Renally Xavier de Melo
Analista praticante – Seção Nordeste
Há alguns anos, recebi para atendimento uma mulher preta retinta, de cabelos trançados e com consciência racial. Desde aquele dia, eu tenho me perguntado: Por que, nesses dez anos de prática clínica, só tenho atendido poucas vezes a pessoas negras em consultório? O fato é que, quando aquela mulher se sentou tête-à-tête para falar de sua história, eu percebi a diferença discursiva que consistia em ser branca ou negra em um país que tem como sintoma da sua neurose cultural, o racismo.
Em terras brasileiras, o racismo se apresenta em sua lógica perversa e se utiliza do mecanismo da denegação para se afirmar no mito da democracia racial como verdade nacional. Isso implica um não reconhecimento e tratamento do mal-estar que é causado aos sujeitos pela lógica colonial.
Foram poucas sessões, mas aquela paciente me possibilitava pensar que o romance familiar não ficava restrito à sua família de origem, porquanto ela falava mais da “patroa” do que de sua mãe, que a criara nas cozinhas das casas alheias. Essa patroa a nomeava de ‘macaca’ ou ‘pretinha metida’, porque achava um absurdo a filha da empregada se interessar pelos estudos. Ela conseguiu acesso à educação e se colocar no mercado de trabalho em uma profissão em que “cuidar” é um significante consistente.
Em certa medida, para uma mulher preta que se sabe não escrava, algo disso ainda pode restar de um encontro com a mulher branca, algo pode ficar inscrito para o sujeito, a ponto de poder reproduzir aquele lugar que negava. Por mais livre que se possa ser, ficar a serviço do outro, pode ser uma condição. Se, diante de um caso clínico, por meio de uma dinâmica pulsional, seja possível, como analista, fazer algumas intervenções, penso que havia uma limitação de compreender o problema do racismo.
Já faz alguns anos que aquelas sessões foram realizadas, mas reconheço que precisei de um tempo para pensar sobre a importância de considerar a raça como um significante que tem a função de alienar, além de marcar uma diferença que precisa ser considerada nas narrativas daqueles que deitam em nossos divãs.
Hoje penso na importância que tiveram alguns lugares de debates em outros campos do saber e que me possibilitaram compreender bem mais a dimensão política do inconsciente. Cursar um mestrado em uma universidade federal, no campo dos estudos culturais, certamente foi um desses espaços. Dentre tantas memórias desse momento, lembro que, em 2018, quando estava qualificando o projeto de mestrado, das tantas frases escritas naquele trabalho, há uma que continua atual: a Psicanálise só é possível em uma sociedade que se organiza de forma democrática.
Apresentei aquele trabalho, mas eu e a banca de qualificação estávamos consternados com os resultados das eleições, pois havia a angústia de esperar o pior nos próximos anos, e os nossos olhos não conseguiam mirar muito longe, pois, naquele momento, eles eram águas. O fato é que o campo dos estudos culturais me fazia entender que existe uma capacidade de resistir no sul global. Nenhum processo de alienação é bem sucedido totalmente e há um resto que desafia a lógica, como nos lembra Lélia Gonzalez, ao se apoiar na teoria da lalíngua a partir Jacques-Alain Miller.
Logo depois, encontrei-me com um texto da Bianca Santana, escrito para a Revista Cult, que dizia que, para atravessar grandes ondas, é preciso mergulhar fundo e ver as belezas que se encontram escondidas na história. Ela trazia, como exemplo, a capacidade que as mulheres pretas têm de subverter para questionar sobre o sistema que as objetifica e aponta que, no horizonte, havia quilombos como modo de resistência.
Gonzalez (2020) assevera que os quilombos são modos de resistência organizada do povo negro contra a exploração da qual era objeto. Cabe destacar que a historiadora Beatriz Nascimento nos aponta que o quilombo é uma forma de a população negra subverter a lógica colonial em que é possível construir narrativas além das que representam o negro como escravo. Dito de outro modo, é falar além do escravo.
Com essas considerações, as autoras não deixam de questionar sobre o lugar de exploração destinado às mulheres negras nas sociedades coloniais. É a partir desse aspecto que se considera que, na função de mucama, a mulher negra deu origem à mãe preta, que terá papel importante na constituição psíquica da primeira infância. Ao cuidar dos filhos dos senhores, a mulher preta transmitia os valores da cultura africana.
Nesse sentido, a autora considera a dimensão da resistência passiva realizada pela mãe preta no romance familiar na formação de crenças e de valores, em que a mãe preta tem a função de sujeito de suposto saber e, como consequência, a africanização da cultura brasileira.
Sabemos que a linguagem é um fator por meio do qual o sujeito pode se humanizar ou adentrar a cultura. Porém, na cultura brasileira, essa transmissão é feita de um lugar de resistência passiva.
