Bibliografia

Comissão de referências: Bibiana Poggi (coordenadora), Cynthia Medeiros, Juliana Teixeira, Késia Ramos, Roberta Gusmão, Suele Conde e Zaeth Nascimento.

III Jornada da Seção Nordeste

“Cada um em seu mundo: todos delirantes?”

O tema da III Jornada da Seção NE “Cada um em seu mundo: todos delirantes?” animou a comissão de referências a criar laços de trabalho para se dedicar à pesquisa das referências epistêmicas em Freud, Lacan e autores do Campo Freudiano, que aqui serão publicadas.

Tomamos, como primeiro passo, indagar os conceitos fundamentais propostos pelo argumento da Jornada para, em seguida, destacar as referências que orientarão as investigações de cada um.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – 1ª Remessa

EIXO 1:

Como situar a noção de acontecimento de corpo à luz do conceito de delírio generalizado?

 

 

“A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão inaugura uma teorização mais explícita do primeiro dualismo pulsional, o qual é explicitado à luz do conflito psíquico inerente ao impasse histérico”

“Na perturbação psicogênica da visão provocada pelo recalque da pulsão escopofílica, por exemplo, o que se coloca é uma espécie de ação punitiva que perturba a relação da visão com o ego. Já que o indivíduo se serviu da visão de forma indevida, é apropriado que ela não enxergue mais nada”

Freud, S. (1910). A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão. In. Freud, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol. XI , p. 202.

 

“Deixemos o sintoma no que ele é: um acontecimento de corpo, ligado a que: a gente o tem, a gente tem ares de, a gente areja a partir do a gente o tem. Isso pode até ser cantado, e Joyce não se priva de fazê-lo.

“Foi para não perdê-lo, esse pulo de sentido (bond du sens), que enunciei agora que é preciso sustentar que o homem tem um corpo, isto é, que fala com seu corpo, ou, em outras palavras, que é falasser por natureza”.

Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”. In Outros escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 562 – 565.

 

“É preciso diferenciar o sintoma como formação do inconsciente, decifrável e revelador do desejo inconsciente, do sinthoma acontecimento de corpo, que sobressai do registro de um gozo indecifrável, “gozo opaco, por excluir o sentido”

Lacan, J. “Joyce, o Sintoma”. In Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 566.

 

“(…) torno a fórmula todo mundo é louco um princípio, que afirma ser radical a inadequação do real e do mental e que, do real, só se pode dizer falso, só se pode mentir.”

Miller, J.-A. (2008-2009) “Coisas de fineza em psicanálise” – Orientação lacaniana III, 11. Seminário inédito, aula de 12/11/2008.

 

“(…) o corpo, como corpo falante, muda de registro. O que é o corpo falante? Ah, é um mistério, disse Lacan um dia. Esse dito de Lacan deve ser ainda mais mantido pelo fato de que mistério não é matema, é até mesmo o oposto. Em Descartes, o que faz mistério, mas permanece indubitável, é a união da alma com o corpo (…)”.

“(…) Na distinção entre o corpo e a carne, o corpo se mostra apto para figurar, como superfície de inscrição, o lugar do Outro do significante. Para nós, o mistério cartesiano da união psicossomática se desloca. O que faz mistério, mas permanece indubitável, é o que resulta do domínio do simbólico sobre o corpo. Para dizê-lo em termos cartesianos: o mistério é sobretudo o da união da fala com o corpo. Por esse fato de experiência, pode-se dizer que ele é do registro do real.”

 

“O falasser tem de se haver com seu corpo como imaginário, assim como tem de se haver com o simbólico. O terceiro termo, o real, é o complexo ou o implexo dos dois outros. Trata-se do corpo falante com seus dois gozos, gozo da fala e gozo do corpo: um leva ao escabelo, o outro sustenta o sinthoma.”

Miller, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. Conferência pronunciada por ocasião do encerramento do IX Congresso da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), em 17 de abril de 2014, apresentando o tema de seu X Congresso.

