Luis Francisco Espíndola Camargo (EBP/AMP)
A regulamentação de uma profissão é tarefa da sociedade e do Estado. Antes de tudo, trata-se de regular uma prática profissional em benefício e defesa do corpo social, i.e, contra os enganadores, diletantes e inábeis ao exercício de uma profissão, cujo controle indireto é realizado por meio da criação de uma “autarquia” que, apesar de certa autonomia financeira e administrativa, sempre está indiretamente subordinada ao Estado. Em texto veiculado pela Agência Senado, afirma-se que o “Supremo Tribunal Federal, em jurisprudência mais do que pacificada, entende que só é legítimo regulamentar uma profissão, fazendo uma exceção ao princípio do seu livre exercício, quando o seu exercício por uma pessoa que não tem a qualificação adequada colocar em risco interesses indisponíveis do corpo social”[1]. Em suma, a regulamentação de uma profissão é um ato do legislativo com fins de proteção social. Essas autarquias são denominadas conselhos profissionais, como, por exemplo, o Conselho Federal de Medicina (CFM) e o Conselho Federal de Psicologia (CFP). Regular uma atividade profissional implica definir critérios de formação, competências e habilidades, pré-requisistos necessários para o exercício de uma profissão e, principalmente, as estratégias de controle e de fiscalização. É importante ressaltar que a regulamentação de uma profissão não garante necessariamente os direitos dos profissionais, mas, antes de tudo, estabelece seus deveres. Sabemos, contudo, que nada disso funciona em relação à psicanálise.
Cabe ressaltar que as últimas tentativas de regulamentação da psicanálise não foram justificadas pelos riscos à sociedade cometidos por pessoas desqualificadas para a prática, mas pela busca de reconhecimento da profissão visando justificar a necessidade de cursos universitários. As duas últimas, o PLS nº 174/2017, Projeto de Regulamentação da Profissão de Terapeuta Naturista, e o PLS nº 101/2018, Projeto de Regulamentação da Profissão de Psicanalista, ambos de autoria do ex-senador Telmário Mota, recentemente preso por acusação de estupro e homicídio, foram frustradas no Congresso Nacional em razão das políticas de advocacy[2] realizadas pelo Movimento Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras junto ao Senado Federal.
As políticas de advocacy realizadas pelo Movimento impediram a regulamentação via poder legislativo. No entanto, surgiu recentemente um novo caminho para a regulamentação da psicanálise, via Ministério da Educação. Em 2021, por meio da Resolução nº 1559/2021, a UNINTER criou um curso prometendo “um diploma de Bacharel em Psicanálise [com o qual se] poderá atuar como empregado em empresas para serviços de prevenção e recuperação da saúde mental, ou por conta própria”[3]. Esse curso está em processo de reconhecimento pelo MEC. Trata-se de um caminho em direção à regulamentação da prática por meio de uma certificação, autorizada pelo diploma. O Movimento Articulação tem-se debruçado sobre esse novo caminho da regulamentação e colocado sob suspeita se a proliferação de cursos ofertados por institutos de psicanálise despertou o interesse do mercado em criar cursos universitários de psicanálise.
Pode-se observar que nas demandas de regulamentação da psicanálise habita a questão sobre a garantia, tema recente em nossa Escola, como visto na Nova Política da Juventude. Sabemos que a oferta de um diploma não serve de garantia para sustentar a experiência, mas supõe autorizá-la por meio de um Outro externo ao campo. Trata-se de um engano, pois em psicanálise não há Outro do Outro.
O que a Escola garante? Uma formação? Lacan assinalou na “Proposição” que o analista pode querer uma garantia, mas que a Escola só garante que o analista depende de sua formação, constituindo assim um paradoxo, a dependência mútua entre a existência da Escola e a do analista: “o analista pode querer essa garantia, o que, por conseguinte, só faz ir mais além: tornar-se possível [responsável] pelo progresso da Escola, tornar-se psicanalista da própria experiência”[4]. Desses dois “tornar a ser” Lacan apresentou duas formas correspondentes em sua Escola: o AME, analista membro da Escola e; o AE, ou analista da Escola. A primeira forma está ligada à garantia da formação na e da Escola, à presença do analista, enquanto a segunda diz respeito àqueles que poderiam testemunhar “problemas cruciais nos pontos nodais” referentes à psicanálise, garantindo sua renovação. Em última instância, trata-se de garantia e de permanência da psicanálise no mundo, ao mostrar a dependência mútua entre o psicanalista e a Escola, por meio de uma formação sem regulamentação e sem padrões. A natureza dessa relação poderia ser expressa pela extimidade entre o analista e a Escola. Essa é mais uma razão para defender a impossibilidade de um terceiro regulador na psicanálise.