ausência de vento
nessa tarde mormacenta –
prenúncio de chuva
tragédia eminente –
um guarda-chuva vermelho
desfila em anúncio
lágrimas de outono
(Roberto Schmitt-Prym)
Cínthia Busato (EBP/AMP)
Já em 1980 eu participava de grupos que reivindicavam um olhar sobre a insanidade de se destruir a natureza. Foi nessa época que participei de uma montagem teatral infantil chamada “Bicho come-come”, onde esse tema, a voracidade sem limites do mercado, era tratado de uma maneira muito criativa e bonita. Nosso grupo Catatempo, teatro e artemanhas ganhou o edital estadual e viajamos pelo interior do estado com a peça, e por algumas cidades do Paraná. Lembro de muitas conversas e discussões que se estabeleciam com o público em torno disso. São lembranças muito presentes, ainda hoje; uma espécie de vagalumes do passado.
Fui a manifestações onde pedíamos pela não legalização dos alimentos transgênicos, por exemplo, pois, muito antes de eles se confirmarem, todas as previsões catastróficas sobre o perigo da monocultura haviam sido bastante discutidas e alardeadas, sem que se conseguisse barrar essa iniciativa. Também participei da Eco Rio em 92, outra experiência inesquecível, e aí também as reivindicações sobre o clima, sobre a necessidade premente (isso em 1992!) de mudarmos as fontes de energia de carvão e petróleo para fontes limpas já eram bem conhecidas. Já estou há mais de 40 anos com os olhos voltados para esse tema, testemunhando a iteração de um não querer saber nada disso, que segue me inquietando.
Walter Benjamin[1], em “Sobre o conceito da história”, texto publicado postumamente, faz referência a um quadro de Paul Klee intitulado Angelus Novus, que adquirira quando jovem. Nele está representado um anjo que crava seu olhar “esbugalhado” em algo que o horroriza. Boca aberta e asas estiradas. Segundo Benjamin, esse é o retrato do anjo da história, que, ao olhar para o passado, não vê como nós uma cadeia de fatos, mas uma única catástrofe que amontoa escombros e os atira a seus pés. O anjo gostaria de despertar os mortos e, a partir dos fragmentos, reconstruir o que foi destruído, mas do paraíso sopra um vendaval que o atira em direção ao futuro de maneira implacável. Esse vendaval o arrasta violentamente, de costas para o futuro. Para Benjamin, aí estaria representado o que se chama de progresso e sua tese é uma metáfora que une progresso a catástrofe.
Michael Löwy[2], ao comentar esse texto, escreve que Benjamin propõe um “pessimismo ativo” contra o otimismo sem consciência dos partidos burgueses e da social-democracia, cujo programa político ele considera apenas um “poema de primavera de má qualidade”. Contra esse “otimismo diletante” inspirado na ideia do progresso linear, ele descobre no pessimismo o ponto de convergência efetivo entre surrealismo e comunismo. Esse “pessimismo revolucionário” proposto por Benjamin nada tem a ver com uma resignação fatalista.
Podemos pensar esse pessimismo lúcido como aquele que sabe que o real sempre resta e sempre aparece quebrando nossa ilusão de tempo linear? Lacan nos orienta em direção ao real, para, em torno disso que resta, apostarmos na palavra que faz laço. O discurso capitalista deixa de lado “as coisas do amor” e não faz laço, colocando a mercadoria num regime de gozo feroz, não castrado. Louise Lhullier, em um texto muito bom sobre a catástrofe no Rio Grande do Sul, publicado no Boletim CODA 3, cuja leitura indico fortemente, se pergunta se haverá aí uma resposta possível da psicanálise para tentar barrar esse “fluxo inexorável e acelerado, sem os limites da impossibilidade, do corte e da falta, aí onde a castração foi forcluída”?[3]
Para tentar articular algo a partir dessa pergunta tomo algumas indicações de Miller[4]. Ele diz que a psicanálise está vinculada a um realismo lógico “pelo fato de que é totalmente oposta ao nominalismo”[5]. O nominalismo considera absolutamente disjunta a relação das palavras com o real, faz do nome das coisas artifícios que não têm nada a ver com “o que é o real como tal, a saber, seres singulares”[6]. Nesse sentido o nominalismo é um artificialismo do significante que toma como verdade a tese unilateral de que o significante é um semblante, e de que não há semblante no real. A psicanálise, ao contrário, não pode em absoluto ser nominalista, já que ela só é possível se houver uma conjunção do real com a linguagem, já que empreende a modificação do real mediante palavras. Isso pode se assemelhar à magia, pois tem um ponto obscuro, não possível de ser esclarecido pelas explicações positivistas, por isso a psicanálise está sempre sendo ameaçada de ser superada por uma nova explicação da ciência do funcionamento mental. Miller dá como exemplo disso as tentativas recorrentes de descobrir uma resposta científica para esclarecer a angústia, afirmando que, “se isso ocorrer, não mudaria nada para a psicanálise, porque sempre teria que ser situado aí um sujeito que, ao contar com a vantagem de sua inexistência, não depende de determinantes bioquímicos”[7].
Porque não podemos nos conformar com uma explicação mágica da psicanálise, temos que trabalhar em torno dessa relação do real com a linguagem. Essa relação parece dada naturalmente devido ao predomínio da ideologia nominalista sobre o realismo lógico, e Lacan diz que é nisso que a própria ciência se sustenta. A psicanálise também coloca a ênfase no artifício significante, em construções que podemos fazer em torno dos desdobramentos que se produzem numa análise. Mas somos ao mesmo tempo realistas e criacionistas: realistas de estrutura e criacionistas do significante. “Em psicanálise, se trata do que já estava aí, mas a posteriori. O realismo psicanalítico é modificado pela temporalidade a posteriori – isso implica que o significante passe ao real”[8]. Pelo fato de conjugar o realismo e o criacionismo, a epistemologia de Lacan não se deixa classificar nos repertórios epistêmicos outros. Miller dá como exemplo da união paradoxal entre criacionismo e realismo a constatação da psicanálise de que o sujeito é uma resposta ao real, um efeito do significante a partir do já aí da linguagem.
Lacan afirma que a ciência “reduz o real ao mutismo”[9]. O real se impõe para todos, a ética da psicanálise se situa no modo de abordá-lo. Em “A terceira”, Lacan diz que “o engraçado de tudo isso é que seja o analista que dependa do real nos anos que virão, e não o contrário. Não é de modo algum do analista que depende o advento do real. O analista tem por missão enfrentá-lo”[10].
Sim, dependemos do real e da maneira como vamos enfrentá-lo. Dessa tempestade que nos atinge, saber ver os vagalumes criados no encontro com as pedras do meio do caminho, transformar pedras em vagalumes, nos dá um alento e nos surpreende de uma boa maneira.
o poema deve conter uma verdade
a ínfima parte de um sentimento
enchente levando o coração do poeta
desesperado
a escrever lentamente
(Rudi Renato Jr.)