Angélica Bastos (EBP/AMP)
O discurso do psicanalista tem por determinante a prática da uma psicanálise, explicita J. Lacan[1]. O termo prática não é empregado de maneira fortuita e não equivale ao termo práxis, também utilizado por Lacan em algumas ocasiões, quando sustenta ser a psicanálise uma práxis, fundamentando toda possível teorização na própria ação analítica.
Tal ação é transformadora e, por sua vez, leva à constituição, por um lado, do desejo e, por outro, de conceitos, repercutindo nas representações e na ação subsequente. Coloca-se assim a dupla exigência que recai sobre o psicanalista: ser dois, um que produz efeitos e outro que teoriza esses mesmos efeitos[2].
A prática reúne-se à teoria na práxis, que pode comportar tensão entre ambas, mas não exclusão recíproca. A práxis não submete a prática a uma aplicação da teoria, a qual se transforma, em retorno, a partir da ação de que ela mesma participa. O dito original “[o] discurso que digo analítico é o laço social determinado pela prática de uma análise”[3] inscreve o termo prática, conferindo, assim, um lugar incontornável à experiência, ainda que ela seja inseparável da teoria na dialética entre esta e o exercício da psicanálise. Além disso, coloca-se a dimensão de laço que, embora não seja exclusividade do discurso do analista, implica a alteridade e elimina qualquer autoanálise. O próprio conceito de inconsciente atesta a impossibilidade de autonomização seja da teoria, seja da prática: o analista participa do conceito de inconsciente, evidenciando a indissociabilidade entre o plano conceitual e a operação analítica propriamente dita.
Se o inconsciente implica que se o escute, a concepção de discurso que nos concerne não se apoia na ex-sistência do inconsciente, que não constitui uma condição do discurso. Ao contrário, o inconsciente ex-siste[4] ao discurso e a cada encontro entre analisante e analista se trata de fazê-lo ex-sistir, dado que seu estatuto não é ôntico.
O ensino da psicanálise na universidade não poderia ficar isento da referida indissociabilidade, uma vez que não há duas psicanálises. Embora seja frequentemente ignorada, ela coloca uma exigência incontornável às atividades de ensino. Não há equivalência entre universidade e discurso universitário, pois este último pode se instaurar em outros lugares que não essa instituição, assim como outros discursos que não o do analista são suscetíveis de instalação na experiência psicanalítica. Pode-se, ainda assim, indagar se a indissociabilidade entre teoria e prática ergue um impasse para aqueles que se engajam nessa extensão da psicanálise. Embora não tenha sido a extensão privilegiada por S. Freud, ela foi por ele admitida com a ressalva da prevalência do aprendizado a partir da psicanálise, em detrimento do aprendizado sobre a psicanálise[5], o que ratifica a experiência do inconsciente na base do ensino, ao invés da veiculação de um corpus teórico. O duplo movimento entre teoria e prática tem por consequência que os conceitos não se cristalizam em dogmas, daí o fato de J. Lacan ter situado a obra freudiana como um pensamento em movimento, competindo ao analista apreender o dizer de Freud ou aquele de Lacan, em lugar de buscar configurar um sistema conceitual a partir de seus ditos.
Além de o discurso do psicanalista nada ensinar, ele não é passível de ensino[6]. Então, o que se ensina quando se ensina psicanálise, ou melhor, a partir dela? A despeito dos discursos entre os quais se transita no ensino da psicanálise, o discurso do analista permanece germinal, matricial para esse ensino.
A interrogação a propósito do que se ensina é especialmente pertinente por duas razões principais. A primeira concerne às objeções que lhe são dirigidas hoje, que não são mais ou não são unicamente as clássicas críticas cientificistas, às quais J. Lacan respondeu com a asserção de que a psicanálise opera sobre o sujeito da ciência, posto que esta não opera nem poderia operar sobre o sujeito que produz ao mesmo tempo que exclui. Testemunhamos atualmente um sem-número de críticas que imputam à psicanálise a defesa do patriarcado, do falocentrismo e da colonialidade. Ora, as críticas não incidem lá onde seria de se esperar que o fizessem. A pergunta sobre o que se ensina na psicanálise se impõe por uma segunda razão: a recente proposta de curso de graduação em psicanálise no Brasil. Esse tipo de curso parece se chocar ainda mais frontalmente com a impossibilidade de ensino do discurso do analista.
A experiência com os institutos do Campo Freudiano situa o saber exposto em contraposição ao saber suposto em vigor nas escolas. Entendemos que a exposição do saber em um instituto — dentre outras características distintivas — busca preservar a dialética entre teoria e prática, não divorciando uma de outra, mas remetendo o saber à experiência e vice-versa.
No instituto, visamos a um ensino capaz de preservar a indissociabilidade entre teoria e prática, o que jamais está garantido, permanecendo no horizonte em função da prática de cada um. Em contrapartida, quanto mais submetido ao discurso universitário, mais pronunciado é o divórcio entre saber e experiência, que parece atingir o paroxismo em um curso de graduação em psicanálise.
A institucionalização do curso de psicanálise na universidade é solidária à ruptura entre teoria e prática, aprofundando-a. Presta-se a fomentar a hegemonia da primeira, que se torna independente da experiência, e substitui a transferência por um conjunto de regras técnicas. A graduação em psicanálise radicaliza o aprender sobre a psicanálise, destituindo o discurso do analista a partir do qual se pode ensinar e aprender.