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Em uma favela de Belo Horizonte, o movimento do funk crescia sem fronteiras e mobilizava moradores de outras regiões ou classes sociais. Enquanto isso, órgãos públicos se reuniam para coibir a prática que se proliferava desenfreadamente. Uma roda de conversa sobre funk aconteceu no local, reunindo moradores, representantes de políticas públicas e da universidade. Um universitário se pronuncia: “As autoridades querem acabar com o funk porque é música de negro”. Os jovens da favela, em sua maioria negros e envolvidos com os bailes funk, não aderiram àquela proposição e deram sua versão: “Eles são contra o baile funk porque é coisa de favelado e é apoiado pelo tráfico”.
Mas em que consiste esta sobreposição do negro pelo “favelado”? Ela marca uma mutação discursiva do racismo na atualidade. Considerar o racismo como efeito do discurso é condicioná-lo à subjetividade de uma época.
A noção moderna de raça foi sustentada em uma tríade: nação, povo e raça. Quando se fortalece o povo como identidade nacional, a contrapartida é a delimitação de fronteiras raciais. Tomar a outra raça como uma ameaça é a condição para a coesão do povo e o erguimento da nação. O contato com outras raças exigia limites higiênicos. Era preciso se prevenir de um suposto contágio.
Nossa época é marcada por uma ruptura com esta estrutura do Estado-nação moderno. Isso bastaria para abolir o racismo? Se a raça é um conceito que se sustenta no espaço cerrado da nação, no espaço global ilimitado a raça é um obstáculo a ser eliminado. O conjunto unificado do povo é dissolvido pela mobilidade populacional e pela consequente miscigenação. As antigas divisões raciais deram lugar a novas ficções comunitárias.
O mau se libertou de seu cativeiro e se dispersou em um ambiente hostil sem fronteiras. Por isso, Miller aborda nossa sociedade atual a partir de uma proposição: "o Outro social é sempre um Outro mau" 1. O sujeito dedica-se a identificar a vontade malévola em alguém ou em um grupo. A ideia de perseguição tornou-se a via privilegiada para tentar recompor os laços sociais. A localização do mau é uma tentativa de tratar o ilimitado do mundo global. O sujeito destaca uma figura malévola que lhe permite construir um mundo ameaçador do qual ele é o alvo. Tenta recuperar uma ideia de si mesmo a partir da intenção de um Outro que ele considera que quer seu mal e goza do mal que lhe causa.
Mas como distinguir raças neste território sem fronteiras, considerando que a segregação é um fator estrutural da sociedade? Como diz Lacan, "ela vai sempre reaparecer com mais força. Nada pode funcionar sem isto" 2. Contudo, com o declínio contemporâneo da noção de raça, presenciamos uma inversão na relação causal entre raça e racismo. A distinção das raças não seria mais a via para o racismo, mas o racismo que seria a via para distinguir as raças. No espaço global, o racismo seria um último recurso para buscar a reconstrução das diferenças raciais dissolvidas.
O racismo torna-se um mecanismo de separação social. Quando a sociedade contemporânea apaga as identidades raciais, o ódio racista não se alicerça na alteridade da outra raça, mas na proximidade entre as raças miscigenadas. Sem fronteiras fixas entre as raças, o racismo constrói cotidianamente estas demarcações. Basta que os modos de satisfação de uma dada coletividade se revelem insuportáveis para outro grupo social para que o ódio racista venha circunscrever a presença do mau.
Foi assim que o morador de favela tornou-se um inimigo íntimo no espaço urbano brasileiro. Refugiados em um enclave dentro de sua própria terra, eles tornaram-se, para outra parte da população, sinônimo de depredação do ambiente público e violação da conduta social e do referencial normativo. Se na primeira metade do século XX, no Brasil, a noção de “favelado” foi construída a partir da segregação racial dos negros, no final do mesmo século, esta noção se emancipou da oposição dialética entre senhor e escravo ou entre branco e negro.
Em um contexto social onde a noção de raça perde seus referenciais delimitadores, a favela passa a ser produto de uma clausura do mau em territórios segregados. Uma tentativa da população de se livrar do mau que habita a intimidade de cada um, localizando-o em uma categoria populacional que mobiliza o ódio racista. É comum atribuir-se aos moradores de favela o que os brasileiros não suportam em si mesmos como povo: miséria, corrupção, crime, promiscuidade. Muitas vezes, são consideradas pessoas incivilizadas, sem barreiras morais, que não respeitam a vida social, não controlam seus impulsos sexuais e agressivos e se reproduzem sem cessar. As mesmas características que eram atribuídas aos negros pelos colonizadores. Essa expurgação do mau torna-se fundamento do laço social.
O ódio racista pode integrar uma comunidade, na medida em que seus membros identificam uma raça cujos traços repudiam. Mas há uma distinção. Por um lado, nos grupos fundados sobre laços fraternos, há uma partilha simbólica que viabiliza a construção discursiva da raça. Por outro lado, em uma comunidade de ódio, essa transmissão está comprometida. É possível agrupar uma multidão ilimitada de sujeitos que, no entanto, não se sustenta nos laços entre eles, mas na relação com a raça odiada.
Por isso, o morador de favela não encontra um contraponto racial sustentando sob bases simbólicas. Ao contrário da dialética do racismo moderno, o repúdio aos moradores de favela não tem como contrapartida a demarcação de uma oposição dialética entre raças. No mundo global miscigenado, o individualismo de massa prevalece sobre tentativas de integração do povo. Por isso, testemunhamos hoje uma intensificação do racismo como sintoma social. Uma tentativa cada vez mais extrema de recompor os laços sociais dispersos por meio da localização do Outro mau.
Entretanto, o que se produz com o racismo é, ao contrário, a consolidação da segregação como um modo de viver. Enquanto o morador de favela permanece dentro de suas trincheiras, a cultura da favela é assimilada pelo mercado, democratizada, consumida como estilo de vida. Como diz a música: “É som de preto, de favelado, mas quando toca ninguém fica parado”. Mas a expansão da cultura da favela pelo país não é suficiente para refrear a persistência do ódio racista. É possível, por exemplo, gostar de funk e, ao mesmo tempo, repudiar os costumes da favela.
Mas, se o mercado não tem fronteiras, o racismo as recoloca na reconfiguração do espaço social. Quando os laços de amor que unem um povo se dissolvem, o ódio racista pode ser um afeto que recoloca a dimensão política do mau. O Outro como exterioridade é recomposto sob a face do Outro mau. Diante da homogeneidade da miscigenação global, o racismo é um retorno contemporâneo da heterogeneidade sob as bases do ódio. Por isso, ao contrário de indagar como podemos viver juntos, Lacan questiona: “como fazer para que massas humanas fadadas ao mesmo espaço, não apenas geográfico, mas também, ocasionalmente, familiar, se mantenham separadas?” 3 |
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