Fina Pele do Sintoma
Francisco Santos (da Comissão de Biblioteca da Seção Nordeste)
Neste dia 5 de setembro, tivemos mais uma atividade voltada para a III Jornada da Seção Nordeste, vestida de Noite de Biblioteca, com a discussão sobre o filme Pele Fina, dirigido por Arthur Lins, que esteve presente ao lado de Susane Zanotti, coordenadora da Comissão Científica da Jornada, animados por Sandra Conrado, que conduziu a fecunda conversação em torno da questão: o que o filme nos ensina sobre “cada um em seu mundo: todos delirantes?”, tema que permeará os trabalhos nos dias 24 e 25 de novembro próximo, em Recife.
“Que se abram as cortinas!”, é um dos motes da obra, que como indica o diretor, é “ponto de partida e ponto de chegada”. Uma artista às voltas com o seu processo criativo que, ao mesmo tempo em que se dá, deflagra um outro processo, ao qual Arthur chamará de “crise”, que por sua vez fala da angústia, dos sintomas que nos chegam aos consultórios, e diante dos quais os sujeitos tecem suas invenções, sendo o próprio sintoma já uma invenção, uma forma de lidar com a angústia, com a não relação sexual, com o desencontro entre os pares, com a demanda impossível do Outro.
Se somos todos delirantes, cada um à sua forma, somos diante do real que nos atravessa, e que no filme é personificado – ou fantasmaticado? – na figura de Sarah Kane, a dramaturga do século passado que atormenta a protagonista, a qual ao mesmo tempo afasta e abraça esse pedaço de real com um também pedaço de discurso que não deixa de ser uma defesa contra o real, cantando, “quem tem medo de Sarah Kane, Sarah Kane…”, uma fala, uma oração contra o real esmagador, contra a angústia que se apresenta em diversas cenas do filme, o que de certa forma está presente no próprio trabalho cinematográfico: o diretor diz que Sarah “foi surgindo”, “ganhando corpo” ao longo da produção de um roteiro que prescindia das delimitações, tal qual os sujeitos que, à medida que avançam em suas existências, catam as peças soltas dos discursos para balizar o gozo, como diz Brousse, “todo discurso implica num freio ao gozo”. Em resumo, como o diretor também indica, o processo criativo é enquanto crise (angústia), mas também enquanto construção. Ler esses processos vividos no íntimo de cada discurso, de cada falasser, talvez seja isso, “alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época”, a política lacaniana desde dentro do consultório.
Suzanne Zanotti destaca o corpo como indicação cadente no filme que remete ao tema da nossa III Jornada. O corpo da protagonista que se revolve durante o processo criativo, na cena em que ela declama o que produz; que cai diante do desencontro com o antigo amante, vociferado, depois calado, caído; que se esvai, na pele que cai, rasgada, fina do sintoma, até o ponto de ruptura com a imago de Sarah Kane na última cena, lançando-se ao mar… ou se une a ela, que vai logo depois, sendo a ruptura com a vida, com o laço social?
Arthur duvida de uma depressão em Luiza, e nos diz que seu furor, suas lágrimas, sua queda, sua pele, tudo isso mostra que “há algo a ser dito”, pois o processo criativo é perigoso para o artista, que no decorrer da construção, como no caso de Luiza, “procurando um corpo para existir na cena”, neste momento, “o perigo é sucumbir”, pensando nisso que é em parte a riqueza da arte: tocar o real.
Se o artista se encontra vulnerabilizado pelo processo criativo, pois entra com o corpo nesse (não) saber-fazer com o real, ilustrado por inúmeros artistas que demonstraram, fatidicamente, relações perturbadas com o corpo na passagem-ao-ato (como sugere uma das interpretações da última cena do filme), o sujeito, ainda que não artista, que recorre ao consultório de psicanálise, também vive com as suas perturbações que se apresentam no acontecimento de corpo, nas queixas, nos sintomas, convocando o analista a interpretar, a olhar para este corpo (“não vês que estou queimando?”), a ler as inscrições de gozo e apostar ainda no sujeito e suas invenções, para além das soluções químicas das prescrições e adições, para além do regramento comportamental sugerido aos sujeitos “atípicos” e do objeto a elevado ao zênite no discurso capitalista.
Por fim, a última cena sugere um conceito que surge na discussão, o conceito de litoral, o limite no simbólico para fazer margem ao real que se apresenta ao falasser. Um delineamento a cada leitura feita por cada um que assiste ao filme, que aprecia uma obra de arte, que se lança com seu corpo na contemplação dessa invenção com o real proposta, exposta por cada artista.