 

“Ler um sintoma visa o choque inicial, visa reduzir o sintoma à sua fórmula inicial, isto é, ao encontro material de um significante com o corpo, quer dizer, ao choque puro da linguagem sobre o corpo”.

[É] “visar, ‘para além’ da fixidez do gozo, a opacidade do real”.

Miller, J.-A. Ler um sintoma. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 70, 2005, p. 21.

 


EIXO 2:

Pela via do sinthoma, como podemos ler a relação do falasser com o mundo?

 

 

1.

“Trata-se da falta, o sin, e é uma vantagem que meu sinthome comece com ele. Em inglês, quer dizer pecado, a falta primordial. Daí a necessidade de que não cesse a falha que sempre aumenta, exceto ao sofrer o cessa da castração como possível”.

Lacan, J. (1975-76). O Seminário. Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 2007, p.14. 

 

2.

“Isso na medida em que, no sujeito que se sustenta no falasser, que é o que designo como inconsciente, há a capacidade de conjugar a fala e o que concerne a um certo gozo, aquele dito do falo,  experimentado como parasitário, devido a essa própria fala, devido ao falasser”

Lacan, J. (1975-76). O Seminário. Livro 23: o sinthoma.  Rio de Janeiro:  J. Zahar Editor, 2007, p. 55.

 

3.

“Analisar o falasser é o que já fazemos; resta-nos saber dizê-lo. Aprendemos a dizê-lo, por exemplo, quando falamos do sintoma como um sinthoma. Aí está uma palavra, um conceito que é da época do falasser. Ele traduz um deslocamento do conceito de sintoma, do inconsciente ao falasser. Como vocês sabem, o sintoma como formação do inconsciente estruturado como uma linguagem é uma metáfora, um efeito de sentido induzido pela substituição de um significante por outro. Em contrapartida, o sinthoma de um falasser é um acontecimento de corpo, uma emergência de gozo. O corpo em questão, aliás, nada diz que é o de vocês. Você pode ser o sintoma de outro corpo desde que você seja uma mulher. Há histeria quando há um sintoma de sintoma, quando você faz sintoma do sintoma de um outro, ou seja, um sintoma em segundo grau. O sintoma do falasser resta, sem dúvida, a ser esclarecido em sua relação com os tipos clínicos – apenas evoco, sobre os rastros de Lacan, o que acontece na histeria”.

Miller, J.A. (2016). Apresentação do tema do X Congresso da AMP, no Rio, em 2016. O inconsciente e o corpo falante. Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise, p. 26-27. 

 

4.

“Portanto, este não é um acréscimo feito por Lacan ao situar Joyce como desabonado do inconsciente. Dizer que Joyce é desabonado do inconsciente é a mesma coisa que dizer que ele é a encarnação do sinthoma. Ele é a encarnação do que há de singular em cada indivíduo. E, eventualmente, esse sinthoma é tão singular a Joyce, que não chega a comunicar. Foi nesse sentido que Joyce o inspirou, uma vez que ele dá, diz Lacan, o aparelho, a essência, a abstração do sinthoma. Isso passa por uma abolição do símbolo e do sintoma no primeiro sentido. Há algo radical em a cada um seu sintoma que se afasta de toda simpatia, de toda ligação comunicacional, de toda generalidade, e que convida a apreender cada um como Um absoluto, isto é, separado”.

Miller, J.A. (2010). Perspectivas do Seminário 23 de Lacan. O Sinthoma. Rio de Janeiro:  J. Zahar Editor, p. 141. 

 

5.

“Nessa perspectiva, podemos acompanhar o que Lacan propõe no Seminário 25 ‘O Momento de Concluir´, como sendo o imaginário a possibilidade de abordarmos o real. Sendo o simbólico inadequado ao real, resta-nos, na hiância que permanece entre imaginário e real, imaginá-lo. Ele diz que há uma inibição em enfrentar essa hiância, porém…´Se não vamos em direção a essa distância entre o imaginário e o real, ficamos sem recurso…

Ou seja, resta-nos tecer o real a partir de pequenos pedaços, fiapos, peças soltas que constituem o falasser e determinam um gozo fora do sentido”.

