Tatiane Grova Prado (EBP/AMP)
Estamos às voltas com uma proposta de lei que nos força a retomar alguns pontos para pensarmos o lugar da criança, da adolescência e do feminino na civilização e na particularidade de nosso país. Situaremos algumas breves elaborações que formam um rápido mosaico, talvez rápido demais, no intuito de pensar o que diferencia a criança e o adolescente do adulto; qual seria a boa função do adulto aí; e a peculiaridade do lugar do feminino e das mulheres. Nessa breve trajetória, ressoa a ética da psicanálise, que não impõe a uma mulher, de nenhum modo, um dever de maternidade[1]. A psicanálise é uma práxis que se debruça constitutivamente sobre as falas das mulheres, apostando no destino singular de cada uma.
Infância e adolescência
Há um antes e um depois na psicanálise quando Freud publica os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade[2], em que situa a existência da sexualidade infantil. Talvez a polêmica suscitada na época, além de desvelar a suposta inocência da infância, tenha uma nuance a mais: a de que cada criança atravessa um longo trabalho, de grandes consequências, para elaborar seu lugar, seu corpo, o corpo das outras crianças e dos adultos e o desejo que marca sua chegada ao mundo.
Assim como nascemos prematuramente em relação a outros seres vivos, tantas vezes mais preparados e independentes que nós, esse trabalho da criança também é marcado por uma prematuridade e precisa de um acompanhamento próximo dos adultos à sua volta. Então, quando Freud localiza a sexualidade infantil, ele legitima a palavra da criança e suas descobertas como preciosas na construção de um lugar que lhe seja apropriado futuramente. Uma primeira boa função do adulto para a criança é a de reconhecer que em seu trabalho de elaboração a criança lida com um impossível de simbolizar e de tudo dizer. Como bem situa o argumento desta edição da Correio Express, “ocorre uma inadequação entre aquilo que se passa corporalmente e sua representação psíquica. A esse descompasso, Freud deu o nome de trauma”[3].
A família, como primeira representante dos adultos próximos de uma criança e que marcam seu encontro com a civilização, põe um véu sobre o traumatismo[4]. Não se trata mais da necessidade de um ‘pai de família’, mas de acompanharmos os remanejamentos da cultura, que levaram Lacan a reelaborar a função paterna. Ela passa a ser um resíduo que autoriza uma relação confiável com o que aparece como traumático para a criança, desde que seja encarnada por alguém que deseja e que, justamente por isso, pode conjugar para a criança lei e desejo[5].
Sobre a adolescência, trata-se do “momento em que se apresenta para os sujeitos a questão da escolha quanto ao exercício de sua sexualidade, momento de pôr em jogo seus corpos e sua responsabilidade social”[6]. O que antes era faz de conta vira um jogo para valer. A psicanálise ressalta aí o valor da constituição de uma resposta pela via sintomática, resposta que respeita “o tempo de se virar com isso”[7].
O feminino e a diferença
Sobre o feminino e as mulheres, Bassols[8] nos ajuda a pensar que em variadas civilizações, em diferentes momentos da história da humanidade, as mulheres, as crianças e os loucos são repetidamente as figuras que precisam de proteção por sofrerem violências. Ele localiza que, após a passagem humana pelo simbólico, não haveria retorno a um suposto instinto natural que pudesse explicar esse fenômeno. Assim como não haveria diferença entre culturas mais ou menos avançadas. Bassols assinala que na infância, na loucura e no feminino o que há é a presença de uma palavra rejeitada, um impossível de simbolizar e de tornar familiar.
Bassols localiza dois vetores para se pensar o lugar do feminino que reiteram esse elemento não simbolizável: a diferença sexual, que não consegue se reduzir a um ideal de “todos iguais”, mas que coloca reiteradamente uma não complementaridade, que Lacan sublinha mais ao final de seu ensino. O segundo vetor, também trabalhado pela psicanálise desde Freud, aponta que na constituição de um “eu” que forme uma unidade coesa mais ou menos durável, há uma tensão entre o que é rejeitado e o que fica de fora. Esses elementos rejeitados não se dispersam e somem, mas insistem, o que acarreta uma fratura do “eu”.
O que vemos se repetir é que uma mulher pode encarnar para um homem uma diferença radical que não se submete inteiramente à simbolização, não se domestica pela palavra.
Dolores Mirat indica que haverá por parte de alguns homens um rechaço radical ao fato de que a mulher seja não toda compreensível para eles[9]. Assim, interrogam brutalmente as mulheres para que elas confessem seu segredo enigmático, como se elas pudessem dar conta de dizê-lo. Nesse sentido, cabe relembrar um trecho da música “Infinito particular”, de Marisa Monte: “Olha minha cara / É só mistério, não tem segredo”.
Para concluir
A psicanálise atenta, seja para uma criança em análise, seja na infância relatada por um adulto, para as marcas de uma transmissão do desejo e da lei que possam compor nomes e inscrições do impossível que atravessa cada um de nós. Impossível de apreensão total, de simbolização, que se inscreve sob a forma do trauma na infância e que ganha novas leituras a partir da novidade da adolescência e, depois, da vida adulta.
Bassols[10] delimita importantes proposições a partir das quais a psicanálise pode contribuir para esse debate na conceitualização contínua de sua prática, a saber: em primeiro lugar, a cada sujeito pode ser franqueada a descoberta de que não há modo mais normal, mais verdadeiro ou mais “de acordo” no exercício de sua sexualidade. Cada forma de exercício é diferente da outra e a psicanálise preserva o lugar dessa diferença, o que pode evitar a incidência da violência, que aparece para apagar essa diferença. Só partindo do reconhecimento da diferença é que podemos ter a chance de alcançar uma igualdade com relação aos direitos sociais.
Em segundo lugar, quando há violência contra as mulheres, ocorre uma impossibilidade de escutar a palavra da mulher, assim como de escutar o que não faz coesão no eu de cada sujeito. Que possamos ofertar, nos consultórios e para além deles, lugares em que o que faz fratura na coesão de cada um encontre um lugar e um destino que ressoe em outras possibilidades que não a da violência. Trata-se de um “esforço de poesia” ao qual a psicanálise nos convida, “não para dizer tudo, o que é impossível, mas para, ao alcançar esse limite, encontrar uma maneira de fazer com esse resto irredutível outra coisa distinta da destruição do outro e/ou da autodestruição”[11].
A psicanálise não pode se colocar a favor de uma lei que arranca da criança, da adolescente e da mulher a possibilidade de um tempo de inscrição e de um trabalho realizado sobre as marcas de uma violência disruptiva. Um tempo que a leve a poder escolher a possibilidade de outro destino que não o delimitado pelo encontro com essa violência, ainda mais quando ela deixa uma consequência radical como a gravidez.