Cleyton Andrade
Aquilombamentos analíticos
A categoria de sujeito não é redutível a qualquer forma de designação essencialista ou naturalista. Por isso não pode e nem tem como aderir integralmente a qualquer comunidade, movimento social, língua, origem ou território. Contudo, nem por isso a questão se torna fácil. Afinal, o pertencimento também não é da ordem de uma mera especulação.
O ex-ministro da Casa Civil de um governo fascista, na tentativa de amenizar o crime de peculato cometido pelo ex-presidente no caso das joias milionárias, disse: “B. não tem cara de ladrão!”. O comediante negro, Felipe Ferreira, faz uma piada em seu stand up (https://youtube.com/shorts/Asz1JY1oPDE?feature=share) dizendo que crossfit não funcionaria para ele. Convidando seus ouvintes a imaginá-lo correndo na rua, depois de uma pausa estratégica para a risada da plateia, completa dizendo que a polícia iria pará-lo. O impactante é o clímax da piada: ele respondendo ao policial que corria porque fazia crossfit. Quem tem cara de ladrão no Brasil? Qual a cara de um ladrão? Qual a cor de um ladrão?
O Brasil tem sido um laboratório para a extrema direita, que, mesmo tendo perdido as eleições de 2022 não baixou suas armas. As relações íntimas, quase de sobreposição entre o capitalismo e o fascismo mostram que esta convergência acrescida do imperialismo e de uma história de colonização, é um jogo de cartas marcadas em que o racismo é um coringa. Muito mais que um efeito transitório ou fragmentar, ele é a argamassa e o pilar de uma construção que não se sustentaria sem ele. No discurso do mestre capitalista, branco, o racismo negro é um resto assimilável por uma democracia da mestiçagem que se auto declarou democracia racial, a despeito daquilo que visava o autor que propôs esse termo. O que lhe parecia um aceno para um programa conciliatório de elites brasileiras, almejando uma identidade nacional sem resíduos feita de restos, acabou sendo a mentira hipócrita e violenta em que só vale o mesmo, o idêntico. A democracia racial se tornou o sintoma de uma unidade almejada e construída sobre as bases especulares do mesmo; nesse caso, onde há fumaça há narcisismo das pequenas diferenças.
Essa operação sonha com uma equação solipsista de uma identidade familiar. Um povo é Um. Porém, não contam com Freud nem Lacan. Aquele que acusa movimentos sociais de serem identitaristas, identitários, é como o DSM que se diz ateorético. Afinal, é fundamental para as pretensões do Manual Diagnóstico velar a teoria da qual parte, para dizer que teórico e portanto, especulativo, é o outro. Desde Freud sabemos que no coração de um povo há um Outro, e não o mesmo. A diferença, o estrangeiro, o infamiliar, é um traço inescapável para a discussão sobre a identificação. O problema não é o identitarismo dos movimentos sociais antirracistas, ou movimentos negros, mas sim a política identitária branca que não se deixa conhecer.
O Brasil já tentou por leis restritivas, por políticas públicas de embranquecimento, por políticas públicas de produção ativa de falta de acessibilidade, eliminar a contingência histórica desse povo, buscou eliminar a alteridade, o múltiplo, o unheimlich perturbador. Se Totem e tabu e Psicologia das massas e análise do eu, bem como o Brasil dos últimos anos nos ensinaram que falta vocação para suportar a democracia, preferindo a idealização do líder e a identificação narcísica com os irmãos, é também porque temos que passar de um modo ou de outro, por experiências passíveis de encontro com o infamiliar. Jamais uma política identitarista voltada para o idêntico, com ações programáticas de produção do estrangeiro negro ou preto, será capaz de uma experiência de extimidade.
Renally Xavier ao receber no consultório uma mulher preta retinta, se perguntou pelos motivos que fizeram com que, em dez anos de clínica, tivesse atendido tão poucas pessoas negras. Esse foi o ponto de partida para um desdobramento que chegou à uma constatação que se tornou hipótese de investigação: uma diferença discursiva entre ser branca ou negra, em um país que tem como sintoma da sua neurose cultural, o racismo. Ela traz um depoimento que merece nossa atenção, sobretudo ao tratar de um momento da clínica em que ser uma mulher preta não lhe franqueou uma passagem livre para o entendimento desse sintoma daquilo que chamou de neurose cultural brasileira. O que nos mostra que o tema do racismo porta opacidades e obstáculos difíceis de transpor para qualquer um.
Para Renally a experiência histórica da diáspora africana fez uma marca que colocou negros e negras em um lugar de objetificação mercantil. Talvez seja esta uma das formas em que o mal-estar colonial se apresenta, sobretudo quando incluímos na racionalidade acerca do racismo, um conceito fundamental para o seu entendimento: o infamiliar. Ela se coloca a pensar a psicanálise através de chaves essenciais para a leitura, como é o caso de uma posição anti-racista e decolonial. E isso por ter sido convocada a um trabalho de teorizar a clínica a partir de um encontro com uma interessante figura para o pensamento: a empregada unheimlich.
