. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. p. 458.

[7] LACAN, J. O seminário, livro 23: O sinthoma. (1975-1976). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. p. 117

[8] Ibidem, p. 133.

[9] Expressão usado por Jacques-Alain Miller no Curso Todo mundo é louco, Lição de 30 de janeiro de 2008.

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