III JORNADA DA SEÇÃO NORDESTE
Cada um em seu mundo: todos delirantes? Com este tema, a III Jornada da Seção Nordeste convida-nos a investigar, mais uma vez, o não saber e os desafios da clínica contemporânea, que não se serve de um discurso preestabelecido.
Quando Lacan postula a ideia de que “todo mundo é louco, isto é delirante”,[1] a concepção lacaniana sobre a psicose muda completamente e traz importantes consequências clínicas. Jacques-Alain Miller torna “todo mundo é louco” um aforismo.[2] Com a noção de foraclusão generalizada, temos uma subversão na clínica da psicose: não há rastro da ideia do delírio como déficit simbólico.[3]
Considerar o delírio como generalizado implica que “todos os nossos discursos não passam de defesas contra o real”.[4] O delírio generalizado difere da foraclusão generalizada, que é um fenômeno que ocorre em todas as estruturas, transformado na bússola lacaniana para orientar a prática em direção ao real.
“A psicanálise permite levar em conta o real, mais além do ponto em que os discursos estabelecidos já não conseguem situar o lugar dos fenômenos.”[5]
É nesse sentido que propomos investigar a pertinência do discurso analítico e sua eficácia em um tempo em que a comunicação remete à resposta instantânea e à ausência dos corpos.
O que significa investigar quando nos orientamos pelo ensino de Lacan? Investigar “não é recriar as referências de Lacan, mas atualizá-las”.[6]
No momento atual, vemos a inteligência artificial aperfeiçoar a inteligência humana, identificar o homem com a máquina e tornar a memória um repertório inútil de dados. No que diz respeito à violência e segregação, novas normas se impõem, apresentando-se também nas escolas, invadindo brutalmente a sociedade.
Os sintomas atuais voltados para o gozo repetitivo, sem limite, prescindem do Outro, portanto, da palavra. Trata-se de um gozo fora do discurso.
De que nos servimos quando constatamos o empobrecimento da palavra como mediadora do laço social?
Lacan, em 1973, indicava consequências irrespiráveis do discurso científico para a humanidade e considerava: “a análise é o pulmão artificial graças ao qual se tenta assumir o que é preciso encontrar de gozo na fala para que a história continue.”[7] Daí podemos extrair de que modo orientar-se na clínica.
A psicanálise privilegia o ser falante, o ser no discurso. Privilegia a linguagem, e é por meio da linguagem que a experiência analítica possibilita ao falasser reconstruir a sua história, o sintoma e começar a lê-lo.
A experiência analítica permite ao analisante aprender a bem-dizer e a saber-ler.[8] Como enuncia Miller, “bem-dizer e saber-ler estão do lado do analista, é seu apanágio, seu privilégio, mas no curso da experiência bem-dizer e saber-ler transferem-se para o analisante”.[9] (Tradução livre). É a partir do saber-ler adquirido na experiência analítica que Lacan indaga: será que o uso da palavra é, por si só, suficiente? Essa indagação leva Lacan a introduzir em sua teoria a letra,[10] conceito que implica diversos aspectos da leitura do inconsciente, associando-a também ao gozo. No avesso da significação, a ordem pulsional.
A letra designa antes o traço de lalingua sobre o corpo do falasser. Essa noção de letra conduz, assim, a uma nova definição do sintoma. Ele não é mais definido como uma formação do inconsciente, retorno do recalcado, mas como um acontecimento de corpo, emergência de gozo. Nessa perspectiva, o sintoma designa o ponto em que a linguagem se enoda ao gozo, o que Lacan escreve com uma nova grafia: Sinthoma.
Esse neologismo de Lacan e o deslocamento do ponto de pertinência de sua elaboração do Outro ao Um, do Ser à Existência, do Simbólico ao Real,[11] têm consequências na abordagem do sofrimento humano. Pela via do sinthoma, como podemos ler a relação do falasser com o mundo?
A clínica do sinthoma amplia o conceito de sintoma, herdado de Freud, passível de ser dissolvido, eliminado, ao incluir nele os restos sintomáticos. O sinthoma é o nome do incurável,[12] que delimita relações inéditas entre significante e gozo, bem como modos borromeanos de amarração dos registros real, simbólico e imaginário.
O acontecimento de corpo, posto em uma dimensão política, também incrementa a atualização das referências de Lacan. Para Éric Laurent, ao centrar a perspectiva do inconsciente político “sobre o acontecimento de corpo e não sobre uma identificação, aceitamos seguir na zona em que o sujeito se mantém fora da garantia do ‘complexo de Édipo’.”[13]
A conversação sobre o analista e a segregação no XXIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano relança a noção de acontecimento de corpo em nosso contexto social. “O que o acontecimento de corpo tem de político?” Nessa direção, indaga-se o que Um corpo tem ainda de coletivo. E mais: “O que há de político no acontecimento de corpo?”[14] O destaque aqui é dado ao que ele tem de político, e não de seus efeitos políticos.
O que está em jogo na política lacaniana se nos referirmos a ela como acontecimento de corpo? Como situar a noção de acontecimento de corpo à luz do delírio generalizado?
Convidamos cada um a trazer seu “grão de loucura” para contribuir com a discussão sobre corpo, gozo e suas “potencialidades delirantes”.[15]
Maria Eliane Neves Baptista
Susane Vasconcelos Zanotti
REFERÊNCIAS
BRODSKY, Graciela. A loucura nossa de cada dia. Opção Lacaniana, v. 4, n. 12, 2013.
LACAN, Jacques. Déclaration à France-Culture à propôs du 28e Congrès de Psychanalyse. Paris: Le Coq-Héron., 1973.
LACAN, Jacques. L’instance de la lettre dans l’inconscient ou la raison depuis Freud. In: LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 2001.
LACAN, Jacques. Transferência para Saint Denis? Correio, Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, p. 31-32, 2009.
LAURENT, Éric. O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. .
LAURENT, Éric. Cómo se enseña la clínica. Buenos Aires: Instituto Clínico de Buenos Aires, 2007.
MILLER, Jacques-Alain. Clínica irônica. In: MILLER, Jacques-Alain. Matemas I. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1996.
MILLER, Jacques-Alain. Coisas de fineza em psicanálise. Aula de 12 de novembro de 2008.
MILLER, Jacques-Alain. Ler um sintoma. In: Opção Lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 70, 2015.
MILLER, Jacques-Alain. Lire un symptôme. Mental: Revue Internationale de Psychanalyse, n. 26, june 2011. .
SKRIABINE, Pierre. Do sintoma ao sinthoma. Agente: Revista de Psicanálise, n. 8, Salvador, Escola Brasileira de Psicanálise, abr. 2003. Disponível em: http://www.institutopsicanalisebahia.com.br/agente/download/agente008_seminario003.pdf.
VIEIRA, Marcus André; CASTRO, Helenice de. Acontecimentos políticos de corpo: o analista e a segregação. Correio, n. 90.