Fernanda Vasconcellos
Se ampliamos o inconsciente – indo além das cadeias significantes e alcançando os afetos enigmáticos – incluiremos os acontecimentos de corpo, que não possuem a mesma estrutura das formações do inconsciente. Os acontecimentos de corpo possuem sentido de gozo, enquanto as formações do inconsciente possuem sentido de desejo. Aponta-se aqui para a distinção entre linguagem e lalíngua, destacando-se a importância do percurso de uma análise em se haver com o nível de lalíngua e com os afetos singulares que engendram no corpo. A conexão do sujeito com o corpo impõe sua presença na análise na medida em que o corpo é lugar de gozo [1].
O corpo humano, em seus primórdios, é pura substância gozante; são pedaços de gozo que se engendram a partir do encontro com o significante, que faz vibrar o corpo através de sua sonoridade – não do seu significado – e deixa de ser significante, passando a existir como gozo, o gozo Um.
O significante funda o Campo Uniano, do Um sozinho, através do mecanismo de sua mutação em gozo. “Nesse acontecimento de corpo, inaugural, o corpo biológico vivo torna-se vida humana” [2]. O significante, então, não é mais uma palavra que vem do Outro, mas uma sensação que surge de si mesmo, do próprio corpo. Um recém-nascido pode escutar de seu cuidador, ao trocar sua fralda, que ele é o bebê mais lindo do mundo, enquanto o que sente em seu corpo é o ardor do bumbum assado. Trata-se de duas materialidades que se encontram: a materialidade sonora do significante, sem sentido, e a materialidade do corpo biológico. Desse encontro, se faz o corpo humano. A partir do Um, este se apaga e dá lugar a uma falta, o zero, conjunto vazio que dele pode se desenvolver a série dos números: 1, 2, 3… A cada +1 há algo do Um inaugural que faz ressonância. Essa perspectiva muda a direção da clínica, em que começa o que Miller nomeia do último ensino de Lacan. Este problematiza o conceito de normalidade, questiona a possibilidade de cura e expande o campo para outras expressões sintomáticas a partir da foraclusão generalizada. Aqui, há uma passagem do efeito de sentido para o efeito de furo [3].
Na clínica do Um, a transferência é ao real e se abre quando o analista, no início da análise, se deixa atrair por um ponto de real, uma raiz de gozo que se inscreve como sinthoma no exato momento do acontecimento de corpo. “Esse real está presente naquilo que, já no campo da linguagem, se oferece à leitura como o significante da transferência” [4].
A partir da breve exposição, abrem-se muitas questões: o acontecimento de corpo permanece imutável? Como na clínica pode-se ler o sintoma enquanto acontecimento de corpo? O que uma análise permite deslocar do gozo engendrado pelo acontecimento de corpo?