Silva, R. F. (2016). Resposta ao comentário… Opção Lacaniana, São Paulo, n. 74, 2016, p. 38. 

 


EIXO 3:

O que está em jogo na política lacaniana se nos referirmos a ela como acontecimento de corpo?

 

 

1.

“A causa analítica é indissociável de sua dimensão política, negar o inconsciente e sua marca singular tem um efeito desumanizante, a descoberta freudiana eleva o humano à dignidade do sujeito.”

 

Miller-Rose, È. “Tão difícil quanto raro”. In Miller, J-A.; Alberti, C. (Org.) Lacan redivivus. Rio de Janeiro: Zahar, 2022, p. 360.

2.

“La primera historia, la historia de los três prisioneiros, no es uma historia clinica, es uma historia política.”

Miller, J.-A. Los usos del lapso. Los cursos psicoanalíticos. Buenos Aires: Ed. Paidós, 2004, p. 415.

 

3.

“Se disse que escuchar es una política, un medio de dominación, ya nada más comum, incluso cuando se interpreta lo que se escucha, cuando lo que se disse se interpreta como significando outra cosa, significando más, significando algo que está dejado de lado.”

Miller, J-A. Todo mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015, p. 333.

4.

“Es la política lacaniana: aguardo, es decir observo, no fuerzo las cosas, siguen su curso. Pero no espero nada, así no me decepcionaré. Es la grand fórmula de la política lacaniana.”

Miller, J.-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2013, p.93.

 

5.

“Se pensarmos no Nome-do-Pai a partir do Witz, veremos, ao contrário, que ele vai ao encontro do sujeito e de sua invenção. Sobre esse modo de entender o Nome-do-Pai, Lacan havia formulado em outro lugar a ideia de uma política do Witz. Com efeito, o Witz pode suportar muito ou pouco uma política.”

Miller, J.-A. Perspectivas do Seminário 5 de Lacan. Rio de Janeiro: Zorge Zahar, 1999, p. 40.


6.

“Decifrar, portanto, o Outro que é o Outro simbólico; enquanto efeito da língua. Podemos dizer que se trata de um dever de saber. É a primeira relação que o analista tem com a política.”

Brousse, M-.H. O Inconsciente é a Política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018, p. 18.

7.

“Não há indivíduo numa análise, não é a política do indivíduo é a política do sujeito que interessa numa análise”.

Brousse, M-.H. O Inconsciente é a Política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018, p. 28.

8.

“Os analistas não têm lições a dar aos cidadãos. Ou melhor, não há nada que os autorizaria a ter uma opinião mais esclarecida que a dos economistas, dos políticos, dos cidadãos de um modo geral. Por outro lado, enquanto analistas eles têm que ter uma política da psicanálise. Em primeiro lugar, eles devem tomar partido, têm de se engajar e, em segundo, fazer com que a psicanálise seja possível e continue sendo. (…). Sua tarefa fundamental é a de elaborar uma política para a psicanálise, a partir de seus próprios fundamentos.”

Brousse, M-.H. O Inconsciente é a Política. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018, p.55-56.

Cada um em seu mundo: todos delirantes?” 

Referências bibliográficas – 2ª Remessa

 


Aproxima-se a III Jornada da Seção NordesteCada um em seu mundo: todos delirantes? Nesta publicação, a Comissão de Referências apresenta a continuidade de sua pesquisa acerca das bibliografias relacionadas aos três eixos temáticos, colaborando com a investigação de cada um.

Boa leitura!


Eixo 1: Como situar a noção de acontecimento de corpo à luz da noção de delírio generalizado? 

 

 

“É preciso diferenciar o sintoma como formação do inconsciente, decifrável e revelador do desejo inconsciente, do sinthoma acontecimento de corpo, que sobressai do registro de um gozo indecifrável, ‘gozo opaco, por excluir o sentido’” 

Lacan, J. (1976). Joyce, o Sintoma. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 566. 

