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O psicanalista e a política
Luiz Fernando Carrijo da Cunha
 

Começo por um pressuposto: o discurso fascista está instaurado. Claro que o andamento do processo eleitoral ainda não terminou. Mas independente de seu resultado, uma perda já se processou, e tomar tal perda como intrínseca à estrutura do discurso que o mal-estar anuncia, é mister ao psicanalista. Éric Laurent, em entrevista feita por Fernanda Otoni para divulgação do XXII EBCF2, assinala, à guisa de interpretação desse fenômeno discursivo que avança em todo mundo, que se trata de “uma vontade de conservadorismo” em decorrência da queda do falocentrismo que temos vivenciado nas últimas décadas. Portanto, o que vivemos hoje como realidade no campo da política no Brasil é uma resposta a isso, mas através de um “fora da norma”, como assinala Laurent. Isso certamente chama a atenção na medida em que há aí, nesse “fora da norma”, uma alusão a um empuxo para fora da ordem simbólica, colocando a descoberto todo semblante que funcionaria como um agente “apaziguador” do mal-estar.

Logo, duas vertentes se abrem, nos levando a retomar Freud em “Psicologia das massas”3, para extrair dali sua atualidade. Chama a atenção, entretanto, a horizontalização sem limite: por um lado, a fascinação cega advinda da submissão a um ideal higienista e, portanto, disseminador do ódio; e, por outro, a “indignação”, ancorada tanto na denúncia da impostura, quanto no medo. A questão é que um polo alimenta o outro, numa espécie de batalha sem fim onde fatos novos não interferem na dinâmica, não produzem brechas, mas cada fato novo é reabsorvido na consumição da dita polarização.

Ora, o campo de batalha se constitui, essencialmente, na praça virtual. Não há diálogo, apenas afirmações replicadas ao infinito. As redes sociais protagonizam uma “campanha” cuja capilaridade se torna perniciosa, pois não há índice do verdadeiro que se sustente. As fake news ganharam o proscênio denunciando o pouco de sentido que sustenta cada argumentação. Quanto mais o horror é replicado e banalizado por um lado, mais a indignação toma conta do lado oposto. Mas, sim, ainda temos o direito de nos indignar, do contrário estaríamos na mesma ciranda da “banalização do mal”. Entretanto, as respostas a essa indignação não trazem o elemento “surpresa” diante do qual teríamos a chance de fazê-lo repercutir de forma diferente, alcançando algo verdadeiro na subjetividade de cada um.

Quando estamos identificados a uma ideologia, a um partido, estamos no registro de fazer existir ou dar consistência ao mestre, e quando se trata de dar consistência ao mestre contemporâneo, não fazemos outra coisa senão endossar a proliferação do ódio e do horror. Eis a questão que nos concerne diretamente no que diz respeito ao "posicionamento" da Escola. Não podemos nos posicionar sem levar em conta estes fatores; ou seja, nosso posicionamento não pode se dar sem o devido distanciamento das identificações. A Escola representa um coletivo, mas, como bem disse J.-A. Miller na "Teoria de Turim"4, é um coletivo que remete à solidão subjetiva, onde no Um por Um cada qual tem a chance de se colocar em relação ao ponto comum que nos causa enquanto psicanalistas e, com isso, também a chance de se distanciar de suas identificações ideais. A psicanálise não é um higienismo, ao contrário. Logo, só podemos nos posicionar, nesta ou em qualquer outra situação, tomando o mal-estar a partir do sintoma. É nisso que a psicanálise pode contribuir no campo da política e, para tomá-la na vertente do sintoma, faz-se necessário consentir que a perda já se instaurou.

Em outros termos: se a indignação é um afeto coletivizável, e nisso nos parece muito “natural” que cada membro ou participante de nossa comunidade de trabalho esteja indignado com os fatos, é preciso lembrar ainda que tal afeto processa suas respostas também de modo “natural”, a partir das identificações. Ou seja, produzir respostas e ações que possam ser efetivas em relação ao mal-estar, requer, do psicanalista, ou da Escola que o representa, dar uma volta a mais no ponto da “indignação” e do “medo” que se segue como corolário. Entendo que estamos entrando num momento de reflexão onde o que nos interessa é encontrar, na própria psicanálise, instrumentos eficazes para fazer objeção ao discurso fascista.

Se o papel da Escola não for este, as instâncias responsáveis por sua condução ficarão relegadas ao trabalho burocrático, por exemplo, entrando na ciranda infinita proposta pelas redes sociais com seu poder de pulverização e, como consequência última, condenar a psicanálise ao seu desaparecimento.

A “Rede Zadig”, enquanto extensão da Escola criada por J.-A. Miller, é o lugar onde esta reflexão pode se dar. É o lugar onde a psicanálise pode e deve ir à política. Sua capilaridade no Outro social dependerá de nossas ações cuja efetividade pode fazer repercutir o sintoma da civilização. E, sem dúvida, há uma Escola antes e uma depois de Zadig. Talvez o significante que melhor aponte para esta fronteira seja o “Campo Freudiano ano Zero”, onde, efetivamente, através de J.-A. Miller, a psicanálise reivindica seu lugar na política.

Referências
1. BASSOLS, M. Campo Freudiano, Año Cero, en la ELP. In Lacan Quotidien, n. 758.
2. MILLER, J.-A. Campo Freudiano, Ano Zero. In: Lacan Quotidien, n. 718.
3. TRAVERSO, E. Les nouveaux visages du fascisme. Paris: Textuel, 2107, p. 13.

1 Diretor da EBP.
2 Entrevista feita por Fernanda Otoni a Èric Laurent, a propósito do XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, publicado em 10 de outubro de 2018. Acesse: https://www.youtube.com/watch?v=QVPusLyOVsM
3 FREUD, S. “Psicologia de grupo e análise do ego” (1921). In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. XVIII, Rio de Janeiro: Imago, 1976.
4 MILLER, J.-A. “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola”. In: Opção Lacaniana online nova série. Ano 7, número 21, novembro de 2016.

   
 
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