Como abordar um tema tão amplo e complexo como o racismo a partir do discurso analítico? Como adentrar tal debate, sem patinar na "humanitarice de encomenda de que se revestem nossas exações"1, objetada por Lacan em Televisão? Como não embarcar, de entrada, na nuvem ideológica que se alastra – como se um dado de natureza fosse – embuçada pelo cego comando das cifras, esvaziadas da vida que não cabe no número, ou de qualquer análise de contexto, perspectivas estas mobilizadas e insufladas pelo autoritarismo democrático reinante na vida para consumo2 e nas redes sociais? Como não arder na febre das polarizações do “nós contra eles”, que dão o tom às reivindicações de todos os tipos, se sucedendo como ondas de calor, causando alvoroço, mas se dissipando no momento seguinte, à espera do protesto da vez?
Estamos na era das petições sem fim e de paixões horizontais. Clama-se pela impossível igualdade ao mesmo tempo em que se suporta muito mal a pequena diferença. Mais eis que a pequena diferença, essa indelével presença do gozo, não se deixa dissimular por detrás das cifras ou das promessas de um mundo melhor e mais justo; não se dobra à biopolítica, a se propagar em sua gestão mundializada dos corpos. A pequena diferença é descrente das estatísticas e de tudo o que se mede em porcentagens, vaticinando justiça por vieses mais ou menos distributivos.
Por que só existem raças de discurso? Porque no nível da pequena diferença, existem tantas “raças” quanto habitantes no globo terrestre, ao ponto de podermos afirmar que uma raça – como um conjunto fechado e definido por tais ou quais características marcadamente fenotípicas – é uma ilusão3. Já o racismo, o de cunho biológico, cede terreno, no século XXI, para o chamado racismo cultural4, de cunho marcadamente social, assim como o choque de civilizações retrocede em detrimento do choque entre diferentes modos de gozo5.
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