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Psicanálise e democracia
Heloisa Prado Rodrigues da Silva Telles
 

“O discurso da democracia difunde o S(Ⱥ). Não há significante último, somente há um lugar no qual se inscrevem os significantes que permitem que nos orientemos e os valores que, por fim, ocultam o buraco consistente onde não há valor final”.

Partindo desta referência de Miller, do curso de 2003, “Um esforço de poesia” 1, temos os seguintes desdobramentos:

1. Uma intolerância a um significante amo absoluto. Como consequência, um convite a suportar que há sempre outros valores: campo do relativismo e não do absolutismo.

2. “A democracia é o que autoriza a pluralidade do laço social” 2. Para que haja lugar para a diversidade de discursos e de laço social, e suas invenções, há que existir certa extimidade em relação aos significantes amos. A fórmula “democracia como liberdade de expressão” pode ser ampliada: há liberdade da palavra uma vez que há lugar para a palavra em sua diferença absoluta.


As elaborações de Lacan em relação à psicanálise implicaram um desejo para sustentar uma práxis – faz do desejo do analista uma função, estabelecendo, desta maneira, uma separação radical entre a posição do analista e a mestria ou ideal; uma “prática fora das normas” que faz do sintoma, intrinsicamente subversivo em relação aos imperativos sociais, sua política.

Por que dizemos que a psicanálise, enquanto laço social específico, “supõe” (termo de Miller) uma determinada forma de organização social? Não se trata somente da exigência de um contexto democrático para que a psicanálise possa ser exercida livremente. Esta relação estrutural está dada pelo fato de que o discurso analítico é aquele que pode dar lugar à diferença absoluta, o que supostamente seria a vocação da democracia. Os finais de análise mostram, ainda, que “é possível vivermos juntos no espaço público à condição de cada um separar-se de seu próprio gozo odioso e de se arranjar com sua inumanidade"3.

No entanto, cabe a nós, analistas, sustentar de que maneira os regimes totalitários ou mesmo determinados discursos dentro do regime democrático impedem uma política do desejo, ao darem consistência às “identificações alienantes e ao gozo comunitário” 4.

Por sua vez, como efeito da elucidação que podemos ter a partir de “Campo Freudiano, Ano Zero”, fundado por Miller, de que maneira a psicanálise pode dirigir-se à democracia? Insistindo que democracia é a possibilidade de inscrição no espaço público do um a um – ou seja, a minoria é maioria em sua diferença absoluta; fazendo ver que há significantes na democracia que captam identificações, que por sua vez estabelecem polarizações e impedem uma efetiva conversação; enfrentando os efeitos de escolhas que se regem por discursos apoiados no ódio à diferença ou escolhas que se pautam em um gozo que se pode entrever.

Assim, e para concluir, para além do “desejo decidido de democracia” ou de um “desejo vivo na democracia”, temos como principal desafio enfrentar questões que emergem de um real em jogo na contramão da essência da própria democracia ou por ela, “paradoxalmente”, fabricadas.

1 MILLER, J.-A. Un esfuerzo de poesía. Curso de 05/03/2003. Buenos Aires, Paidós Ed., 2016, p. 169-170.
2 Ibid. p. 171.
3 AFLALO, A. "La necesidad de un soplo”. Em: Lacaniana, n. 24. Buenos Aires: EOL, 2018.  p. 87.
4 Ibid. p. 88.

 

   
 
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