“O homem está capturado pela imagem de seu corpo. Este ponto explica muitas coisas e, em primeiro lugar, o privilégio que têm dita imagem para ele. Seu mundo, se é que esta palavra tem algum sentido, seu Umwelt, o que o rodeia, ele o corpo-reifica, o faz coisa à imagem de seu corpo. Não tem a menor ideia, certamente, do que acontece neste corpo. Como sobrevive um corpo? Não sei se isto chama a atenção de vocês, nem que seja um pouco — se vocês se têm um arranhão, pois bem, isso se conserta. É tão surpreendente, nem mais nem menos, quanto o fato de que a lagartixa que perde seu rabo o reconstitui. É exatamente da mesma ordem” 

Lacan, J. (1975). Conferência em Genebra sobre o Sintoma. São Paulo: Opção Lacaniana, n. 23, dez. 1998, p. 3. 

 

“Digo que o saber afeta o corpo do ser que só́ se torna ser pelas palavras, isso por fragmentar seu gozo, por recortar este corpo através delas até produzir as aparas com que faço o (a), a ser lido objeto pequeno a (…) ou ainda, a (a)causa primária de seu desejo”

Lacan J. (1971-72). Ou pior. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 548

 

“Si bien la escucha es cada vez más popular, hoy en día la interpretación lo es mucho menos. Es el sentido del positivismo de nuestra época wokista: ‘Soy lo que digo y punto, ninguna otra cosa’. Se trata aquí, evidentemente, de un peligro mortal para el psicoanálisis. En una conversación en la librería Mollat de Bordeaux, el otoño pasado, Jacques-Alain Miller observaba que el mejor obstáculo ante dicho positivismo era la existencia de cierto real, aquel que Lacan llamaba ‘la astilla en la carne’ en su texto ‘Juventud de Gide’. En efecto, aunque podamos jugar a ignorar, o inclusive a borrar el texto del inconsciente, no podemos hacer lo mismo con el goce al que el inconsciente responde. Al estar alojada en el cuerpo, y no en la memoria, una astilla no se deja olvidar, ya que no cesará de atormentar hasta que no sea extraída” 

Hellebois, P. La astilla en la carne de Gide (2023). Virtualia, Revista Digital de La EOL. Año XVII, Mayo. n. 42. 

 

“Então o sintoma é o acontecimento que vem afetar aquele corpo, que vem afetar o escabelo e vem mostrar sua trama, sua lógica. É nesse sentido que Lacan fala de Joyce dizendo que ele ‘é sintomato-logia’ [symptomato-logie]; de fato, na sua escrita e na sua vida, ele atualiza a lógica do sintoma, ‘contornando a sua reserva’ de escabelo, ao mesmo tempo que o torna um pedestal. 

Esse sintoma é o fundamento de uma nova clínica, que é a dos efeitos corporais da linguagem – efeitos produzidos na consistência imaginária do corpo, em sua trama simbólica, em suas epifanias reais. Esses sintomas, que chamamos de novos, devem ser construídos no tratamento como um acontecimento de corpo de gozo, que são os únicos acontecimentos verdadeiros da vida, na vida de um homem”. 

Roy, D. (2021). O que chamamos de “Acontecimento de Corpo”?. Disponível em: <<https://clipp.org.br/atualidades-psicanaliticas-33/>> Acessado em 17 out 2023. 

 

“Pensar no delírio generalizado implica partir do UM. O Outro não existe. O S2 abre, então, um discurso sempre delirante, pois fala ‘do que não há’, da inexistência da relação sexual, de uma significante pura existência; um sem-sentido original. As consequências são cruciais. Trata-se de um giro de 180 graus. O sentido do tratamento não é mais o sentido que vai do Simbólico na direção do Imaginário, mas parte do Sem-sentido que se orienta do Simbólico ao Real. Lacan pode, assim, formular que ‘todo mundo é louco, ou seja, delirante’”.

