Marina Cursino
No Aquário do Trocadero, durante um lanche, sua avó materna lhe dissera que sua mãe, quando grávida dela, havia atravessado tamanho desamparo que quis “jogar-se ao Sena” (se lancée). Esse desespero materno durante a gravidez que lhe foi revelado pela sua avó, era para ela um (me lancée) “jogar-me na água” uma vez que sua mãe desejava jogar-se ao Sena. [1]
Esse fragmento foi de um testemunho de passe de Marie-Hélène Blancard. Ela usa a expressão corps allarmée para localizar o que fica do traumatismo, no exato ponto em que o real afetou seu corpo quando criança, estabelecendo uma relação particular entre ela e as lágrimas.
Na contingência de um dito, no instante que o dizer atingiu o corpo, teve um impacto real que é o corpo dissolvido, sem corpo, banhado em lágrimas. Blancard pontua que “afogar-se em lágrimas” em momentos difíceis de sua vida era algo necessário para poder reerguer-se.
Qual a relação entre a compulsão à repetição do sintoma e as marcas provenientes do encontro do corpo com o significante? Sendo a letra litoral, como nos diz Lacan, qual seu lugar na construção dos delírios particulares de cada sujeito?
Bernardino Horne, em texto intitulado O mistério, diz que: “(…) de modo inverso, na clínica, nós partimos da linguagem em direção ao real, através das leituras dos traços de gozo das ressonâncias e interatividades presentes no discurso” [2]. Nessa perspectiva, em um trabalho no sentido contrário ao da constituição do sujeito, a direção do tratamento é tomada para chegar mais próximo das marcas que se inscreveram e que foram decisivas na produção dos programas de gozo dos sujeitos.
Patricio Alvarez, no que diz respeito à constituição psíquica do sujeito, faz um percurso a partir de diferentes tempos lógicos [3]. Aponta o avanço de Lacan com sua segunda clínica, com novos conceitos que surgem não para substituir os anteriores, uma vez que se refere a algo que não existia no primeiro ensino, e que inaugura um tempo lógico anterior à linguagem.
A lalíngua é ordenadora desse tempo lógico, diz respeito ao enxame de S1; de forma que, a partir dessa multiplicidade de Uns, fala-se de um-entre-outros. A letra, por sua vez, é o que se escreve no corpo como marca de gozo. A partir do enxame de S1, há Um que, por uma contingência, vem a ser extraído, recortado desses uns-entre-outros e se escreve no corpo.
Lacan, em Lituraterra, diz que a letra é “a borda do furo no saber” [4]. Por inscrever um furo, a letra pode ser tomada como uma borda do saber a partir do esvaziamento de gozo que ela produz, tomando o modo de equívoco. Ela não é o que se imprime, mas o furo que deixa marca e localiza o início da repetição. Enquanto litoral, tem uma parte real e outra simbólica [5].
É daí que parte o delírio de cada um? Na contingência do dito atrelado ao equívoco produzido pela letra, deliramos cada um à sua maneira?