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É isto uma democracia?
Marcia Zucchi
 

Em primeiro lugar, é preciso que eu declare absoluto espanto e perplexidade diante do ocorrido neste primeiro turno das eleições brasileiras.

Teremos que nos debruçar com atenção fina e aguda sobre esse fenômeno que é o avanço avassalador das forças antidemocráticas nos diversos poderes do país. Não saberia analisá-lo, por hora. Destaco apenas alguns elementos.

Em matéria publicada no jornal O Globo1 de domingo passado, 7 de outubro de 2018, encontramos algumas informações sobre o espantoso avanço do candidato do PSL à presidência. Para além de qualquer discussão sobre sua plataforma política, o que ali se discute é a tática utilizada para criação e ampliação de seus apoiadores. A reportagem mostra que o candidato dispensou o que até então vinha sendo considerado o principal veículo de difusão de propostas – o tempo na TV, e optou por um modelo quase integralmente digital. Um time de apenas 15 pessoas de uma empresa de “estratégia digital” mobilizou-se para munir 1500 grupos de WhatsApp que, por sua vez, se responsabilizavam em reproduzir as “informações” nas redes sociais de seus integrantes. Um efeito multiplicador impressionante!

Como sabemos, a qualidade ou veracidade da informação não estava em jogo. O importante era desmontar, imediatamente, qualquer crítica, atacando os adversários e apresentando-os como ameaças às liberdades individuais, ao liberalismo econômico, à ordem social, à moral religiosa e à família.

Outro dado surpreendente é o tamanho da rede de seguidores desse candidato no Facebook – 6.9 milhões de seguidores. Dez vezes mais do que seu adversário mais próximo (Haddad tinha 690.000 no dia da reportagem).

Faço um corte aqui para retomar um texto de Miller de 2002, porém atualíssimo: Intuições Milanesas2. Ali, analisando a proposição de que o “inconsciente é a política” no contexto da sociedade globalizada, Miller propõe que, com o declínio da ordem patriarcal, a máquina do não-todo passará a reger os laços sociais. As características da “organização” não-toda seria a queda da tradição e a tendência a invenções singulares. Uma organização predominantemente feminina. Entretanto, como afirma Miller, a ameaça ao viril tem sua contraface: “É certamente correlativo de um apelo à autoridade, ao retorno à ordem, de um apelo desesperado ao reino do significante-mestre que está prestes a se abolir”.

Miller denomina esta busca por significantes-mestres como busca por “bolhas de certeza”.3 Éric Laurent retoma essa proposição em seu capítulo sobre o falasser político em O avesso da biopolítica4 e ali esclarece:

As bolhas de certeza correspondem a essa inclinação num significante mestre qualquer a que o sujeito se engancha. Elas podem tomar a forma de um enganche em crenças fanáticas ou ainda aberrantes, (...) ao preço de priorizar significantes mestres provenientes da magia ou da religião.

Exatamente o que vimos verificando nas redes sociais: significantes como segurança da família, retorno à ordem, à autoridade, garantidos pela posse de armas e pelo respeito aos valores cristãos.

Então, no mar das inovações tanto sociais quanto individuais, o recurso a esses significantes, a essas bolhas de segurança conservadoras seria a defesa encontrada por essa parcela (grande!) da população? Um recurso saudosista a um pai dominador, que organize os corpos e gozos com sua mão de ferro? Talvez, mas certamente não só.

Não se trata, pelo menos não totalmente, de identificação ao traço do líder como propôs Freud em Psicologia das Massas5. O candidato em questão não parece representante de um ideal. A menos que consideremos como “ideal” seu semblante de “anti-político”. O traço que agrega, como já foi dito por muitos, nesse caso, parece ser o ódio. Ódio proveniente da recusa ao gozo do Outro, gozo que na sociedade contemporânea circula com menos impedimentos. Ódio à diversidade. Tratar-se-ia, então, de um apelo para que se obture o furo que a livre circulação dos gozos impôs aos adeptos dos confortos edípicos nessa época do não-todo? Creio podermos pensar esse fenômeno também como expressão da pulsão de morte em sua face de homogeneização, de eliminação das diferenças, que como lembra Laurent busca o “ajuste fatal entre liberdade e segurança”.6

Então, fake news, memes, foto-montagens fazem uma democracia? Sigo me perguntando o quanto as redes sociais, seus algoritmos, estão permitindo a livre circulação de ideias ou condicionaram perspectivas de maneira irracional, gerando corpos submetidos a um gozo expulsivo de tudo que é diverso.

Seja como for, parece-me que cabe ao analista que opera com os poderes da palavra, zelar pela possibilidade de que esta circule o mais livremente possível de toda sorte de coações, seja no âmbito privado, seja no público.

Já soubemos sustentar a psicanálise em tempos de chumbo. Estou certa de que o faremos novamente se for preciso. Mas antes disso, é necessário resistir!


1
SOARES, J. Eleições 2018. “Time digital de Bolsonaro distribui conteúdo para 1.500 grupos de WhatsApp”. In O Globo,de 07 de outubro de 2018, p. 12.
2 MILLER, J.-A.- “Intuições Milanesas”. In Opção lacaniana online Nova Série, ano 2, n. 6, novembro 2011, p. 13.
3 Ibid, p. 15-18.
4 LAURENT, É. “O falasser político”. In O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo. Rio de Janeiro: Contra Capa Ed., 2016, p. 204.
5 FREUD, S. “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921). In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XVIII, Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 91-179.
6 LAURENT, E. Idem, p. 211.

 

   
 
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