Horne, B. (2017). O UM e a Foraclusão Generalizada –Boletim n04 da XXII Jornada EBP-BAHIA, set. 2017 

 


Eixo 2: Pela via do sinthoma, como podemos ler a relação do falasser com o mundo? 

 

 

“A distinção nítida entre neurose e psicose, contudo, é enfraquecida pela circunstância de que também na neurose não faltam tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra que esteja mais de acordo com os desejos do indivíduo. Isso é possibilitado pela existência de um mundo de fantasia, de um domínio que ficou separado do mundo externo real na época da introdução do princípio de realidade” 

Freud (1924). A perda da realidade na neurose e na psicose. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 2006, Vol XIX, p. 208. 

 

“Não haver equivalência é a única coisa, o único reduto no qual se suporta o que chamamos de relação sexual no falasser, no ser humano” 

Lacan, J. (1975-76). O Seminário Livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 98.

 

“Pelo fato mesmo de que o corpo é falante, daí decorre que ele se encontra em dificuldade com seu gozo: este lhe é opaco, apresenta-se sempre como um excesso. No ser humano, ou falasser, o gozo é sempre como um sintoma do corpo, como um real: não está tudo bem” 

Miller, J. A. (2022). Comentário sobre a terceira. In: Lacan, J.; Miller, J-A. A terceira; Teoria de lalíngua. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, p. 70. 

 

“A teoria do gozo deve ser, ela também, desedipianizada. Segundo ela, o que nos é dado como gozo não convém à relação sexual. É nisso que o gozo faz sinthoma. O sinthoma de Lacan é o sintoma, simplesmente generalizado. É o sintoma, uma vez que não há pulsão sexual total. Isso constitui sintoma, mas um sintoma irremediável. Por isso, ao longo dessa série de gozo substitutiva, ocorre uma metonímia. As maravilhosas transformações da libido que Freud pôde detalhar encontram aqui o seu lugar: simplesmente, elas não terminam, não se fecham numa totalidade unitária. Nesse sentido, se lhe retiramos sua referência originária, o gozo está por toda a parte no significante: há um gozo da fala que faz parte no significante: há um gozo da fala que faz parte da metonímia dos gozos substitutivos; há um gozo do saber; há um gozo do proibido. Há também um gozo de pensamento, assim como há o gozo do corpo. (…) não há nada que entre na esfera do interesse do falasser no qual não possa identificar um gozo. Parafraseando Leibniz, poderíamos dizer: nada é sem gozo”

Miller, J-A. (2011). Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan: entre desejo e gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, p. 212-213.

 

“O sinthoma desloca a referência à linguagem para lalíngua e a consequência desse deslocamento é que Lacan passa a ocupar-se menos dos efeitos de sentido. A cisão entre lalíngua e a linguagem separa o efeito de sentido do afeto. O sinthoma é um acontecimento de corpo que permite experimentar a presença de um gozo que exclui o sentido. Essas coordenadas ressignificam uma concepção: que a psicanálise servia somente para que o afeto fosse submetido a um efeito de sentido. Funda-se, assim, uma prática orientada pelo real que se inscreve no que Miller chamou de uma teoria do incurável ao reconfigurar o estatuto clássico o sintoma” 

Zack, O. (2018). Scilicet: As psicoses ordinárias e as outras — sob transferência. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, p. 338.

 


 

Eixo 3: “O que está em jogo na política lacaniana se nos referirmos a ela como acontecimento de corpo?” 

 

 

“Se Freud escreveu em algum lugar, que ‘a anatomia é o destino’ há aí talvez um momento onde, quando se voltar a uma sã percepção do que Freud nos descobria, se dirá não digo mesmo a ‘política é o inconsciente’, mas simplesmente, o inconsciente é a política!” 

Lacan, J. (1966-67). Seminário: Livro 14: A lógica da fantasia. Recife, 2008, p. 350.

 

“O analista é ainda menos livre naquilo que domina a estratégia e a tática, ou seja, em sua política, onde ele faria melhor situando-se em sua falta-a-ser do que em seu ser”

Lacan, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 596.

