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A escolha pela democracia
Maria do Rosário Collier do Rêgo Barros
 

A escolha pela democracia é do tipo a bolsa ou a vida. Se escolhemos a bolsa, perdemos a vida e, por consequência, também a bolsa. Escolher a vida implica também uma perda, a perda da bolsa.

A escolha da democracia hoje é uma escolha vital, e é preciso localizar o que se perde com essa escolha para transformar essa perda em algo que cause nosso desejo não só de sustentar a democracia, mas de construí-la tentando lidar com seus impasses, seus paradoxos.

Escolher a democracia é perder a ilusão do consenso, da uniformidade de opiniões, pensamentos, sentimentos, crenças, etc. É perder essa ilusão sem ser arrastado pela paixão ao ódio à diferença. A escolha da democracia implica ter que fazer algo com esse ódio que habita cada um de nós e que em certos momentos históricos é ativado da pior maneira possível: aquela que visa no outro a anulação do que não suporto em mim mesmo. A anulação do outro não é, no entanto, sem retorno sobre a própria anulação. Nesse caso, a destruição impera, devastando as relações entre os indivíduos que ficam sob o império da pulsão de morte.

Sustentar a democracia nesse momento tão difícil que atravessamos no Brasil desde o impeachment da ex-presidente Dilma Roussef e, particularmente nessas eleições, é uma grande responsabilidade para cada um de nós, pois requer que possamos inventar outras formas de lidar com a pulsão de morte, que é ineliminável. E assim poder dar testemunho de que a escolha da vida e a perda da bolsa, ou seja, a escolha da democracia e a perda do consenso exige uma operação a mais, aquela que implica a separação. Implica estar junto sem desconsiderar o que separa, o que move cada um nesse desejo de democracia; o que move e também o que funciona como entrave, que dá medo.

Como fazer para sair do empuxo à guerra, do nós contra eles? A primeira coisa, a meu ver, é saber que não se trata de nós contra eles, mas de cada um contra essa onda totalitária que invade o Brasil, que invade o mundo.

É importante a invenção desse significante #ELENÃO. É diferente dizer “Ele Não” e dizer eles não. É ao Ele com seu discurso totalitário que dizemos não para poder apostar no mínimo de divisão que habita ainda muitos que se inscrevem na defesa desse Ele alçado à dimensão de mito. É com essas coordenadas que tento conversar com aqueles ao meu redor que estão fascinados pelo surgimento na cena política de alguém que bota o pau na mesa e promete eliminar a diferença que incomoda, com costumes desconhecidos e estranhos.

Os governos totalitários, fascistas, se utilizam desse ódio à diferença para escolher quem eliminar. Há todo um trabalho para eleger o alvo, aqueles que supostamente entravam a expansão totalitária, aqueles que escapam ao projeto totalitário. Vemos hoje se proliferar no Brasil esta lógica totalitária que elegeu um partido político como alvo e que logo se estendeu às mulheres, aos homossexuais, às lésbicas, aos LGBT. E que pode continuar se estendendo.

Daqui a pouco poderá ser os judeus, os católicos e assim por diante.

O que vemos se proliferar junto com o empuxo ao prazer sem entraves de nossa época são diferentes modalidades de sacrifício, que sub-repticiamente, de forma oculta e furtiva, se infiltram nas relações de trabalho, nas relações escolares e familiares e na relação consigo próprio, como as tentativas de suicídio que são cada vez mais frequentes. O sacrifício é uma forma de retorno da pulsão de morte ineliminável sobre si mesmo, sobre o mais próximo e mais estranho a mim mesmo. Para não sucumbir ao empuxo destrutivo da pulsão de morte ineliminável, será necessário poder utilizá-la para sustentar a diferença e não eliminá-la. Digo isso porque Lacan dá à pulsão de morte um lugar na operação de separação em seu Seminário 11 sobre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise1. Isso sempre me intrigou. Consegui dar um lugar a isso na minha história pessoal para não perder tempo com o narcisismo das pequenas diferenças, que convoca o ódio, mas para sustentar a diferença absoluta, a diferença radical que também é ineliminável e que dá sustentação a cada um. E é isso que escapa e que apavora os regimes totalitários, dos quais temos que nos separar radicalmente. Resistir sem trégua é nossa responsabilidade no Brasil hoje para não cairmos mais uma vez nos horrores de um regime totalitário e autoritário como o que sofremos durante vinte anos com a ditadura militar.

COMO se separar, como RESISTIR?

É a pergunta que deixo hoje aqui e que desafia nossas potencialidades criativas.

1 LACAN, J. O seminário, livro 11: Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

   
 
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