Laureci Nunes (EBP/AMP)
(…) quando falamos do analista em posição de ensinante, independentemente do fato de que ensine na Escola, na rua, na Universidade, no hospital, trata-se sempre da enunciação e não do imóvel.[1]
Entre as diversas questões colocadas no argumento para esta Correio, de uma delas me apropriei para intitular este texto, por me ser útil para situar o processo de como a Escola se tornou possível em Santa Catarina[2]. Jovens analisantes, recém-formados, nos juntamos para nos instruir, lendo Freud e Lacan, apreendendo as bases para a atuação clínica, ao mesmo tempo em que seguíamos os passos da Iniciativa Escola. Esse movimento, que incluía formar cartéis, estudar sobre o passe, e cujo fruto, mais de 10 anos depois, possibilitou a fundação da Seção SC, também foi perpassado pela grande crise de 1998 na AMP. Em decorrência dela, dissolvemos a associação que nos agrupava e, restando poucos, convidamos Bernardino Horne para nos orientar sobre os passos a seguir. Ele, além da leitura do momento político, nos forneceu conselhos precisos: manter-nos juntos, lendo Lacan ou Miller e fazer uma poupança para vir a ter um espaço para a biblioteca etc. Demos andamento à nossa formação permanente e foi a partir daí que, dentre as demais atividades que instituímos, passamos a ser participantes do primeiro curso que se engendrou, ministrado pela saudosa colega Vanessa Nahas, para aprender o que ela podia transmitir de sua pesquisa de mestrado[3].
Esse apanhado histórico vem para ressaltar a importância da referência ao Uno da orientação e o fato de que a formação dos que se encaminharam para a fundação da Seção se deu não sem a aposta no saber exposto, na transferência de trabalho e no laço com a universidade. Esse é um liame que faz parte da tradição do nosso Instituto, pois a demanda advinda de graduandos, mestrandos, doutorandos e professores universitários é frequente, e uma parte deles não vem com a pretensão de praticar a psicanálise, mas busca esse saber para seguir a pesquisa e a vida profissional em seus próprios campos.
A Escola e o Instituto têm na difusão da psicanálise de orientação lacaniana o objetivo que os reúne; trabalham para mantê-la viva, com atenção para que se preserve o que é próprio da Escola: o passe, a garantia, o cartel[4]. Por isso, penso que em nada contribuem as teses que se apresentam na hipótese de ou Escola ou Instituto e, mais grave ainda, as que apontam que a Escola não necessita do Instituto, somente o contrário. São níveis diferentes da transmissão da psicanálise, é fato; mas ambos são necessários à manutenção da própria psicanálise, à nossa formação e à pesquisa.
J.-A. Miller, após fundar a I.R.M.A[5], lembrou que a ignorância de que se trata em psicanálise é douta, metódica e difícil; que não se trata do zero de saber; e que, ao contrário, há uma confusão ao se supor que quanto menos se sabe, melhor. Nessa linha, ressaltou a necessidade permanente à qual respondem os institutos do Campo freudiano[6].
Eu considero que transmitir a psicanálise contribui para a nossa própria formação, enquanto praticantes; sirvo-me da precisão de J.-A. Miller: “a posição de ensinante é a de converter a paixão pela psicanálise, o sofrimento que esta pode acarretar, em uma exibição da paixão”[7]. E avalio que a transmissão sistemática e gradual realizada nos institutos torna a psicanálise mais palatável aos jovens. Sem deixar de levar em conta que o Instituto não está proposto como porta de entrada para a formação na Escola, e que ele também não é a porta de não entrada[8], destaco que os últimos seis membros da Seção adentraram pela porta do Instituto, além da maioria dos que chegaram pela Política da Juventude. Sobre os jovens, Christiane Alberti, quando impulsionou a Política da Juventude[9], lembrava que a Lacan interessavam os jovens por sua sensibilidade ao discurso corrente; para ele, se tratava sempre da psicanálise no presente, de fazê-la desejável e ativa hoje, como da primeira vez[10].
O núcleo do ensino da psicanálise está referido ao passe. Essa transmissão ao público restrito comporta o saber suposto, mas esse saber tende a autodestruir-se, como sabemos. Daí a importância do Instituto em sua função de aguilhão: o espeto que incomoda[11] da boa maneira.
O ensino dos matemas – demonstrativo, para todos – é ponto de encontro da psicanálise com a universidade; ele é sancionado por certificados e diplomas[12]. Essa parte do que se repete não transforma a psicanálise em letra morta se aqueles que a transmitem estiverem atravessados pela psicanálise em sua vertente pura, da qual a Escola se ocupa. São a própria análise e a experiência do controle dos casos o que, inevitavelmente, renovam a sua transmissão. É aí que os conceitos são postos à prova. O novo também se refere às experiências advindas dos núcleos de investigação e das clínicas de atendimento, pois através da conversação há lugar para o assistemático, que aponta para o singular[13]. Nessa via, considero que a atenção, sem garantia, para os que respondem como docentes nos nossos institutos, membros ou não-membros de Escola, deve se dirigir ao fato de que sejam ligados ao Uno da orientação.
Atualmente, com a nova geografia desenhada pela EBP, estamos diante de um importante desafio: como transformar o atual reduto da psicanálise aplicada, em curso em Santa Catarina, numa potência que acompanhe a decisão pelo Sul, da nossa Seção Sul? Nós, membros de Escola, já dissemos sim para fazer-nos consonante, isto é, a mesma “geografia” que serve à Escola ver-se-á refletida também no Instituto, atualizada para proporcionar-lhe uma autêntica dimensão de Instituto Sul. Considero que a chave está na transferência de trabalho, a mesma que é o motor de trabalho na Escola. Para que se caminhe bem nessa direção, para que tenhamos um Instituto que possa estar à altura de bem transmitir a nossa psicanálise, precisamos contar com a decisão e com a aposta de cada membro; um por um, para além do sim, pois cabe colocar o corpo nesse trabalho, que é delicado e, como sabemos, requer tempo. Estamos no instante de ver o desdobramento da nova geografia incidir sobre a psicanálise aplicada, e esperamos que ela possa reunir os membros de Santa Catarina e do Paraná. Há uma grande responsabilidade no tempo de compreender. Para que possa concluir com o melhor desenho, que exigirá invenção, será necessária a somatória dos desejos decididos de cada um que quiser se associar a esse novo.
Sobre a dimensão para-universitária de nossos Institutos e as consequências desta, creio que, ao entregar um atestado de que alguém concluiu um curso de psicanálise, se estamos convenientemente orientados, tal certificação estará suficientemente desvalorizada. Os participantes estarão advertidos de que não há formação do analista, só do inconsciente. A outorga que me preocupa recai sobre as “formações” que vêm de outros lugares, como a ofertada pelas igrejas evangélicas. Por isso, penso que não devemos recuar e, sim, avançar, o que me coloca de acordo com Reinoso: falar a língua do Outro no intuito de subvertê-lo, dirigir-se ao Outro no que ele não quer ou não consegue[14].
Diferentemente do discurso universitário, o discurso analítico não anseia o controle, há o saber do real sem lei. “O desejo de saber é uma função clínica. Ele é baseado numa autêntica renúncia ao desejo de poder. Num determinado momento, cai a vontade de desejar algo para o outro e no lugar do outro”[15]. E cabe ressaltar que os discursos não se confundem com os lugares físicos: “pensar que o discurso universitário está na universidade é tão preconceituoso quanto pensar que o discurso analítico está no consultório. Isso há que provar”[16]. O inverso pode acontecer, dependendo de onde se fala em cada ocasião[17].