 

“Eu não quero dizer que o político é o psicanalista. Platão, precisamente com o político, começa a fazer uma ciência da política, e Deus sabe onde isso nos levou depois. Mas para Sócrates, o bom político é o psicanalista” 

Lacan, J. (1954 – 1955). O seminário Livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanalise. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, p. 31. 

 

“A definição do inconsciente pela política tem raízes profundas no ensino de Lacan. ‘O inconsciente é a política’ é um desenvolvimento de ‘O inconsciente é o discurso do Outro’. Essa relação com o Outro, intrínseca ao inconsciente, é o que anima desde o início o ensino de Lacan. É a mesma coisa quando estabelece que o Outro é dividido e não existe como Um. ‘O inconsciente é a política’ radicaliza a definição do Witz, do chiste como processo social que tem seu reconhecimento e sua satisfação no Outro, enquanto comunidade unificada no instante de rir. A análise freudiana do Witz justifica o fato de Lacan articular o sujeito do inconsciente a um Outro, e qualificar o inconsciente como transindividual. É possível passar de ‘o inconsciente é transindividual’ para ‘o inconsciente é político’, desde que fique claro que esse Outro é dividido, que ele não existe como Um”

 

Miller, J-A (2011). Intuições milanesas. Opção lacaniana online. Nova série. ano 2, n. 5, jul, p. 6-7. Disponível em: <<http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intuições_milanesas.pdf>>. Acessado em 17 out 2023. 

 

“Tomei como ponto de partida uma proposição de Lacan retirada do seu Seminário ‘A lógica da fantasia’, que encontrei um pouco antes da minha saída em uma espécie de psicopatologia da vida política que acaba de ser publicada aqui. Eis a proposição: ‘Não digo ‘a política é o inconsciente’, mas simplesmente ‘o inconsciente é a política’” 

 

Miller, J-A. (2011). Intuições milanesas. Opção lacaniana online. Nova série. ano 2, n. 5, jul, p. 2. Disponível em: <<http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_5/Intuições_milanesas.pdf>>. Acessado em 17 out 2023. 

Cada um em seu mundo: todos delirantes?” 

Referências bibliográficas – 3ª Remessa

 


Com a publicação da terceira remessa bibliográfica, chega-se ao momento final do trabalho desta comissão. Trabalho que levou seus integrantes a se debruçarem sobre títulos de autores do Campo Freudiano, a fim de destacar indicações e citações com o intuito de auxiliar na pesquisa e produções dos textos, em torno da temática proposta para a III Jornada da Seção NE – Cada um no seu mundo, todos delirantes?


Eixo 1: Como situar a noção de acontecimento de corpo à luz da noção de delírio generalizado? 

1.

“No processo de uma análise, podemos constatar na clínica que o corpo surge em suas três dimensões: imaginária, simbólica e real. Sigmund Freud ressalta a importância de o analista se atentar para como o corpo se apresenta durante a sessão. Freud ouviu a “participação na conversa” que as pernas de sua paciente, Elizabeth Von R, tiveram durante a sessão (Freud, 1893-1895/1996, p. 173). Suas pernas doíam e, segundo ele, a dor despertada persistia enquanto a paciente estivesse sob a influência da lembrança traumática. Lacan reforça esse ensinamento ao dizer que “as dores que reaparecem, que se acentuam, que se tornam mais ou menos intoleráveis durante a própria sessão, fazem parte do discurso do sujeito […]” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 337).

FREUD, S. (1996). Estudos sobre a Histeria. In S. Freud. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 2). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1893-1895)

LACAN, J. (1999). O Seminário. Livro 5: As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, (Obra original publicada em 1957-1958).   

 

2.

“A expressão “acontecimento de corpo” como definidor do sintoma encontra-se no texto que Lacan propiciou para as Atas do Simpósio Joyce em 1975, sob o título de “Joyce o sintoma”. 