Ivone, uma mulher preta de voz potente começa a pisar no chão devagarinho. É Ivone Lara, nas letras de Danielle Menezes que, sem tirar o calcanhar de um solo indigestamente comum, se propõe a dar saltos mais além do idêntico a si mesmo. São dos seus, dos meus, dos nossos antecedentes e dos ascendentes. Não vamos escapar do mal-entendido, não é disso que se trata, mas de dizer os efeitos de uma forma de equivocidade. Se a cor da pele dá o tom, o nome e o destino, não sem violência, que futuro já está escrito para estas pessoas? Se o passado que é ruim, é negro, se o mercado que é ilegal, é negro, não tem equívoco nenhum nisso, tem prescrição. Por outro lado, o feijão da nossa amada feijoada, é preto, a grana alta, é preta, a cor do carrão importado, é preta. Quando a cor nomeia o que gostamos, é cor. Quando a metonímia vai na direção oposta, as significações têm outro peso. A cor quando é racializada pelo discurso do mestre colonizador, não deixa dúvidas do lugar que reserva ao negro: é o diferente, o outro, o intolerável subalternizado pelo narcisismo das pequenas diferenças que definem a diferença entre “nós” e “eles”, entre “eu” e os “outros”.
Para Danielle, se a equivocidade está no cerne de nossa prática, isso não reserva nem à psicanálise, nem muito menos ao psicanalista, a possibilidade da neutralidade. Esse não seria um solo habitável, tal chão não se sustentaria abaixo dos pés, mesmo pisando devagarinho. Justamente porque Freud e Lacan implementaram uma desnaturalização do corpo, é que o mal-entendido que incide sobre a carne do negro transformando-o em alvo não pode ser desconsiderado. É o corpo negro que faz a passagem do corpo que antes de levar um tiro e cair sem vida, segurava apenas um saco de pipoca e um cano confundido com uma arma. Esse mal-entendido é muito bem entendido no quotidiano de milhões de brasileiros, enquanto outros não veem os próprios olhos, já arrancados, no chão. Quando o racismo chega ao divã ele não é mais, apenas, social, histórico e político. Ele é clínico, e por isso mesmo essa nova experiência clínica demanda urgentemente uma teoria que a suporte para além do tema da segregação. É preciso dizer com todas as palavras que o tema do racismo negro não cabe dentro do conceito de segregação.
São textos e depoimentos que remetem à história. Sob a marca de uma prática clínica, dão o testemunho de que até aproximadamente 2013, questões raciais não entravam nos consultórios, tanto quanto negros raramente entravam nas universidades e em outros espaços colonizados e hierarquizados a partir de um racismo estrutural. Casos clínicos de pacientes negros nas instituições de saúde pública eram apresentados sem que as questões raciais e racializadas fossem tratadas e debatidas, nem clínica e nem teoricamente. Em diversas ocasiões os debates sobre a psicose, sobre o adolescente que comete ato infracional, foram sim produtivas e essenciais. Mas desconsideravam, via de regra, até mesmo a menção de quem eram esses adolescentes diante do ato infracional. Como se o páthos que encontrasse uma saída pelo ato, não tivesse nenhuma relação com o corpo que tinham diante do discurso de mestre branco.
Essa discussão reaparece com Renata Mendonça: negros e negras procurando analistas negros e negras. Ela aborda o impasse acerca da possibilidade de um branco escutar ou não, o real em jogo num modo de gozo que pode ser excessivamente opaco para a compreensão daquele que, em termos freudianos, prescinde da filogênese ao pensar a ontogênese. Como se o objeto a se fizesse impossível de suportar desse mesmo modo, nesse mesmo lugar, para qualquer um, independentemente da cor que carrega não no bolso, mas na pele. “Certamente ainda parece casual se uma bala atinge um ou outro; mas esse outro pode facilmente ser atingido por uma segunda bala, e o acúmulo irá pôr fim à impressão de acaso.” (FREUD, 1915/2020, p.120).
Renata vai lembrar do quase óbvio: ler o caso no universal, no particular, até chegarmos ao que cabe de singular a cada sujeito negro. Uma divisão ternária bem mais interessante do que a aquela que eu disse a pouco, entre a ontogênese e a filogênese. Mas, insisto, sem uma dose de filogênese ou de universal, não desce redondo no caminho para o singular.
Do Maranhão, um estado nordestino com mais de 75% da população que se declara negra, Anícia Ewerton faz um testemunho de ser uma analista negra em meio a uma prática que por muito tempo foi um reflexo da concretude do racismo estrutural no Brasil. Uma analista preta em meio a uma prática e uma episteme que não leve em conta um real desse porte, não pode deixar de ser, no mínimo, o registro de uma história a ser reescrita. Anícia nos mostra que, se, por um lado, há um impasse colocado numa prática clínica senão branca, pelo menos embranquecida, que se mostra insuficiente para escutar o real que há no racismo negro no Brasil, por outro, a materialidade de uma pele preta num analista praticante não é a garantia para escutar e dar lugar a este real. Pode ser difícil para um branco escutar a emergência do objeto a numa experiência que, por mais que seja singular, ainda é de um racismo social e histórico. Ao mesmo tempo ter a pele preta não impede nem o embranquecimento epistêmico, nem garante por empatia ou intersubjetividade, apreender essa mesma emergência. Se o discurso do mestre tem seus produtos, e sendo o mestre brasileiro, racista, como seria possível que a nossa clínica se visse impedida de escutar o que se produz de uma máquina de significantes mestres em que a cor é subalternizada? Como não escutar que a subjetividade vinda desse aparelho já tem seu lugar previamente determinado?
Não preciso dizer o que já se fez por entendido, essa é uma Correio Express escrita exclusivamente por jovens analistas negras, que trazem a clínica e um potente esforço de construção e reflexão teórica de algumas das jovens questões para a psicanálise.