Indo direto ao ponto: 1) há uma impossibilidade de se pensar um projeto de nação que não trate a questão racial como central; 2) não há hierarquização das opressões, portanto, é preciso pensar uma intersecção entre raça, classe e gênero para criar condições de possibilidade para um novo modelo de sociedade; e 3) existem relações mútuas cruzadas entre raça, classe e gênero, de tal modo que raça implica na maneira como a classe é vivida, assim como gênero é a maneira como a raça é vivida. Pelo menos é parte do pensamento de Angela Davis. Professora de filosofia, aluna de Herbert Marcuse, filiada ao Partido Comunista norte americano, candidata a vice-presidência em 1980 e 1984, e militante dos Panteras Negras nos anos 1970.
Esta intersecção entre raça, classe e gênero não me parece tributária ou avalista de uma concepção de política assentada sobre princípios identitários, mesmo que advenha de uma prática militante. Ela coloca ao menos duas questões que me parecem importantes: 1) a primazia da experiência sobre uma suposta neutralidade epistemológica; e 2) uma noção de política pensada a partir da noção de ato.
A respeito da primeira, penso ser ela solidária do valor atribuído ao relato de teor testemunhal como uma transmissão daquilo que restaria como impronunciável. O valor testemunhal dos sobreviventes da shoah não é a sobrevivência deles, nem a mortes dos demais, mas aquilo que resta deles, o impronunciável testemunho que ninguém poderia fazer por eles. A intersecção entre raça, classe e gênero impõe que há uma experiência de opressão que é irredutível ao discurso do saber e intransferível por procuração.
Um sofrimento decorrente de uma opressão jamais poderá se reduzir a um mero relato epistêmico distanciado. Afinal, o sofrimento será sempre uma experiência de reconhecimento frente ao outro. Um testemunho que transmita a experiência de sofrimento e o impronunciável tem efeitos clínicos e sociais, porém, não necessariamente político. Para isso seria preciso uma militância que consiga fazer convergir testemunho e ato. Essa é a segunda questão que abordo a partir de Davis lida com Lacan.
No início do século XIX, numa pequena cidade dos EUA, Prudence Crandall, uma mulher branca, professora, aceitou uma menina negra numa escola para brancos. Apesar de pressões ela não recuou. Pressão dos pais brancos, dos profissionais de saúde que recusavam atendimento, dos comerciantes que passaram a se recusar de vender a ela o que quer que seja, de ataques de jovens arruaceiros, etc. Em resumo, ela foi perseguida pelas instituições de direito dos homens brancos, até que conseguiram levá-la para a prisão. Sua aparente derrota, contudo, foi uma vitória simbólica que teve consequências. O ato de Crandall fez uma aliança entre lutas heterogêneas: pela libertação negra e pelos direitos das mulheres. Tal ato não se apoiou em princípios identitários e predicativos.
O estatuto de ato político se produziu do intervalo das identidades. Ele faz uma afirmação primordial ao incluir a menina negra num espaço de brancos. Essa espécie de “Bejahung” política vacila não só identidades de gênero, classe e raça, quanto um imaginário pedagógico de acesso à educação, produzindo um impasse para os direitos civis. Afinal, estes garantem acesso a quê? E a quem? Às meninas? Ou apenas às brancas? Meninas negras ainda são propriedades ou são cidadãs americanas?
Além disso, uma outra identidade era criticada. O que Crandall fez não era nada do que se esperava dos semblantes de uma mulher, e de uma mulher branca. As identidades e os semblantes raciais da menina e da professora estavam agora num espaço de indeterminação. Penso que é somente aí, nesse espaço de intersecção, de indeterminação identitária e predicativa, que um ato político seja realmente possível. |