“Deixemos o sintoma no que ele é: um acontecimento de corpo, ligado a que: a gente o tem, a gente tem ares de, a gente areja a partir do a gente o tem. Isso pode até ser cantado, e Joyce não se priva de fazê-lo” (Lacan, 2003, p. 565).

LACAN J., Outros escritos, Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

3.

”O alargamento do conceito de delírio das reformulações de Lacan sobre a linguagem, o gozo e o corpo estão presentes no artigo de Pascale Fari, no qual a linguagem como distúrbio do real explica o delírio generalizado.”

FARI, P. Lalíngua. In: MACHADO, O.; RIBEIRO, V. A. (Org.). Scilicet: o real no século XXI. Belo Horizonte: Scriptum/Escola Brasileira de Psicanálise, 2014.

 

4.

“Quando dizemos “corpo vivo”, descartamos este corpo simbolizado, assim como o corpoimagem. Nem imaginário, nem simbólico, mas vivo, eis o corpo que é afetado pelo gozo. Nada cria obstáculo ao fato de situarmos o gozo como uma afetação do corpo, e a questão é a de dar sentido a este adjetivo que não podemos elidir, “vivo”, que tem para nós, evidentemente, bem menos precisão do que o adjetivo imaginário ou o adjetivo simbólico.”

MILLER, JA. (2000[2004]) “Biologia Lacaniana e acontecimento de corpo” São Paulo, Opção Lacaniana n 41, p.18 

5.

“O sintoma opera de modo selvagem. O que não cessa de se escrever no sintoma resulta disso […] a repetição do sintoma é esse algo do qual acabo de dizer que de modo selvagem é escrita” (LACAN, 1974-1975). “O selvagem remete ao gozo do acontecimento de corpo, é um gozo contingente que se escreve recortando-se de lalíngua e, além disso, é um gozo sem Outro” p.33

“Esse é o acontecimento de corpo que se produz no troumatisme: a inscrição da letra e de sua borda, que instaura a compulsão à repetição do sintoma e a escrita selvagem do sintoma. Essa inscrição, essa marca que se repete, é um acontecimento de corpo” p. 35

ALVARES BAYON, P. Três versões do Um e acontecimento de corpo. Curinga 53-54. p. 33 e 35

6.

“O aforismo “Todo mundo é louco” não diz respeito a todos os seres da Terra, mas unicamente aos seres falantes que obedecem como podem ao código da linguagem e que estão imersos em um discurso que cria laço social […]

A loucura constitui assim uma defesa universal e estrutural do ser falante contra o real. Ela se apoia no Outro, mesmo se ela se instala diferentemente em cada estrutura.”

 CAROZ,G. O grau zero da loucura. Disponível em: <<https://congresamp2024.world/pt-br/o-grau-zero-da-loucura/


Eixo 2: Pela via do sinthoma, como podemos ler a relação do Falasser com o mundo? 

1.

“É no simbólico, na medida em que é lalíngua que o suporta, que o saber inscrito de lalíngua – que, falando propriamente, constitui o inconsciente – se elabora, ganha do sintoma. Isso não impede que o círculo marcado com o S não corresponda a algo desse saber que jamais será reduzido. Isto é, a saber, a Urverdrängt de Freud, ou seja, o que, do inconsciente, nunca será interpretado”.

Lacan, J. (2022). A Terceira: Teoria de Lalíngua. Rio de Janeiro: Zahar, p. 55.

2.

“Chamo aqui de esquizofrênico o sujeito que não evitaria o real. E o falasser [parlétre] “para quem o simbólico não serve para evitar o real, porque esse simbólico é, ele mesmo, real. Se não há discurso que não seja de semblante, há um delírio que é do real, e trata-se do delírio do esquizofrénico. E daí que se pode construir o universal do delírio” 

Miller, J. A (1996), Matemas I: Clínica Irônica, Jorge Zahar Ed: Rio de Janeiro, p. 192.

3.

