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Zadig – raças de discurso
Angelina Harari
 

Dou-lhes as boas-vindas a este Fórum, nesta abertura, e o faço em nome da Associação Mundial de Psicanálise (AMP) e da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP). A Movida Zadig que organiza este evento no Brasil tomou o nome de Doces&Bárbaros; não se confunde nem com a AMP e nem com a EBP, embora seja igualmente um movimento internacional que tem como nome um acrônimo: Zero Abjection Democratic International Group.

Este Fórum, o segundo no Brasil, faz parte de uma série de fóruns da rede internacional Movida Zadig, que ocorreram, de modo mais intenso, em 2017. Eu faria uma distinção entre os Fóruns movidos em uma situação de urgência – como foi o caso dos 20 Fóruns que colocaram a Escola da Causa Freudiana como ator da sociedade civil, na campanha contra a extrema-direita, para barrar a rota daquele partido à presidência – e os Fóruns, digamos assim, fora de situações de urgência e que abordam temas candentes. Aí se inscreveriam os dois Fóruns europeus, um sobre o desejo decidido de democracia na Europa (novembro, 2017) e o mais recente (sábado, 24 de fevereiro, em Roma), sobre o tema do Estrangeiro. Em cada lugar os Fóruns ocupam-se de temas espinhosos, mostrando, principalmente, a impossível mediação com quem goza de forma insuportavelmente diversa. Lacan1 concorda com Freud ao deter-se no mandamento do amor ao próximo, pois a experiência mostra a ambivalência pela qual o ódio acompanha, como sombra, todo o amor por esse próximo que é, de nós, também o mais estrangeiro. No Brasil vivemos isto parcialmente em Roraima, com o afluxo de venezuelanos, mas estamos longe da situação europeia neste quesito.

A experiência da psicanálise conduz a nos distanciarmos das identificações de massa, sempre discriminativas, e então este Fórum, nas palavras de seu responsável, Jésus Santiago, coordenador no Brasil da rede Movida Zadig, nos levará a uma conversação sobre “como lidar com o sintoma do racismo, favorecendo a presença de discursos públicos que busquem orientações e valores civilizatórios compatíveis com a vida.”2

Conversação em que a psicanálise como discurso não pretende dissolver os semblantes dos outros discursos. Uma vez que não pretende a dominação, ela própria denuncia seu semblante, fadado a se autodestruir, o Sujeito-Suposto-Saber. A prática dos fóruns e o diálogo iniciado com numerosos discursos públicos, sempre são muito instrutivos. “Qual é a aposta? Trata-se, certamente, de informar, esclarecer, contribuir para o debate público, mas, para além da argumentação bem fundamentada, apostamos em uma experiência de fala. A fala, através do movimento dos significantes, pode ter efeito de desagregação sobre o valor do ideal, efeito de fratura dos S1 da maestria. Isto tocou particularmente os nossos fóruns: quando os políticos foram conduzidos, pelo enquadre discursivo proposto por J.-A. Miller, a evocar partes de sua história, revelaram elementos de sua divisão.”3

O tema hoje, as vicissitudes do racismo, implica em sistema de dominação, assim como o sexismo o é e permite a exploração de humanos através de outros humanos. Tal discurso afeta os dominados, justificando a escravidão, a colonização, a Shoah, as políticas genocidas e de extermínio, muito embora, no plano biológico, as raças não existam. Raros são aqueles que atribuem a inferioridade de um grupo humano a uma causa biológica, a ideia de “raças culturais” substitui a causa biológica. Estas conclusões são de Rokhaya Diallo4, fundadora da associação antirracista “Os indivisíveis”, criada em 2007.

E mesmo que os meios de comunicação propiciem reviravoltas, tal como, recentemente, um escândalo que afetou uma campanha de marketing da rede sueca de prêt-à-porter H&M5, que numa propaganda mostrava um garotinho negro, modelo infantil, vestido de camiseta com dizeres que causaram indignação em uma blogueira britânica famosa, Stéphanie Yehoah. Seu Tweet questionando o que estaria por trás dessa propaganda causou uma chuva de acusações de racismo, levando a rede sueca a se desculpar e retirar as fotos dos sites, isto antes da retirada sumária de todas as camisetas de suas lojas. Mas não a tempo de impedir a perda do patrocínio de um grupo musical (The week-end) que anunciou o corte na colaboração. E ao garotinho, top-model, coube um contrato de um milhão de dólares oferecido por um rapper. Nesta mesma série podemos incluir o #MeToo. Na França com o slogan #DenuncieSeuPorco.

O Fórum como experiência de fala não pretende a denúncia ou a vitimização. Para isto não é necessária a presença dos corpos falantes; a escrita daria conta. A experiência de fala aposta nos efeitos, na ressonância do que será dito, pois a fala é endereçada a alguém que não se sabe o que vai dizer.

Termino com algo que é bem caro à psicanálise, que é o cômico, vinculado à fala: o humor exitoso, que provoca o riso franqueando algo do inconsciente. O witz, Freud estabeleceu sua relação com o inconsciente; com Lacan temos que o inconsciente é a política, ou seja, um sujeito transindividual. Recorto o que vou narrar de um humorista: “tenho um vizinho que é xenófobo [...] ele detesta os estrangeiros a tal ponto, que quando viaja para os países deles, não se suporta.”6


1
LACAN, J. Discurso aos Católicos. In: Triunfo da Religião precedido de Discurso aos Católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p.51-52.

2 SANTIAGO, J. “Argumento”. In: Fórum: Porque apenas existem raças de discursos: desafios da democracia. Belo Horizonte, 09 de março de 2018.

3 ALBERTI, C. “Choix de Vie”. (Apresentado na Journée Question d’Ecole em 03/02/2018, Maison de la Chimie, Paris.) In Lacan Quotidien, nº 764.

4 DIALLO, Rockhaia. In: Le diable probablement, nº11, 3ème trimester. Paris: Verdier, 2014, p.145.

5Cf. METTOUT, Éric. “La polémique: HM accusé de”. In: L’express, hebdomadaire, du 17 au 23 janvier 2018.

6 GUYONNET, Damien. “Puissance et limites du comique sur le racisme”. In: Le diable probablement,no 10, p.165.

   
 
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