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A Psicanálise e um novo programa civilizatório
Oscar Raymundo
 

Agradeço a Jésus pelo convite, que rapidamente aceitei, para falar, brevemente, de uma experiência passada que hoje ameaça atualizar-se sob a aparência de jogo democrático.

“Algo terá feito”. “Tinha ideias raras”. Eram frases repetidas com ódio e convencimento inabalável perante o fuzilamento na rua ou perante o sequestro e desaparecimento de pessoas durante os anos da ditadura cívico-militar de 1976 a 1983, na Argentina. Eram tempos em que só era permitida a submissão ao discurso do amo ditador. Também eram tempos nos quais os consultórios de muitos analistas, e não só de analistas, tinham se tornado um refúgio onde tratar o medo a perder a vida por pensar e sentir diferente.

Passaram vários anos para que o desejo de democracia, de alguns, se impusesse ao medo e à autocensura, de muitos, que o terrorismo de estado conseguira instalar. Durante os anos de ditaduras anteriores e mesmo durante o desastrado governo popular que antecedeu o golpe de estado de 76, tinha sido produzida uma multidão que tendo ido bater às portas dos quartéis em busca de uma mão dura que impusesse ordem, era incapaz de diferenciar-se da moral dos ditadores. Uma multidão que não tendo a democracia como valor, aceitava e cumpria ordens sem questionar, dentre elas, a ordem de denunciar quem parecia suspeito de oposição à ditadura militar.

Os torturadores eram considerados, pela multidão, homens comuns, normais, soldados obedientes às ordens dos seus superiores e, desse modo, vimos o mal tornar-se banal, o gozo do extermínio tornar-se banal. A satisfação experimentada por “não andar em política”, “não ter ideias raras”, “não estar em nenhuma lista negra”, dava lugar à banalização da própria política. Assim, a política ficava impregnada por elementos que, na tradição democrática, não eram considerados como pertencentes ao campo político. O ódio constituía-se em um fator chave dessa forma de se fazer a política.

Hoje, no Brasil, vemos surgir esta racionalidade que, a modo de projeto civilizatório, impulsiona, de modo perigosamente delirante, o ódio não só aos que não se encaixam no projeto do empresariado neoliberal, mas acrescenta um novo repertório de bodes expiatórios. Hoje entraram na lista dos repudiáveis aqueles marginalizados que já faz algum tempo vêm manifestando seu desejo de cidadania. Hoje, o delírio de pureza da espécie assinala novos inimigos e organiza uma grande parte da sociedade em torno do ódio as “impuros”. E não são, precisamente, os “impuros”, esses que não se encaixam nos ideais do amo da vez, os que nos procuram?

Muitas vezes repetimos que a psicanálise precisa da democracia para se desenvolver e continuar viva e, às vezes, caros colegas, isso me soa como um chavão acadêmico que se esgota em si mesmo. Certamente, a batalha da psicanálise contra o fascismo não se limitará a um inflamado debate universitário. Devemos estar advertidos disso. Venho de uma experiência, como analisante e analista, na qual tivemos de nos virar com a tensão entre o mais íntimo em jogo numa sessão analítica e a clandestinidade que, às vezes, foi necessária para que a sessão analítica acontecesse.

O desafio já está colocado. O ovo da serpente, mais uma vez, se manifesta prestes a eclodir. A psicanálise e a prática analítica não se sustentam no céu das ideias. Cabe a nós, psicanalistas, continuar dando lugar às palavras que honram a vida, ainda em situações como estas que se anunciam. É possível!

 

   
 
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