O movimento lançado por Jacques-Alain Miller, no ano passado, provoca uma elaboração sobre as condições de discurso que determinam as conjunturas sócio-políticas hoje. Nesse sentido, é muito bem-vinda a iniciativa da movida Zadig no Brasil de colocar em pauta o racismo como fenômeno discursivo. Agradeço pelo convite a tomar a palavra aqui hoje.
Jésus Santiago resume bem a questão quando afirma que o sintoma da segregação racial é um exemplo vivo de que a democracia não se confunde com o Estado de direito. O texto de Bernardo Carneiro que circulou em Veredas entre os textos preparatórios para esse Fórum, fala de uma mutação discursiva do racismo na atualidade. Ele diz isso ao comentar a sobreposição do negro pelo favelado na fala de um jovem morador de uma favela. De fato, no nosso país não dá para separar claramente o preconceito de raça do preconceito de classes. A grande questão no Brasil é a abissal desigualdade social.
Essa desigualdade é herdeira da escravidão, que teve no Brasil uma configuração muito particular1. O sociólogo Jessé Souza demonstra isso claramente. A herança escravocrata, “agora é usada para oprimir todas as classes populares, independente da cor da pele, ainda que a cor da pele negra implique uma maldade a mais (...). O mecanismo sociocultural de formação de classes, diz ele, é tornado invisível, então o racismo da cor da pele é o único fator simbólico percebido na desigualdade do dia a dia”2.
Jessé Souza se serve da pesquisa de Gilberto Freyre, Florestan Fernandes e dos conceitos de Pierre Bourdieu para demonstrar a formação da sociedade de classes no Brasil moderno não em termos econômicos – sejam liberais ou marxistas – mas em termos do que ele chama de “socialização familiar primária”, o chamado “berço” que está na origem do acesso desigual aos capitais econômico e cultural.
Eu não poderia expor aqui sua tese, mas quero destacar ainda três passagens: 1) “Nas nossas classes abandonadas, a produção desde o berço, é do inadaptado à competição social (...) a nossa ralé atual de todas as cores de pele é o inadaptado à competição social que herdou todo o ódio e desprezo que se devotava ao negro antes”3. E o que é o mais grave, 2) “a enorme estigmatização do preconceito escravocrata (...) tende a se introjetar na própria vítima”4; 3) “do mesmo modo que a violência em relação aos escravos era ilimitada, hoje a matança dos pobres que herdaram a maldição do ódio devotado aos escravos comove poucos dentre os privilegiados.”5
Agora pergunto, instigada pela pergunta da Cristina: “desde quando a gente acha normal que militares interceptem os moradores de uma comunidade para fotografar seus rostos e documentos?”
Estou tomando o exemplo da atual intervenção militar no Rio para pensar o tema do Fórum.
O presidente Michel Temer sancionou em outubro o projeto de lei que transfere para a Justiça Militar o julgamento de crimes contra a vida de civis praticadas por militares no exercício de suas funções, como nas missões de Garantia da Lei e da Ordem ou na inédita intervenção federal decretada no Rio de Janeiro6.
O tema de raça surge no século XVIII, como lembrou Jésus em seu texto e foi relembrado aqui pelo Dr. Marcio Aguiar, e vai ser retomado no século XIX como “racismo de Estado”, como assinala Foucault. O racismo irrompe onde o direito à morte é requerido7. Ora, se concordamos que a segregação de raça se transformou na segregação de classe no Brasil, como não ver nesse projeto de lei o racismo que sanciona o direito de vida e de morte? Sim, porque o território atingido pela intervenção é o de favelas, lugar de pobre. E, na verdade, o racismo mais ou menos oculto nessa lei já tem sido praticado fora da lei pelo poder: matar pobre não é crime no Brasil...
E além da impunidade dos crimes eventualmente praticados por militares no exercício de suas funções o que esse projeto sanciona é o julgamento por corte militar de moradores das comunidades sob intervenção militar por crimes contra a honra dos soldados.
A pesquisadora Lena Azevedo relata o caso de um jovem que foi parado dez vezes em um único dia em diferentes pontos da comunidade e na última vez irritou-se, esbravejou e os soldados lhe deram ordem de prisão8.
Voltando à pergunta inicial: essas crianças mortas por balas perdidas, os moradores fichados pelos militares e o jovem interceptado dez vezes em um só dia, não fariam parte do que Florestan Fernandes chamou de “gentinha nacional” e Jessé Souza chamou de “ralé brasileira”?
Jésus Santiago, ao abrir esse debate entre nós, chama a atenção de que “a questão do racismo constitui um dos maiores desafios para a consolidação da democracia que se deseja no Brasil”. Faço minhas as suas palavras e acrescento que, sem diminuir a importância e a especificidade do movimento negro no país — movimento esse que talvez venha a ser responsável por alguma transformação social importante — a questão do racismo atualmente vai além da cor da pele e atinge toda essa “ralé” que herdou o ódio dirigido aos ex-escravos.
Não falo aqui como psicanalista ou membro da EBP, mas como cidadã. Acredito, porém, que a iniciativa lançada por Zadig vai justamente no sentido de nomear o racismo subjacente à dominação nos conflitos sociais brasileiros.
E me pergunto: assim como Jacques-Alain Miller achou que caberia ao psicanalista nomear o fascismo que retornava com a candidatura de Marine Le Pen no ano passado na França, não caberia aqui ao psicanalista nomear o escravagismo oculto na conjuntura política do Brasil hoje?
Concluo com as palavras do jornalista Mino Carta: “a criminalidade, a miséria, o desemprego, a carência de saúde e educação resultam do exitoso empenho da Casa-grande em manter o status quo.”9 |