Aquela paciente me possibilitou refletir sobre o lugar da mulher negra como uma estrangeira íntima. Aquela que, ao mesmo tempo, está dentro e fora. Ao mesmo tempo que está ali servindo a “casa grande”, com seus serviços, é representada em uma lógica de ausência. Pensar no racismo a partir de uma lógica pulsional, como um sintoma, possibilitou-me retornar ao texto freudiano, mas, dessa vez, para extrair elementos que me possibilitem escutar os sujeitos que se encontram na améfrica-ladina, na tentativa de capturar o que resiste no compasso do silêncio produzido pelo não dito do racismo por denegação, mas que encontra eco nos corpos.
No texto, O sentido dos sintomas (1917), Freud menciona um caso clínico, em que sua paciente, uma mulher de 30 anos, apresentava sintomas obsessivos. Ela corria de um quarto para outro repetidas vezes. Ele interpreta a dimensão sexual do sintoma posto nas tentativas da mulher de corrigir a cena em que, na noite de núpcias, o marido não havia apresentado ereção. Gostaria de resgatar a dimensão da vergonha que a paciente imprime, ao considerar o olhar de sua empregada doméstica ao recolher os lençóis e decide manchá-los com tinta vermelha, que cai em outro lugar.
Nesse recorte clínico freudiano, penso que a empregada doméstica ocupa o lugar de estranha e íntima. Ao inferir isso, não desconsideramos a interpretação freudiana de que o sintoma de sua paciente se dava para corrigir a falha do marido. Mas, podemos afirmar que a função da empregada, nessa formação sintomática, seria possível sem o olhar daquela outra mulher? Aqui pensamos que há elementos de uma dinâmica pulsional que se estabelece entre as mulheres por meio do objeto olhar. Mas, se esse caso tivesse sido atendido em território brasileiro, saberíamos, quase com tom de certeza, que cor aquela empregada doméstica teria.
Se retorno ao texto freudiano, articulando com o caso que atendia há alguns anos, é na tentativa de pensar nesse lugar ocupado pela doméstica como um estrangeira íntima. Ao afirmar que, na produção sintomática da paciente de Freud, havia algo de pulsional que estava articulado com a experiência do olhar, só é possível se consideramos a categoria ‘lugar’ a partir de uma dinâmica que se articula com a classe, o gênero e a raça.
É importante ressaltar que ‘lugar’ não é uma categoria qualquer, afinal, territórios apontam para uma dinâmica de dominação, e na obra de Lélia Gonzalez, tal conceito se destaca, pois, ao questionar o lugar da mulher negra, ela considera a dimensão geográfica, social e discursiva, e a língua é concebida em uma dinâmica pulsional, ou seja, a erótica da língua.
Nesse sentido, a categoria ‘estrangeiro’ destinada à mulher negra levando em consideração as questões raciais é problematizada pelo feminismo negro (bell hooks, 2019; Toni Morisson, XX; e Patrícia Hill Colins, 2019). Isto posto, gostaria de retomar a contribuição de Neusa Santos Souza (2021), ao retornar ao texto freudiano para refletir sobre a dimensão do estrangeiro e nos afirmar que, para a Psicanálise, o estrangeiro é o eu pensado em sua condição paradoxal. O eu compreendido pela Psicanálise se configura por meio de sua divisão – o eu como um outro que somos nós.
Além de retornar à obra freudiana, a autora resgata, nas contribuições lacanianas, o conceito de êxtimo, para inferir a dimensão do real no simbólico. Assim, considera o estranho como um enlace entre os registros simbólico e real e que consegue, por um instante, apresentar-se no imaginário.
Ela ainda nos apresenta algumas formas em que o estranho aparece: o estranho como duplo e como feminino. No primeiro, a imagem do eu se confunde com o eu ideal, em que a imagem do duplo ganha sentido de terror. Na segunda, a partir do feminino, pode ser pensado como diferença, como outro modo de gozo. Ambas as formas nos servem para pensar na dimensão racial, que encontrou as explicações no texto de Fanon: a dimensão do objeto fóbico que o negro se constitui para o branco, bem como a dimensão do duplo narcisismo, que se dá na constituição do negro ao precisar se identificar com um ideal de eu branco.
Nesse sentido, a experiência da diáspora africana colocou os negros em um lugar de objetificação mercantil. Esse fato não é sem efeitos na constituição dos sujeitos, porquanto os sujeitos não se constituem sem os objetos. Assim, a forma como a sociedade se organiza se relaciona com o controle dos corpos e, consequentemente, com a produção sintomática. Em uma sociedade colonizada, é preciso considerar o mal-estar colonial. Como nos adverte Freud, uma sociedade se organiza com de uma dinâmica que leva em consideração o controle das pulsões, só que o racismo faz o branco ficar correndo de um lado para o outro com medo daquele que o constitui. Afinal, o estrangeiro é familiar, e o Brasil produz um lugar em que a empregada doméstica é quase da família.