“Ler um sintoma […] consiste em privar o sintoma de sentido. É inclusive por isso que no aparelho de interpretar de Freud – que o próprio Lacan havia formalizado, havia clarificado, isto é, o ternário edipiano – Lacan substituiu por um ternário que não faz sentido, o do Real, do Simbólico e do Imaginário. Mas ao deslocar a interpretação do enquadre edipiano para o enquadre borromeano, é o próprio funcionamento da interpretação que muda e passa da escuta do sentido à leitura do fora de sentido”.

Miller, J. A. (2023). Ler um sintoma. https://ebp.org.br/nordeste/jornadas/2023/ler-um-sintoma/

 

4

.“Dado que o rechaço do gozo se produz em todos os casos, a questão é: o que domestica o gozo? A resposta é o sinthoma; é ele que realiza essa contenção, que domestica o gozo. Por isso a função do pai é a função do sinthoma, axioma do último ensino de Lacan, no qual o que importa não é tanto o Nome-do-Pai, mas o que domestica o gozo”.

Graciela Brodsky (2012), A loucura nossa de cada dia.

 

5.

“A ampliação do conceito de psicose não se confunde com a generalização da nossa loucura ordinária […] Levando-se em conta essa distinção, não podemos deduzir do aforismo “todo mundo é louco” nenhuma patologização ou despatologização generalizada. Mas podemos extrair do mesmo duas proposições: a primeira afirma que todo discurso normativo é delirante, incluindo o que se apoia no Nome-do-Pai; a segunda, que se deduz da primeira, afirma que todo falasser inventa à sua maneira uma forma singular e única de dar consistência ao que não tem consistência e de remendar o que se apresenta como o verdadeiro furo, S(Ⱥ)”.

Alvarenga, E. (2023). “Diagnosticar e Despatologizar”. https://www.jornadaebpmg.com.br/2023/textos/eixo-2-diagnosticar-e-despatologizar/

 


Eixo 3: “O que está em jogo na política lacaniana se nos referirmos a ela como acontecimento de corpo?”

1.El mensaje de Freud quedó pues como um extraño memento que él legó a la posteridade, a quienes tomaban el relevo de su descubimiento y de su práctica, para que se sepa que seguimos enlazados a la religión, que hay algo de la religión que no cesa de escribirse. Cómo desconorcelo hoy, cuando la creencia religiosa baña la politica de múltiples maneras?

MILLER, J-A. In.: Um esfuerzo de poesia. 2016, p. 264

 

2.

”O sujeito está primeiramente dividido pelo fato de falar, pelo fato de falar a alguém, e esse direcionamento já faz com que a multidão se apresse a escolher um chefe. É por isto que é errôneo opor o social e o indivíduo. O indivíduo não se opõe à multidão, mas, porque o sujeito está dividido, procura na massa uma solução para a sua divisão. Por esta razão, a massa é a pior alienação que encontra, mas é ele próprio, porque fala, quem produz a multidão onde se aliena. É porque está alienado ao que ignora em sua própria fala que o sujeito cria uma multidão que começa por dois. A oposição do indivíduo e do político é ainda um efeito de sua alienação, o apoliticismo como oposição do indivíduo ao social é a consequência derradeira da alienação.”

POMMIER, G. In.: Freud Apolítico?1989, p. 21

 

3.

”O indivíduo não é oponível ao político originalmente, pois já é o resultado de um processo; é contemporâneo da massa.  Tal ponto de vista significa que há algo antes do indivíduo e da massa, que convém considerar como um par indissolúvel. Esse par implica o lugar virtual do ideal do chefe, ocupado praticamente por quem quer que seja. O que o grupo deve preservar para que os indivíduos que o constituem mantenham sua consistência é, senão o chefe, pelo menos o ideal do Eu. Assim, uma nação pode manter sua coesão graças a um de seus escritores, à sua religião, a suas referências culturais em geral. Quando esse ideal do Eu é destruído em diversas circunstâncias históricas, um povo sem dúvida atinge a maior miséria que possa imaginar.”

POMMIER, G. In.: Freud Apolítico?1989, p. 22-23